Vladimir Safatle: ‘os partidos perderam a função’

Nelson Oliveira e Paulo Cezar Barreto | 02/07/2012, 18h25

O auditório do Interlegis abriu espaço na noite de sexta-feira (30) a uma das vozes mais críticas do Parlamento na atualidade: o professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle vê a atuação dos partidos como impedimento a uma participação genuína e dinâmica do povo na política, e é otimista quanto à emergência de mecanismos de democracia direta.

Oitavo conferencista do Fórum Senado Brasil 2012, o filósofo não apresentou propostas acabadas, mas acha que no mínimo os atuais partidos deveriam ser substituídos por “frentes”. As novas agremiações teriam de se apresentar como veículos legítimos e pulsantes de um amplo leque de anseios que não podem esperar por acordos entre estruturas partidárias já sem comunicação real e identidade com o eleitor.

Desse rol de organizações ultrapassadas, ele não exclui nem partidos de esquerda, que, a seu ver, de forma fatalista, têm colaborado em muitos países com programas de ajuste danosos à população e benéficos a financistas e governantes.

- A forma partido não tem mais função – sentenciou por duas vezes, valendo-se de um conceito da arquitetura, segundo o qual, num edifício ou equipamento, ao aspecto estrutural e estético deve sempre corresponder a utilidade.

Se os partidos, ou eventuais substitutos, precisam ser porosos aos interesses e demandas do povo, as possibilidades de participação política direta devem ser mais exploradas, sobretudo agora que a tecnologia da informação propicia conexões ágeis e seguras. Ele considera insuficientes os projetos de lei de iniciativa popular, modalidade de proposição que acabou resultando na Lei da Ficha Limpa.

Indignados

Para exemplificar o que entende por mudança de verdade no cenário político o professor da USP citou movimentos como o dos indignados na Espanha e o Occcupy Wall Street nos Estados Unidos. Também elogiou a Primavera Árabe e os protestos anti-corrupção no Brasil.

Safatle contesta os que buscam qualificar esses grupos como despolitizados e vazios em termos de propostas.

- Acho muito inteligente da parte deles o fato de quererem discutir. E não é verdade que não têm uma pauta, só não querem se submeter ao velho jogo partidário, no qual é preciso dizer ou deixar de dizer algo por conveniência – adverte o professor da USP, representante de uma corrente de pensamento que pretende revigorar a ideia de uma esquerda viável e de um direito de propriedade que não subjugue tudo o mais.

A questão, segundo Safatle, é que a pauta dos indignados e “ocupadores” não é convencional justamente por bater de frente com os interesses, explícitos e ocultos, que há muito dominam a política.

No Chile, por exemplo, os rebeldes rejeitam terminantemente a ideia de que, com ou sem crise, há uma justificativa para se retirarem recursos da educação. Na Espanha, os manifestantes duvidam que os políticos não tenham parte na crise financeira que ampliou o desemprego.

Questões como a da dívida da Grécia, na opinião do filósofo, deveriam passar pelo poder decisório da democracia direta, e não serem resolvidas por um conjunto de tecnocratas ou parlamentares possivelmente comprometidos com os financiadores de suas campanhas. Na Islândia, recordou, a população em plebiscito optou pelo calote da dívida pública.

- O direito fundamental de todo cidadão, mesmo em estados liberais, é o direito à rebelião. A insubmissão é uma virtude, não um defeito – afirmou.

“Assembleísmo”

Para Safatle, é falso pensar que a democracia se realiza naturalmente, por intermédio de parlamentares. Ele afastou as acusações de que o “assembleísmo” tornaria inviável a tomada de decisões. E apoiou essa convicção "numa evidência": os parlamentos podem se comportar de forma imobilista, ao levar anos para deliberar sobre matérias que demandam solução urgente.

- Não é possível que a democracia tenha medo da complexidade, e que sejamos presas do pensamento covarde – provocou.

No caso brasileiro, Safatle classificou como catastróficos os últimos 20 anos, destacando que a matriz dos escândalos tem sido a mesma há décadas, o que atribuiu à suscetibilidade da estrutura política a interesses financeiros. Mesmo uma solução interessante como o orçamento participativo jamais foi testada no plano federal, e terminou por sucumbir na esfera municipal.

Segundo Safatle, a esquerda emerge de uma profunda autocrítica, a ponto de questionar o regime ditatorial cubano, e vive um novo momento. Infelizmente, o foco de grande parte das demandas ainda é o reconhecimento de direitos – o que não pode ser o cerne de todas as lutas políticas.

De toda maneira, o filósofo prevê um “processo lento e difícil, mas necessário” no caminho de novas práticas e novas instituições. Ele condenou a dissociação entre direito e justiça e a visão preconceituosa dos que só enxergam como criminoso todo aquele fora do Estado de Direito. Ainda mais quando se observa que os governantes não se esmeram na proteção desse mesmo Estado de Direito, ao suspender dispositivos legais ou até recorrer a ilegalidades em tempos de crise.

Caos

Para se contrapor "ao conservadorismo", o professor da USP prescreve o questionamento sistemático dos governos e do sistema político estabelecido. E nem sempre em acordo com o que é considerado legal.

- É preciso observar que a maior parte das maneiras legais de agir foram estabelecidas para que nada mude – denunciou, para, em seguida, lembrar aos menos experientes das consequências a que estão expostos os que decidem agir assim:

- É preciso sempre calcular o risco da reação violenta.

Tanto no conselho quanto na ponderação afloram mais que a visão de um ativista que leva em conta as notícias sobre as recentes ocupações de praças públicas. A vivência do professor no limite dramático da contestação vem desde o primeiro ano de vida. Nascido no Chile em 1973, ano da deposição do presidente comunista Salvador Allende (1908-1973) e da ascensão do general Augusto Pinochet (1915-2006), Safatle voltou com os pais para o Brasil e seguiu uma trajetória de estudos de filosofia, arte e comunicação que se estenderam até a França.

O conhecimento acumulado nesse período tem servido de sustentação a um pensamento que se quer nitidamente de esquerda, como fica ainda mais claro pelo título de um dos livros à venda no hall do Interlegis: A esquerda que não teme dizer seu nome.

O livro é dedicado ao pai, Fernando Safatle, por ter lhe dado “um nome”, mas não um nome qualquer, e sim o mesmo de Lenin, líder da Revolução Russa de 1917. Também é dedicado ao neto do general chileno Carlos Prats, Francisco Cuadrado, que cuspiu no caixão de Pinochet.

Revolucionário de cavanhaque, como Lenin, Vladimir Safatle, vê na Revolução Francesa uma série de referências importantes para o estabelecimento da soberania popular. Quando lhe perguntam se, a despeito do legado de igualdade, liberdade e fraternidade, a memória do caos, e também do terror, não tem funcionado no imaginário do Ocidente como um alerta para o perigo de revoluções prolongadas, o filósofo responde citando o pensador alemão Theodor Adorno:

- Na política, como na música, a ideia de caos é superestimada.

O Fórum Senado Brasil prossegue até 7 de agosto, sempre às 18h30. Nesta segunda-feira (2), Fréderic Gros falará sobre as ciberdemocracias. O seminário é coordenado pelo embaixador Jerônimo Moscardo, especialmente designado para o projeto pelo presidente do Senado, José Sarney.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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