O perigo do remédio sem uso na farmacinha de cada casa

Sílvio Burle | 12/04/2016, 11h17

Apesar de grande consumidor de medicamentos, o Brasil não tem lei nem norma específica sobre o descarte dos produtos vencidos, que podem trazer riscos para o meio ambiente e a saúde pública

O Brasil é o sétimo país do mundo em venda de medicamentos, com cerca de 70,4 mil farmácias. Mesmo assim, não tem lei específica que regulamente o descarte de remédios vencidos ou sem uso pelo consumidor doméstico. E o governo ainda não conseguiu amarrar com as empresas do setor um acordo de adoção da chamada logística reversa — aquele conjunto de ações para devolver à cadeia produtiva os resíduos que precisam de destinação final ambientalmente adequada. Assim o país convive diariamente com os potenciais riscos ambientais e de saúde pública decorrentes do problema.

— O descarte aleatório de medicamentos vencidos ou sobras é feito por grande parte das pessoas no lixo comum ou na rede pública de esgotos — lembra o consultor legislativo do Senado na área de meio ambiente Luiz Beltrão.

Segundo ele, os principais riscos do descarte inadequado são a contaminação da água, do solo e dos animais e as reações adversas a substâncias químicas que podem atingir públicos vulneráveis, como as pessoas que manejam resíduos nos lixões.

Beltrão cita números do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), indicando que os remédios ocupam no Brasil, desde 1996, o primeiro lugar entre os agentes causadores de intoxicações.

Embora os efeitos sobre o meio ambiente ainda sejam pouco conhecidos, há uma preocupação especial em relação aos antibióticos, aos estrogênios e a algumas substâncias da quimioterapia, como os imunossupressores.

— Para o ser humano, um dos principais problemas está no desenvolvimento de bactérias resistentes a antibióticos, devido à exposição a eles no ambiente — adverte o professor Alberto Malta Júnior, coordenador do curso de farmácia da Faculdade de Juazeiro do Norte, no Ceará.

Quanto aos estrogênios, hormônios ligados ao desenvolvimento de características femininas, o temor tem a ver com o potencial das substâncias para afetar o sistema reprodutivo de organismos aquáticos, como os peixes. Já os quimioterápicos requerem atenção diferenciada pela possibilidade de produzir mutações genéticas.

De acordo com estudo de 2013 da Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), não há uma conclusão sobre o principal caminho de contaminação do ambiente.

“É provável que grande parte da presença de fármacos no meio aquático seja proveniente da excreção decorrente da utilização normal dos medicamentos”, diz o documento. “No entanto, como grande parte dos medicamentos não utilizados são descartados de maneira inadequada, a inexistência de um sistema de logística reversa acaba elevando o risco de contaminação.”

Regulamentação depende de acordo setorial

Desde 2011 o governo tenta, sem êxito, costurar um acordo entre indústria, distribuidores e farmácias para implantar a logística reversa no setor de medicamentos destinados ao consumidor doméstico.

— A maior dificuldade é definir como será a divisão de custos de gerenciamento, principalmente a etapa de transportes, que é a mais cara — diz Sabrina Andrade, gerente de Resíduos Perigosos do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Sabrina conta que nas demais cadeias produtivas que foram chamadas para fechar um acordo, os segmentos sentaram juntos e propuseram a criação de uma entidade gestora, contribuindo com ela de acordo com a fatia de mercado correspondente a cada um.

No caso dos remédios de descarte doméstico — o setor hospitalar já tem uma norma específica —, as negociações começaram em 2011 sob a condução do Comitê Orientador dos Sistemas de Logística Reversa (Cori), que envolve cinco ministérios.

Depois de dois anos de debates, o Cori aprovou a viabilidade técnica e econômica do sistema. E em outubro de 2013 publicou edital convocando os segmentos para a apresentação de propostas. O problema é que os três documentos elaborados pela indústria farmacêutica, pelos distribuidores de medicamentos e pelos representantes das farmácias foram divergentes.

Para o MMA, que avaliou as sugestões com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cada membro da cadeia atribuiu aos demais as principais responsabilidades pelo sistema. A discussão prosseguiu, mas o entendimento não veio.

Preços

Segundo o ministério, como não existe uma norma nacional, alguns estados e vários municípios estabeleceram regulamentos próprios. E nesses casos a responsabilidade pela logística reversa acaba pesando mais sobre as farmácias, considerado o elo mais fraco da cadeia.

Diante da demora para chegar a um consenso, o MMA começa a avaliar a possibilidade de editar uma norma impositiva para o setor.

— A demora no acordo se dá em razão da questão do financiamento da logística e destinação final, que são responsabilidade do fabricante — afirma o presidente da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto.

Ele conta que em vários países onde a logística reversa foi adotada, como Espanha e Portugal, os fabricantes financiam o processo com base na alocação de centavos de euro para cada caixa de medicamento.

O problema, no caso, é que, no Brasil, os preços dos remédios são controlados pelo governo, argumenta Maria José Delgado Fagundes, diretora da Interfarma, entidade que representa 56 laboratórios.

— Em que pese nosso compromisso com a logística reversa, temos dificuldades para implantá-la — diz.

Segundo ela, outros setores que firmaram acordo com o governo para executar a logística reversa puderam repassar aos consumidores os custos com as novas exigências.

Independentemente das discussões sobre quem deve assumir os custos, o mercado farmacêutico no Brasil cresceu 11% em 2015 em relação a 2014, faturando R$ 46,4 bilhões.

Segundo a IMS Health, empresa especializada em informações do setor, o mercado brasileiro de medicamentos ocupa hoje a sétima posição no mundo e pode chegar à quinta em 2020.

Já o estudo de viabilidade técnica e econômica da logística reversa para o setor, publicado em 2013 pela ABDI, indicou que foram vendidas no Brasil em 2010 cerca de 103 mil toneladas de medicamentos. O levantamento estimou que o descarte pode ter variado entre 11,3 mil toneladas e 19,6 mil toneladas, dependendo da metodologia usada para o cálculo.

Política

A ideia de adotar a logística reversa em diversas cadeias produtivas ganhou força em 2010, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS — Lei 12.305/2010). Ela obrigou a implantação para setores como o de agrotóxicos, pilhas e baterias e pneus. Para produtos não citados na lei, caso dos remédios, a PNRS determinou que o sistema fosse estabelecido por regulamento ou em acordos setoriais e termos de compromisso entre o poder público e as empresas.

Na falta de uma lei nacional, o que o consumidor pode fazer

Sem uma lei nacional que obrigue o comércio a recolher os medicamentos vencidos, o que o consumidor pode fazer com os remédios sem uso da farmacinha de casa? Para o coordenador técnico-científico do Conselho Federal de Farmácia (CFF), José Luiz Maldonado, antes de pensar no descarte, é preciso fazer uma outra pergunta: por que existe a sobra?

— Se obedecêssemos a um plano terapêutico, não deveria ter resíduo. O problema pode estar, por exemplo, na prescrição excessiva ou na caixinha de medicamentos, que tem mais ou menos unidades do que as necessárias — diz.

Maldonado defende o direito do paciente a ser tratado de acordo com os princípios da chamada medicina baseada em evidências, “e não em achismo, para bem utilizar os medicamentos e não se expor a risco desnecessário”

— Mas isso exigiria uma mudança de cultura, desde o ensino até o atendimento, envolvendo as 13 áreas profissionais da saúde — avalia.

O coordenador do CFF aponta um outro caminho que contribuiria para reduzir o desperdício: a adoção do fracionamento de medicamentos. Ele lembra que norma para isso já existe: Decreto 5.775/2006, do governo federal, e Resolução 80/2006, da Anvisa. Mas a adesão das empresas é facultativa.

— A indústria farmacêutica diz que isso elevaria os custos de produção em 15%. Hoje o fracionamento é zero — lamenta.

Para contornar o problema, o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE) apresentou há quatro anos projeto estabelecendo que “os medicamentos sejam produzidos em embalagens que permitam a venda por unidade, isto é, por comprimido, drágea, ampola etc”. O PLS 33/2012 está na Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA), onde será relatado por Romero Jucá (PMDB-RR).

— Esse projeto não é contra ninguém, esse projeto é a favor dos brasileiros — diz o senador, informando que pedirá urgência na tramitação da proposta.

A diretora da Interfarma Maria José Fagundes avalia que o desperdício tem múltiplos fatores. Um deles, acredita, é cultural e tem a ver com as “prescrições” feitas no boca a boca.

— Todo mundo tem uma receita para uma doença — diz.

Já o presidente da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto, argumenta que, com os dados existentes, não é possível afirmar que há um grande desperdício de remédios no país.

— Para os pacientes de uso crônico, que são a grande maioria, o desperdício é quase nulo, pois as pessoas utilizam o remédio continuamente, dia após dia, adquirindo outro quando esse acaba. Para o medicamento de uso eventual, já existe uma série de embalagens em tamanho adequado ao período do tratamento — diz.

Na opinião dele, a maior parte do resíduo se dá por abandono de tratamento. Segundo o presidente da Abrafarma, a Organização Mundial de Saúde (OMS) admite que 50% das pessoas abandonam o tratamento após seis meses.

José Luiz Maldonado, do CFF, ressalta a falta de dados no país em relação ao efeito dos medicamentos e ao destino que as pessoas dão aos remédios.

— Hoje o paciente recebe o remédio, vai para casa e ninguém sabe o que acontece. Falta rastreabilidade — afirma.

Ele recomenda que o consumidor procure as farmácias para entregar os medicamentos sem uso. Mas se nenhuma loja aceitar, que o cidadão vá até as autoridades sanitárias ou até mesmo ao Ministério Público para garantir o direito de se desfazer dos remédios.

ABNT se prepara para lançar norma própria dentro de 90 dias

Será apresentada nesta terça-feira (12), em São Paulo, uma norma que se pretende nacional e levará o carimbo da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). A apresentação ocorrerá durante o Simpósio Internacional de Resíduos de Serviços de Saúde, que começou na segunda e segue até quarta-feira (13).

Para o empresário José Agostini Roxo, que coordenou o processo de discussão sobre a norma, embora não tenha força de lei, o texto Logística Reversa de Medicamentos Descartados pelo Consumidor — deverá se tornar referência. Entidade privada sem fins lucrativos, a ABNT é reconhecida como foro para a normatização de diversos setores.

Representantes de cerca de 30 empresas e entidades privadas e públicas participaram da elaboração do texto. O documento passou por consulta pública e deverá ser publicado em 90 dias.

— Na ausência de uma lei federal, a Norma NBR 16457 será a mais importante ferramenta para gestores e legisladores entenderem os procedimentos corretos para salvaguardar os riscos e garantir segurança à população — afirma Agostini Roxo.

O assunto também tem mobilizado senadores. Além do PLS 33/2012, sobre a venda fracionada, tramita no Senado o PLS 148/2011, do ex-senador Cyro Miranda. O texto inclui expressamente os medicamentos na Política Nacional de Resíduos Sólidos e está na CMA, onde deverá ser relatado por Ronaldo Caiado (DEM-GO).

— Se a gente fala do saco plástico, da garrafa pet, não pode esquecer o medicamento, que, entre todos os produtos, é aquele que traz um dano ao meio ambiente e pode prejudicar a saúde das pessoas — alerta a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), que relatou o projeto da venda fracionada na legislatura passada.

Exemplos

Outras tentativas de regulamentar o setor têm sido feitas na área pública. Pelo menos quatro estados (Acre, Amazonas, Paraíba e Paraná), além do Distrito Federal, e mais de 100 municípios estabeleceram legislações próprias.

No DF, vigora desde dezembro a Lei 5.591. Segundo a Subsecretaria de Vigilância à Saúde, a população pode entregar medicamentos vencidos ou em desuso em qualquer unidade de saúde, pública ou privada, do Distrito Federal.

Em Farroupilha (RS), a prefeitura desenvolve o Projeto Farmácia Solidária. Por meio dele, os cidadãos entregam os medicamentos de que não precisam. Uma equipe separa os remédios vencidos dos que ainda podem ser usados e doa a quem apresentar receita e tiver renda mensal de até 1,5 salário mínimo.

Outro programa, tocado pela iniciativa privada, é o Descarte Consciente, que está em 126 municípios de 13 estados. Ele articula empresas do comércio varejista de remédios e da indústria, além de companhias de coleta e destinação de resíduos.

Desde o início da ação, em dezembro de 2010, até as 18h de segunda-feira (11), quando esta reportagem foi fechada, o Descarte Consciente recolheu e deu destino a 155,3 toneladas de medicamentos sem uso.

O sistema, custeado pelos parceiros, é gerido por uma empresa privada, a Brasil Health Service. Presidente da BHS e gestor do programa, o empresário José Agostini Roxo concorda que, além de proteger o meio ambiente e a saúde pública, a logística reversa de medicamentos é viável economicamente.

— Crescemos cerca de 20% ao ano — diz.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)