Madrugada mais longa da República faz 30 anos

Ricardo Westin | 03/03/2015, 21h36

Foi uma cerimônia rápida e sem discurso. Na manhã de 15 de março de 1985, sexta-feira, o Congresso Nacional deu posse a José Sarney. O novo vice-presidente, logo em seguida, dirigiu-se ao Palácio do Planalto. Lá, no papel de presidente interino, fez um pronunciamento quase lacônico aos novos ministros.

— Eu estou com os olhos de ontem — abriu o discurso, referindo-se à madrugada que ele, angustiado, passara em claro.

Não só ele. O Brasil todo estava atônito. Na noite anterior, a 12 horas da posse, Tancredo Neves, o presidente eleito, era levado às pressas ao Hospital de Base, em Brasília, para ser submetido a uma cirurgia no abdome.

A posse era aguardada com ansiedade porque marcaria a volta do país às liberdades democráticas, após 21 anos sob o tacão da ditadura. Entretanto, temia-se que os militares usassem a ausência de Tancredo como pretexto para impedir a posse do vice e dar um novo golpe.

A madrugada mais longa da República completará 30 anos daqui a duas semanas.

O Arquivo do Senado guarda os discursos feitos pelos senadores, da tribuna, naquele momento histórico. Os documentos mostram que, a caminho do 15 de março, o país estava eufórico. A expressão “Nova República” era repetida à exaustão. Ninguém antecipava o sobressalto que se avizinhava.

Na véspera da posse, o senador José Sarney (PMDB-MA) se despedia dos colegas no Plenário:

— Saio do Senado no alvorecer de um momento extraordinário de floração de grandes esperanças no país. Tenho a nítida visão histórica e política da missão que exercerei. Posso dizer ao Senado que exercerei a Vice-Presidência com absoluta doação, total sacrifício e uma visão maior das minhas responsabilidades de político, num momento de restauração do poder civil.

Pedro Simon (PMDB-RS) também deixava o Senado. Ele se licenciava para ocupar o Ministério da Agricultura:

— Parece-nos importante a data que viveremos amanhã. Uma data que, após 21 anos, marca uma mudança importante no cenário político desta nação. A candidatura do senhor Tancredo Neves nasceu do debate e da vontade popular, percorrendo as ruas e praças deste país, na campanha pelas eleições diretas, que infelizmente não foram aprovadas pelo Congresso. A sociedade teve ampla presença na elaboração de um programa de transição que significa uma nova página na história deste país.

Simon se referia à campanha das Diretas Já, iniciada em 1983. Mobilizações pelo país pressionavam o Congresso a aprovar a Emenda Dante de Oliveira, que previa a eleição direta para presidente. Tancredo foi um dos políticos mais aguerridos do movimento. Em 1984, porém, a emenda foi rejeitada.

Reunião de cúpula

As esperanças, então, foram todas depositadas na eleição indireta de 1985. Mais especificamente, na candidatura opositora ao governo militar. Em 15 de janeiro, o Colégio Eleitoral (formado pelos senadores e deputados, além de delegados das assembleias legislativas dos estados) elegeu Tancredo, com 480 votos. A vitória foi esmagadora. Paulo Maluf, o candidato governista, obteve 180 votos.

Ainda na véspera da posse, o senador Martins Filho (PMDB-RN) subiu à tribuna para também explicar a relação entre as Diretas Já e a ascensão de Tancredo:

— O presidente Tancredo Neves não é do meu partido, nem do PFL, nem da Aliança Democrática. É, antes de tudo, o presidente feito pelo povo. O povo que saiu às ruas, aos milhões, num clamor por eleições diretas. O povo que, traído por representantes que não ouviram seu apelo tão enfático, agarrou-se a Tancredo como que a uma bandeira. Assim Tancredo se fez presidente de cada brasileiro, muito antes que o Colégio Eleitoral cumprisse a formalidade legal de elegê-lo. Bem-vindo, presidente! Bem-vinda, Nova República!

A hospitalização, às 22h do dia 14, impossibilitava a presença de Tancredo na posse, às 10h do dia 15. Brasília assistiu a várias reuniões políticas pela madrugada adentro. Não estava claro se o vice poderia assumir o poder sem o titular já estar empossado.

Entre os documentos guardados no Arquivo do Senado está a ata de uma reunião, realizada antes de amanhecer, da cúpula do Poder Legislativo — os presidentes do Senado, José Fragelli (PMDB-MS), e da Câmara, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), e os líderes partidários das duas Casas. Eles decidiram o futuro.

“Ouvidos todos os presentes, houve inteira concordância no sentido de que, mediante a apresentação de laudo médico que comprove a impossibilidade de o presidente eleito ser empossado nessa solenidade, a Mesa do Senado deverá dar posse ao vice-presidente eleito”, diz a ata.

Informado da decisão por telefone, Sarney não conseguiu dormir. Às 10h, ele chegava ao Congresso para prestar juramento como vice-presidente e assumir interinamente a Presidência.

Outro documento histórico do Arquivo do Senado é o livro que contém os termos de posse de todos os presidentes do Brasil, desde o marechal Deodoro da Fonseca. Como são redigidos por calígrafos, eles precisam ser preparados com antecedência. O livro, por isso, traz o termo que Tancredo não conseguiu assinar. A folha teve que ser anulada. Sobre o texto, com caneta vermelha, anotou-se “sem efeito” em letras garrafais. Um novo termo de posse precisou ser escrito às pressas, em nome do vice-presidente.

Sarney encontrou o Planalto vazio. O presidente João Figueiredo se recusara a passar a faixa presidencial para o vice. Eles eram inimigos desde que Sarney deixara a presidência do partido governista, o PDS, e se juntara à oposição, levando consigo correligionários insatisfeitos com o governo militar. Figueiredo saiu do Planalto pela porta dos fundos assim que a sessão no Congresso  Nacional terminou.

Primeiras medidas

No dia 18, o senador Carlos Alberto (PDS-RN) subiu à tribuna para defender o último presidente militar:

— Na quinta-feira à noite, eu telefonava para o presidente Figueiredo para falar acerca da situação no país quando Tancredo Neves era hospitalizado e eu via José Sarney sair às pressas do bloco onde residimos. Perguntei qual era a posição de Sua Excelência, e a resposta foi aquela que eu esperava: “Carlos Alberto, a Constituição será respeitada. Eu jurei fazer deste país uma nação democrática no dia em que assumi a Presidência”. Temos que fazer justiça àquele que deu todas as condições para que Tancredo pudesse ser o presidente eleito.

Os dias seguintes se seguiram com relativa tranquilidade. Segundo os médicos, a cirurgia havia corrido bem. Acreditava-se que Tancredo logo teria alta.

Na tribuna, o senador Humberto Lucena (PMDB-PB) fez um relato da primeira reunião ministerial, ocorrida no dia 17, domingo. Nela, Sarney havia anunciado, por exemplo, um corte de 10% do Orçamento fiscal e a proibição de contratação de novos funcionários públicos.

— São essas as primeiras mudanças da Nova República. São firmes e vigorosas como pretendia o presidente Tancredo Neves e como as vem conduzindo o vice-presidente José Sarney, embora ainda não tenham o colorido que só a presença daquele que foi escolhido pelo Colégio Eleitoral, com o respaldo total da sociedade brasileira, poderia lhe dar. Mas esperamos em Deus que isso possa ocorrer dentro de poucos dias — disse Lucena.

Na avaliação do senador Carlos Chiarelli (PFL-RS), Sarney vinha governando “com discrição, probidade, competência, admiração e respeito”. O senador Moacyr Duarte (PDS-RS), que apoiava o regime militar, discordou:

— O presidente José Sarney não pode e não deve, por maior fidelidade e devotamento que guarde ao titular do cargo, condicionar a saúde da nação à saúde do seu primeiro magistrado. O governo precisa deslanchar, governar a pleno vapor, e não apenas em câmera lenta, esperando pelo imprevisível.

Ao invés de melhorar, Tancredo piorou. A situação ficou tão grave que os médicos decidiram transferi-lo para o Instituto do Coração, em São Paulo. O diagnóstico começara com apendicite, fora mudado para diverticulite e no final acabara sendo fechado em tumor benigno no intestino. Ao todo, Tancredo passou por sete cirurgias. Até a oposição ficou sensibilizada.

— A prolongada e comovedora agonia do presidente vem provocando em toda a nação impressionantes demonstrações de solidariedade, evidenciando a realidade de um povo traumatizado e perplexo diante de uma tragédia sem paralelo nos anais da história do Brasil — discursou o senador Lourival Baptista (PDS-SE) em 17 de abril.

Tancredo Neves morreria pouco depois, de falência de múltiplos órgãos, no dia 21, domingo, feriado de Tiradentes. Milhões de brasileiros, emocionados, acompanharam os cortejos fúnebres em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del Rei (MG), sua cidade natal, onde foi enterrado.

Espiões

Segundo o jornalista José Augusto Ribeiro, que foi assessor de imprensa de Tancredo na época do Colégio Eleitoral, ele sabia desde a virada de 1984 para 1985 que algo não ia bem em seu abdome. Entretanto, recusava-se a consultar-se com um médico porque sabia que os espiões do Serviço Nacional de Informações (SNI) seguiam seus passos. Com a informação de alguma doença, a ditadura poderia “virar a mesa” e cancelar o Colégio Eleitoral.

Tancredo buscou ajuda médica apenas em 11 de março, quando as dores já beiravam o insuportável. A operação deveria ser imediata. Ele rechaçou a ideia. Disse que só iria para o hospital depois da posse. Na noite do dia 14, porém, não havia mais como adiar. Tancredo morreria se deixasse a cirurgia para o dia seguinte. Para convencê-lo, seu sobrinho Francisco Dornelles blefou dizendo que Figueiredo havia aceitado a posse de Sarney.

— Tancredo foi um político raro. Ele achava que tinha o dever de sacrificar a própria vida se isso fosse necessário para garantir a transição democrática do Brasil. Foi o que ele fez — afirma Ribeiro, que lançará nos próximos dias a biografia Tancredo Neves: a noite do destino (editora Civilização Brasileira).

O temor de Tancredo era justificável. No livro, o jornalista conta que Figueiredo, ao saber da internação, propôs ao ministro do Exército, general Walter Pires, que acionasse os militares para impedir a posse de Sarney. A ideia só não foi executada porque Pires não tinha mais poder. A exoneração dos ministros já havia sido publicada. Figueiredo teve que se resignar.

O jornalista Antônio Britto seria o secretário de Imprensa do governo Tancredo e acabou sendo o porta-voz das informações médicas — foi ele quem comunicou ao Brasil a morte do presidente, num anúncio transmitido ao vivo pela TV e pela rádio. Britto afirma que o “sacrifício pessoal” de Tancredo é comparável ao de Getúlio Vargas, que em 1954 se suicidou para impedir que os militares dessem um golpe de Estado. Ele diz:

— Trinta anos atrás, as ruas do país foram ocupadas por milhões que choravam por um político. Não se imagina algo parecido ocorrendo hoje. A população nutre uma perigosa rejeição à política. Precisamos refletir sobre o que aconteceu com a política e os políticos no Brasil.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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