Em ritual, imperador elencava prioridades do Brasil

Ricardo Westin | 02/02/2015, 15h05

Em 2 de fevereiro, primeiro dia do ano legislativo, a presidente Dilma Rousseff cumpriu o dever imposto pela Constituição e enviou ao Congresso Nacional a mensagem presidencial. Trata-se do documento em que o governo faz um balanço do ano que se encerrou e enumera as prioridades do país para o ano que se inicia.

O ritual é mais antigo do que se imagina. Foi dom Pedro I quem o inaugurou, quase dois séculos atrás, em 1823. O documento se chamava fala do trono. Hoje, o presidente da República apenas remete a mensagem ao Poder Legislativo. No período imperial, o monarca comparecia ao Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio, e proferia a fala do trono numa concorrida cerimônia, deixando claro o que esperava dos senadores e deputados naquele ano.

Na abertura dos trabalhos legislativos de 1826, por exemplo, dom Pedro I pediu:

— Deve merecer-vos sumo cuidado a educação da mocidade de ambos o sexos.

O Brasil oferecia escola apenas para os meninos. A palavra do imperador foi decisiva. No ano seguinte, o Senado e a Câmara aprovaram uma lei determinando que se instalassem “escolas de primeiras letras” para meninas nas cidades mais populosas.

Dom Pedro II herdou a tradição das falas do trono. Em 1853, ele apresentou outra prioridade:

— Recomendo-vos a criação de um banco, solidamente constituído, que dê atividade e expansão às operações do comércio e indústria.

Naquele momento, apenas bancos privados operavam no Império. O Banco do Brasil, fundado por dom João VI em 1808, não suportara as polpudas retiradas feitas pela corte portuguesa antes do regresso para Lisboa e acabara indo à bancarrota em 1829. Faltava um banco estatal. Passados dois meses da fala do trono, os senadores e deputados avalizaram a criação do segundo Banco do Brasil, o mesmo que existe até hoje.

Nos nove anos entre a abdicação de dom Pedro I e a subida de dom Pedro II, os pronunciamentos foram proferidos pelos regentes, entre eles o padre Feijó. Nas ocasiões em que o segundo monarca esteve fora do Brasil, a missão de falar aos parlamentares coube à princesa Isabel. Os discursos invariavelmente começavam com o vocativo “augustos e digníssimos senhores representantes da Nação”.

Patrimônio histórico

Pouco antes da queda da Monarquia, as folhas lidas pelos imperadores e regentes foram encadernadas num volume único. Hoje amarelada pelo tempo, a versão original do livro Falas do Trono está sob a guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, protegida numa sala com controle de temperatura e umidade.

Em dezembro, a Unesco (braço da ONU para educação, ciência e cultura) reconheceu o valor histórico do livro Falas do Trono e o incluiu na lista brasileira do Programa Memória do Mundo. Só entram na lista documentos e arquivos que sejam únicos ou raros, tenham grande significado social, mereçam ser difundidos e exijam cuidados de conservação para não se perderem.

No Brasil, a Unesco também reconhece, por exemplo, o diário das viagens de dom Pedro II, o acervo documental da Guerra do Paraguai e os arquivos de Machado de Assis.

O Programa Memória do Mundo é repetido em vários países. Na Alemanha, a Unesco tombou a Bíblia de Gutenberg. Em Portugal, a carta de Pero Vaz de Caminha narrando a descoberta do Brasil.

A leitura das falas do trono leva a uma viagem panorâmica pelas quase sete décadas do Brasil monárquico. Além das prioridades para o ano, o soberano falava da situação interna do Império e das relações com outros países. Em 1826, dom Pedro I citou a guerra pela província Cisplatina (atual Uruguai):

— A província Cisplatina é a única que não está em sossego, pois homens ingratos e que muito deviam ao Brasil contra ele se levantaram e hoje se acham apoiados pelo governo de Buenos Aires, atualmente em luta contra nós. A honra nacional exige que se sustente a província Cisplatina, pois está jurada a integridade do Império.

Maioridade

Em 1831, dom Pedro I abdicou e voltou para Portugal. O príncipe dom Pedro II, com apenas cinco anos, não poderia ser coroado. Instalou-se, então, um governo de regentes, que conduziria o Império até a maioridade. Na primeira fala do trono no período, os três regentes provisórios frisaram o fato de Pedro II ser brasileiro, e não português como Pedro I, o que permitiria a consolidação da Independência:

— Não foi só solene esse dia [o da aclamação de Pedro II]. Ele se fez também memorável pelo contentamento geral e demonstrações não equívocas do intenso amor e respeito com que o povo saúda o seu novo monarca, ainda infante, genuíno brasileiro e sagrado objeto da sua patriótica veneração.

Na década dos regentes, as falas do trono abordaram as rebeliões que incendiavam o país. A Cabanagem, no Grão-Pará, e a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, foram citadas pelo padre Feijó em 1836. De acordo com ele, “o vulcão da anarquia” ameaçava “devorar o Império”.

— Do Pará, faltam notícias modernas. Por bem ou por mal, será a cidade de Belém arrancada às feras que a dominam. A sedição [insurreição] de Porto Alegre foi tão rápida que em poucos dias compreendeu a província inteira. O governo tem deixado entrever aos sediciosos que, no caso de contumácia [insistência], porá em movimento todos os recursos para sujeitá-los à obediência.

As convulsões do período acabaram forçando a antecipação da maioridade de dom Pedro II. Apostava-se na figura do jovem monarca como capaz de pacificar o Império. Em vez dos 18 anos, assumiu o poder aos 14, em 1840. Ele fez seu primeiro pronunciamento ao senadores e deputados no final daquele ano — as falas do trono eram proferidas também no encerramento do ano legislativo.

— A resolução, por vós tomada e aplaudida pelos meus fiéis súditos em todo o Império, de apressar a época de minha maioridade, confio, senhores, que produzirá os mais salutares efeitos para a causa pública — disse.

Escravidão

A Guerra do Paraguai foi o tema dominante nas falas do trono entre 1865 e 1870. Em 1866, dom Pedro II comemorava o avanço das tropas aliadas sobre o solo paraguaio:

— Deploro profundamente as vidas preciosas sacrificadas nesta guerra, mas é indizível meu orgulho contemplando o heroísmo que acompanha o nome brasileiro e a glória que imortaliza a memória de tantos bravos. As bandeiras aliadas já tremulam no território inimigo. Espero ver em pouco tempo terminada a guerra.

A previsão não se confirmou. A guerra ainda se arrastaria por mais quatro anos.

A gradual eliminação da escravidão, o tema mais sensível da Monarquia, apareceu em diversas falas do trono. Chama a atenção o uso dos eufemismos. Diante dos parlamentares, dom Pedro II se referia aos negros como “elemento servil”.

— O elemento servil no Império não pode deixar de merecer oportunamente a vossa consideração, provendo-se de modo que, respeitada a propriedade atual e sem abalo profundo em nossa primeira indústria, a agricultura, sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação — afirmou ele em 1867.

O excessivo cuidado com as palavras tem explicação. Os ouvintes da fala do trono — senadores, deputados, ministros e nobres — eram, em grande parte, latifundiários, a quem não interessava a “emancipação do elemento servil”. Dom Pedro II não podia atropelar a classe social que dava sustentação ao Império. Os parlamentares aprovariam a Lei do Ventre Livre só em 1871. A Lei dos Sexagenários, em 1885. A Lei Áurea, em 1888.

O termo fala do trono não é apenas metafórico. O imperador lia o discurso de um trono posicionado com destaque no Palácio Conde dos Arcos. Era uma das poucas ocasiões em que dom Pedro II se paramentava com a coroa, o cetro, o manto e a murça feita de penas de papo de tucano.

Havia todo um cerimonial. Uma delegação de senadores e deputados recepcionava o monarca na porta do palácio. A família imperial era acomodada num camarote à direita do trono. Ao contrário de outros rituais, como o beija-mão, que acabaram sendo abandonados com o passar das décadas, a fala do trono resistiu até o fim do Império.

De acordo com Marcos Magalhães, historiador e consultor legislativo do Senado, o ritual das falas do trono foi importante na consolidação do Brasil, recém-emancipado, como nação:

— Para se consolidar, uma nação precisa ser construída também no imaginário coletivo. As imagens e os rituais, como as falas do trono, são fundamentais nesse processo.

Até mesmo episódios hoje menores da história surgiam nas falas do trono. Em 1875, dom Pedro II comentou a Revolta do Quebra-Quilos, em quatro províncias do Nordeste. O Império havia adotado o sistema métrico, mas parte da população se recusou a abandonar as incontáveis e ultrapassadas medidas usadas desde a Colônia, como a braça, a légua, o grão e a onça.

— Bandos sediciosos, em geral movidos por fanatismo religioso e preconceitos contra a prática do sistema métrico, assaltaram as povoações, destruindo os arquivos de algumas repartições públicas e os padrões dos novos pesos e medidas. Felizmente, sufocou-se de pronto o movimento criminoso.

Liberdade de imprensa

De acordo com o historiador da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Juarez José Tuchinski dos Anjos, autor de um estudo sobre as questões educacionais nas falas do trono, o tom dos pronunciamentos deixa transparecer que os dois monarcas tinham temperamentos quase opostos:

— Dom Pedro I, que conduziu a Independência e enfrentou muita oposição, tinha um espírito centralizador e autoritário. Dom Pedro II, que chegou ao poder em meio a revoltas e agitações políticas, mostrava-se apaziguador e conciliador.

Isso fica claro na reação dos imperadores às críticas. Em 1829, dom Pedro I queixou-se aos parlamentares do excesso de liberdade de imprensa no Império e pediu que se reprimissem os “abusos” dos jornais. Dom Pedro II, ao contrário, sabia conviver com a imprensa hostil. Eram frequentes nas páginas da Revista Ilustrada charges mostrando o monarca senil, desinteressado da política e manipulado por seus conselheiros. Nem sequer as falas do trono escapavam da pena zombeteira da revista.

Pelas falas do trono, percebe-se a paixão que o segundo imperador nutria pelas novidades tecnológicas. Em 1872, anunciou que seria instalado um cabo telegráfico submarino conectando o Brasil à Europa. Ele chamou o telégrafo de “tão maravilhoso instrumento da atividade do nosso século”. Em 1873, comentou a participação brasileira na exposição universal de Viena, onde o Império exibiu seus “adiantamentos” e a “riqueza do território”.

Sempre que havia notícias na família imperial, elas eram anunciadas nas falas do trono. Em 1826, a imperatriz Leopoldina morreu. Dom Pedro I disse que uma “dor veemente” se apoderara de seu “imperial coração”. Quatro anos depois, ele comunicaria aos parlamentares que havia acabado de se casar “com a sereníssima princesa dona Amélia”. Em 1845, nasceu o primeiro filho de dom Pedro II, dom Afonso.

— Este primeiro fruto com que o céu abençoou o meu imperial tálamo [casamento], enchendo de delícias o meu coração, já como pai, já como monarca, satisfez igualmente os ardentes votos de toda a nação brasileira, que me ama e sinceramente deseja a perpetuidade da dinastia do fundador do Império.

O príncipe, porém, morreria com apenas 2 anos de idade. Em 1847, o imperador deu a notícia aos parlamentares afirmando que seu “paternal coração” estava “ulcerado”. No final de 1885, a imperatriz Teresa Cristina levou um tombo e quebrou um braço. Na abertura dos trabalhos do ano seguinte, dom Pedro II avisou que ela já se achava, “felizmente, restabelecida” e agradeceu os “testemunhos de afeto”.

As referências a Deus eram constantes. Em 1850, o imperador afirmou que uma “febre epidêmica” se espalhava pelo litoral e pediu à “Divina Misericórdia” que livrasse “para sempre do Brasil semelhante flagelo”. Em 1860, ele disse que a grave seca que castigava parte das províncias do Norte — como se chamava o Nordeste — vinha diminuindo “graças à Providência Divina”.

O historiador Mauro Henrique Miranda de Alcântara, professor do Instituto Federal de Rondônia, fez um estudo sobre as referências à escravidão nas falas do trono. De acordo com ele, ainda há nesses pronunciamentos farta e inexplorada matéria-prima à espera dos pesquisadores:

— Os historiadores que se dedicam ao Império sempre recorrem às falas do trono para buscar informações sobre pontos muito específicos, como a abolição da escravidão. Por um lado, há questões recorrentes nos pronunciamentos que ainda não foram esmiuçadas, como as epidemias e as secas. Por outro lado, falta uma pesquisa mais ampla, que esquadrinhe todo o conjunto das falas do trono.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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