Da CMO ao Plenário, a luta dos aposentados da aviação pelo crédito orçamentário do Aerus

Guilherme Oliveira | 03/12/2014, 22h16

A Câmara dos Deputados é conhecida como a casa do povo. Em raras ocasiões isso foi tão verdadeiro como nas últimas semanas, quando um grupo de idosos de seis estados brasileiros montou acampamento a poucos metros do Plenário e, durante 16 dias, não arredou pé, em nome de uma causa.

Eles se instalaram no Salão Verde, a antessala do Plenário da Câmara — onde normalmente são realizadas as sessões do Congresso que vota as matérias orçamentárias. Foi nesse extenso espaço, vencido diariamente por servidores do Legislativo na tarefa de fazer funcionar a Casa, onde deputados e senadores transitam a caminho de seus compromissos e equipes de televisão abordam os assuntos do dia, que os aposentados das extintas empresas Varig e Transbrasil permaneceram entre o dia 17 de novembro e a tarde desta quarta-feira (3).

O motivo para a ocupação dos aeronautas aposentados foi a busca pela aprovação do PLN 31/2014 pelo Congresso. O projeto autoriza um crédito orçamentário de R$ 248,2 milhões para que o Ministério da Previdência Social, cumprindo sentença judicial, realize pagamento atrasado de aposentadorias, pensões e auxílios-doença aos beneficiários do Aerus, fundo de pensão dos trabalhadores do setor aéreo.

No dia 12 de novembro, o projeto foi aprovado pela Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO). Seis dias depois, estava na ordem do dia do Congresso. Na expectativa da aprovação, os aposentados que reivindicavam o cumprimento da sentença e a restituição dos pagamentos vieram ao Parlamento dispostos a passar a noite, em vigília, aguardando o resultado.

A votação não aconteceu, e o grupo decidiu ficar. Ficaram por duas semanas, até a decisão final que saiu na noite desta quarta. Nesse período, dormiram sobre o carpete, tomaram banho nos banheiros dos funcionários e chegaram a montar uma pequena árvore de Natal, decorada com bolas coloridas e bilhetes pedindo justiça e dignidade. Fizeram da Câmara, de fato, a sua casa.

Situação adversa

A organização do movimento já trabalhava com a possibilidade de uma permanência prolongada desde o início. É o que explica Osvaldo Rodrigues, um dos coordenadores.

— Viemos preparados para um “confinamento”. Deixamos todo mundo de sobreaviso e pedimos para só vir quem pudesse aguentar — conta ele.

O número de acampados variava conforme o dia, chegando a 30 na quarta-feira da votação do projeto. Entre eles, os aposentados somavam mais de 1,3 mil anos de vida. Vieram dos três estados do Sul, de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Distrito Federal. Trabalharam como pilotos, comissários de bordo, mecânicos e funcionários administrativos de empresas como Varig e Transbrasil.

Sendo todos idosos, a moradia improvisada causou alguns desconfortos. Alergias e dores nas costas eram as queixas mais comuns. O gaúcho Vilmar Lopes passou todas as noites dormindo sentado.

- Tenho próteses nos dois quadris e não tenho condição de deitar no chão duro, senão não consigo levantar. Em casa tenho um colchão ortopédico, mas aqui o jeito é ficar numa cadeira – comentou o acampado que, apesar de tudo, não perdeu o pique.

Seu conterrâneo Miguel Ramos falou da saudade da família, que ficou no Rio Grande do Sul. Para ele, é difícil passar tanto tempo longe de casa, mas a luta é imprescindível.

— Minha mulher está apavorada, os netos ficam preocupados, e com razão. Não é fácil, mas o que é que eu vou fazer? Eu estou aqui fazendo uma coisa que não é só por mim — destacou.

O Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) e a Federação Nacional dos Trabalhadores em Aviação Civil (Fentac) calculam que cerca de 20 mil aposentados foram afetados por uma gradual redução no financiamento do Aerus. Das três fontes originais de arrecadação do fundo — contribuições de funcionários, de empresas e parcelas dos valores arrecadados com a venda de passagens —, duas foram total ou parcialmente cortadas ao longo do tempo. Nos últimos anos, os pagamentos estavam limitados a 8% do valor originalmente previsto.

— Tem comandante ali que ganhava R$ 8, 10 mil por mês e hoje está sobrevivendo com um ou dois salários mínimos —  espanta-se o senador Paulo Paim (PT-RS), principal contato dos aposentados dentro do Congresso.

O assunto se arrasta há cerca de uma década sem conclusão e sem restabelecimento dos pagamentos. As entidades também contabilizam que, nesse período, mais de 1,2 mil aposentados faleceram sem ver solução.

O decano do grupo, Zoroastro Lima Filho, de 84 anos (38 deles dedicados a pilotar), criticou as atitudes das empresas aéreas, que retiraram dinheiro do Aerus, e do governo federal, que permitiu isso através de 28 repactuações. Para ele, os aposentados ficaram indefesos.

— Eles são o mar e a pedra e nós somos os mariscos, levando porrada dos dois lados. Infelizmente, no Brasil, idoso tem que morrer porque não contribui. Nós só queremos a volta dos nossos pagamentos. Estamos pagando pelo que não fizemos — protestou.

Mobilização necessária

Graziela Baggio, ex-presidente do SNA, foi apontada pelos manifestantes como a principal organizadora do movimento. Ela coordenou a ocupação a bordo de uma cadeira de rodas cedida pela Câmara, pois na véspera do acampamento estava com tornozelo e joelho esquerdos quebrados após um tombo. Ela disse acreditar que, se não fosse pela atitude, o PLN 31 não teria avançado.

— Nosso projeto estava na CMO desde 13 de outubro. Todos os demais projetos continuam lá. Se nós não tivéssemos vindo, talvez o nosso ainda estivesse para ser aprovado lá – observou.

Ela também crê que a decisão de se instalar no Salão Verde deu aos aposentados a visibilidade necessária para criar, entre os parlamentares, um consenso quanto à importância de acelerar a análise da medida.

— A idade dos colegas e as condições em que a gente está ajudam a criar uma unanimidade. Essa aproximação faz com que os parlamentares, sejam da situação ou da oposição, se tornem mais sensíveis — disse.

O presidente da Fentac, Luiz Sérgio Dias, não passou noites com o grupo, mas garantiu que foi ao Congresso prestar apoio logístico e moral sempre que pôde. Em sua opinião, a mobilização é característica da categoria.

— O pessoal da aviação sempre brigou muito para ter melhores condições de trabalho, melhor remuneração, reconhecimento da profissão. Na velhice, tiveram que, mais uma vez, mostrar a sua força de vontade — elogiou ele.

Já Marcelo Bona, diretor-executivo da Secretaria de Saúde do SNA, ressaltou que a atuação dos aposentados — a quem chama, carinhosamente, de “jurássicos” — gerará efeitos benéficos para o futuro.

— Aposentadoria não é sinônimo de esperar a morte chegar. Essa geração que está prestes a ir para casa não pode ser esquecida. Tem que deixar um legado para as pessoas que vierem nos substituir — declarou.

Para o senador Paulo Paim, a reivindicação dos aeronautas é mais do que justa e a forma que eles escolheram para protestar contribuiu para o sucesso da causa e a aprovação do projeto que recompõe os benefícios do Aerus.

— Esses jovens de cabelos prateados dão o exemplo de que é importante acreditar, lutar e fazer acontecer. Mais vale um gesto concreto do que mil discursos. Estão demonstrando qual é o caminho da vitória: participação popular dentro do Congresso — concluiu Paim.

O senador afirmou que endossa e recomenda esse tipo de atitude a todos que tiverem alguma reivindicação, e lembrou que ele mesmo já trouxe movimentos sociais para ocupar o Congresso.

— Os movimentos sociais, se eles se articulam, são uma mola de pressão muito forte. Com gestos como esse, a população pode se fazer enxergar e dizer: “Não vou só colocar o piano no salão, vou também tocar” — exaltou.

Casa em ordem

Enquanto habitaram o Salão Verde, os aposentados do Aerus mantiveram uma rotina de organização. Ao cair da noite, estendiam lençóis e travesseiros e improvisavam varais para toalhas molhadas. De manhã cedo, recolhiam tudo, deixando o espaço apresentável para o dia de trabalho da Câmara.

O diretor da Polícia Legislativa da Câmara, Paulo Marques, elogiou o comportamento dos manifestantes durante a ocupação do Salão.

— Não tivemos dificuldade. São pessoas bem tranquilas, cordiais, ordeiras. Não nos causaram nenhum transtorno e toda orientação que passamos eles respeitaram — comentou.

Marques conta que a grande preocupação dos policiais foi garantir estrutura e apoio para que os aposentados realizassem seu ato. Apesar de reconhecer as limitações do espaço físico, ele saudou a disposição dos idosos.

— Colocamos ali uma brigada para se porventura alguém passasse mal. O departamento médico teve conhecimento de que eles pernoitaram na Casa. Ficamos sensibilizados porque são pessoas de idade elevada e não tiveram o conforto que teriam em suas casas, mas eles são mais resistentes do que a maioria dos grupos que vêm aqui reivindicar alguma pauta — explicou o diretor.

Para os manifestantes, a necessidade de conservar a integridade do local onde estavam instalados era fundamental e qualquer manifestação que fizessem deveria se manter pacífica.

— A pressão tem que acontecer e é um direito, e eles [os políticos] têm que aceitar que nós estamos aqui. Porém, se quebrar tudo e fizer baderna, perde a razão — sublinhou Osvaldo Rodrigues.

— Os funcionários são incríveis, nos tratam com muita amizade e carinho, como nós tratamos eles. Então é sem quebrar, sem esculhambar, sem demolir. A gente custa tanto para construir, por que destruir? — ponderou Miguel Ramos.

Marcelo Bona fez eco à afirmação de que os aposentados foram capazes de suportar os dias de permanência na Câmara. Segundo ele, os aeronautas veteranos já passaram por piores bocados.

— Esses que estão aqui fizeram a integração do Brasil. Naquela época, quando dava pane no avião, você ia dormir debaixo da asa em pista de terra. Carpete é resort cinco estrelas — brincou ele.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)