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Corte de verbas da ciência prejudica reação à pandemia e desenvolvimento do país

Ricardo Westin
Publicado em 25/9/2020

 

A pandemia do novo coronavírus fez os olhos do mundo, como poucas vezes antes, se voltarem para a ciência. A grande expectativa é que os cientistas finalmente apresentem uma vacina que consiga frear a propagação do vírus, impedir novas mortes e permitir que as pessoas retomem a vida normal. Os pesquisadores estão correspondendo à expectativa. Já há vacinas em fase final de desenvolvimento em laboratórios de diferentes partes do mundo.

Os olhos dos brasileiros, claro, também se voltaram para a sua própria ciência. O cenário que encontraram aqui, porém, não foi tão inspirador quanto o que viram lá fora. A pandemia atingiu o Brasil no momento em que a área de ciência, tecnologia e inovação enfrenta a pior situação financeira dos últimos tempos.

— Quando a pandemia chegou, o Brasil foi pego no contrapé. Para enfrentá-la, é preciso ter dinheiro que garanta laboratórios equipados e pessoal qualificado. Em vez disso, o que temos é o desmonte de muitas das nossas instituições por falta de recursos financeiros — afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira.

Pela proposta orçamentária de 2021, elaborada pelo governo federal e em análise no Congresso Nacional, o Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, terá para investimento R$ 2,7 bilhões, sem contar os já esperados bloqueios que serão impostos no correr do ano. Se os parlamentares confirmarem a cifra, os cofres do ministério continuarão indo ladeira abaixo. Para o ano atual, como comparação, o valor reservado no Orçamento federal é de R$ 3,7 bilhões. No ano passado, foi de R$ 5,7 bilhões.

Embora haja algum dinheiro privado, o grosso do setor científico no Brasil é custeado pelo governo. Os cientistas trabalham majoritariamente nos institutos públicos de pesquisa e nos programas de pós-graduação das universidades federais e estaduais, em áreas tão distintas quanto as relacionadas a fármacos e agronegócio, aeronáutica e petróleo, satélite e biocombustível, meio ambiente e defesa.

As principais fontes de recursos dos cientistas brasileiros provêm do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ligados ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Igualmente importante é a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação. Todas essas fontes deverão ter menos recursos para distribuir em 2021.

Os gastos com pesquisa científica no Brasil

Soma dos recursos orçamentários das três principais fontes
(FNDCT, CNPq e Capes)

Parcela do PIB investida em pesquisa científica

Verbas novas em pesquisa científica para enfrentar a covid‑19

Fontes: SBPC, Ipea e Unesco

— Se os cortes previstos para 2021 forem mesmo implementados, haverá impacto nos programas de bolsas, tanto na pós-graduação quanto na educação básica, e isso afetará bastante os programas de fomento à pesquisa — alerta o presidente da Capes, Benedito Aguiar.

Atualmente, a Capes concede bolsas a quase 100 mil pesquisadores. O CNPq financia perto de 80 mil bolsistas — quase 25% a menos do que em 2014, quando havia 105 mil bolsistas.

Ainda na esfera federal, instituições de referência também sofrem com a perda de recursos, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura.

Os governos estaduais têm suas próprias agências de fomento à ciência. A mais tradicional delas é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que, da mesma forma que as entidades federais, está lutando para não perder verbas.

Diante do risco de a ciência ter ainda menos dinheiro em 2021, entidades da área se reunirão na semana que vem com senadores e deputados federais para mostrar o estado em que os laboratórios e as pesquisas se encontram. Os cientistas esperam convencer os parlamentares a alterar a proposta orçamentária e destinar mais recursos para o setor.

O Ministério da Ciência e Tecnologia foi criado em 1985, logo após o fim da ditadura militar. Em 1988, a atual Constituição brasileira foi uma das primeiras no mundo a dedicar um capítulo específico à ciência. Um dos dispositivos constitucionais diz que a pesquisa científica receberá “tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público”.

Desde então, o impulso mais significativo foi dado após a virada do ano 2000, primeiro com a criação de novas universidades federais e a expansão das já existentes e depois com o programa Ciência sem Fronteiras, que oferecia bolsas para brasileiros estudarem e pesquisarem no exterior. As verbas federais para o setor científico chegaram ao auge em 2015. Depois disso, só caíram. O Ciência sem Fronteiras foi encerrado em 2017.

Estudante protesta em 2019 contra corte de verbas de universidades federais (foto: Antonio Scarpinetti)

Uma das consequências da falta de verbas é a fuga de cérebros. Para se dedicar à sua pesquisa, um bolsista de mestrado recebe R$ 1,5 mil mensais. Um bolsista de doutorado, R$ 2,2 mil. Os valores não são reajustados desde 2013. Por causa disso, muitos pesquisadores preferem se mudar para instituições estrangeiras. Outros acham financeiramente mais vantajoso simplesmente abandonar o mundo acadêmico.

É certo que a arrecadação do poder público tem diminuído nos últimos anos e que a pandemia também provoca impacto negativo na economia e nas receitas do governo. Mesmo assim, cientistas e parlamentares dizem que, havendo vontade política, é possível, sim, poupar o setor científico de grandes perdas orçamentárias. O senador Izalci Lucas (PSDB-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, diz:

— Os governantes, de forma geral, só atuam pensando na próxima eleição, e não nas próximas gerações. Preferem investir em programas que tragam resultados imediatos e tenham bastante visibilidade, garantindo votos. A ciência não é assim. Os resultados científicos que vemos hoje costumam ser fruto de anos de investimento e nem sempre podem ser mostrados na propaganda eleitoral. Isso ajuda a explicar o descaso com a ciência.

Izalci é autor de um projeto de lei que proíbe o contingenciamento dos recursos do FNDCT (PLP 135/2020). Para este ano, do montante de R$ 5,2 bilhões, está prevista a liberação de meros R$ 600 milhões, ficando o restante contingenciado. O dinheiro do FNDCT não se origina do orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia, mas sim de parte da arrecadação de uma série de tributos federais. Entre 2004 e 2019, o fundo financiou mais de 10 mil projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, inclusive em empresas como a Embrapa e a Embraer.

O senador apresentou o projeto em maio. Diante das claras dificuldades da ciência brasileira para fazer frente à pandemia, os senadores o aprovaram praticamente por unanimidade (71 votos favoráveis e 1 contrário) em agosto. O projeto agora está na Câmara dos Deputados.

Senador Izalci Lucas, autor de projeto que preserva verbas da ciência (foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Na avaliação do presidente da SBPC, o que tem acontecido nos últimos governos federais é um “terraplanismo econômico” — expressão que faz referência aos negacionistas que vão contra a ciência e o próprio bom senso e dizem acreditar que a Terra é plana, e não redonda. Ildeu de Castro Moreira explica:

— Trata-se de uma visão estreita que predomina na área econômica do governo. Isso já existia no último governo e está se acentuando neste. São gestores que colocam a questão financeira acima de tudo e vão cortando recursos onde puderem, olhando apenas os números, sem se importar se os setores são estratégicos para o país. Para a área econômica, a ciência e a tecnologia são supérfluas. Tanto é assim que apenas 0,3% do Orçamento federal vai para essa área.

Na avaliação de Marcia Barbosa, uma das diretoras da Academia Brasileira de Ciências, a ciência tem cada vez menos dinheiro público porque os brasileiros em geral simplesmente não conseguem enxergar a importância do setor:

— Até a pandemia, ninguém falava em ciência. De repente, todo mundo começou a falar. Com isso, ficou claro o quanto as pessoas não sabem o que é o processo científico. Chega a ser assustador. As fake news encontraram terreno fértil. Isso tem a ver com as deficiências das nossas escolas. A educação científica é muito pobre. Se as pessoas não sabem o que é a ciência, não a valorizam. Se elas não a valorizam, elas não cobram do seu senador e do seu deputado que a protejam. Assim fica fácil fazer os cortes de verbas.

Atualmente, a Academia Brasileira de Ciências conduz as campanhas educativas Ciência Gera Desenvolvimento e Eu Confio na Ciência. No “novo normal” trazido pela pandemia, a entidade entende que cientistas poderiam deixar seus laboratórios por alguns momentos para ir aos colégios e aos meios de comunicação explicar de forma clara à sociedade por que a ciência é imprescindível. Barbosa exemplifica:

— As pessoas precisam entender que, se elas têm mais de 30 anos e estão vivas, isso se deve à ciência. Na Idade Média, pouca gente passava dos 30 anos. A longevidade aumentou porque a ciência melhorou a agricultura e vieram mais alimentos, produziu medicamentos e vacinas, criou o saneamento básico, trouxe conhecimento e informação. O próprio governo e a área econômica deveriam enxergar a importância da ciência. Se não fosse pelas nossas pesquisas científicas, não estaríamos extraindo tanto petróleo em águas profundas e produzindo tanta soja no Cerrado, que estão entre as maiores fontes de riqueza do Brasil. Tirar dinheiro da ciência é dar um tiro no pé.

A Agência Senado solicitou entrevista com porta-vozes do CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que gere os recursos do FNDCT, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Entrevista

Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) 

"Congresso pode alterar prioridades definidas pelo governo e favorecer a ciência no Orçamento" 

Agência Senado – A pandemia do novo coronavírus fez as pessoas acordarem para a importância da ciência?

Ildeu de Castro – Acredito que sim. Principalmente em razão da esperada vacina, o termo “ciência e tecnologia” se espalhou como nunca nos meios de comunicação e nas redes sociais. Isso é positivo. Ficou claro para as pessoas que a ciência é fundamental para enfrentar uma tragédia destas. Mas parece que não há a mesma consciência no governo brasileiro. Os países, em geral, estão investindo muitos recursos contra a covid-19. O Brasil, porém, tem investido muito pouco. Houve um edital recente do CNPq para financiar projetos ligados ao enfrentamento do vírus. Se todos os projetos apresentados fossem atendidos, exigiriam R$ 1,7 bilhão. Apenas os projetos de alta qualidade, aqueles recomendados por mérito, demandariam R$ 600 milhões. O edital, contudo, só disponibilizou R$ 50 milhões. Em meio a uma pandemia que já matou 140 mil brasileiros e vai matar mais, essa escassez de recursos é um absurdo.

Havia a expectativa de que a situação da ciência melhoraria quando o Ministério da Ciência e Tecnologia foi assumido pelo astronauta Marcos Pontes, um egresso do meio acadêmico e científico?

Sempre esperamos que a situação melhore, independentemente da origem do ministro. Já tivemos excelentes ministros cientistas, como Sergio Rezende e Marco Antonio Raupp, e também excelentes ministros de perfil político, como Ronaldo Sardenberg e Eduardo Campos. Temos um canal direto de diálogo com o atual ministro. Fazemos críticas, apresentamos sugestões. O problema é que, quando a questão financeira chega ao Ministério da Economia, a coisa fica difícil, porque predomina o “terraplanismo econômico”, aquela visão estreita que não alcança a importância da ciência. O Ministério da Ciência e Tecnologia continua sendo frágil dentro do governo, com recursos muito esvaídos, e precisa brigar para ter mais força política e orçamento.

O físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da SBPC (foto: Tania Rego/Agência Brasil)

O que o Senado e a Câmara dos Deputados podem fazer?

O primeiro passo é aprovar o projeto de lei do senador Izalci Lucas que impede o contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [FNDCT]. Neste ano, 90% do fundo está contingenciado, o que é inaceitável. O projeto já foi aprovado pelo Senado e agora depende da Câmara. O segundo passo que o Parlamento deve dar é injetar recursos na ciência. Todo ano, nós, as entidades científicas, vamos ao Congresso explicar aos parlamentares que o setor precisa de mais verbas. Sempre conseguimos contar com a sensibilidade dos senadores e dos deputados, e algumas correções são feitas no projeto de lei do Orçamento do ano seguinte. No entanto, são correções pequenas. O Congresso deveria ser mais firme e assumir a sua missão de discutir as prioridades do país e fazer as mudanças necessárias. Nas discussões do projeto orçamentário do governo, as prioridades podem ser mudadas, recursos de uma área podem ir para outra. O Congresso não é obrigado a acatar a vontade da área econômica do governo. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump tentou reduzir as verbas para ciência no ano passado, mas os dois partidos majoritários do Congresso se uniram e impediram que isso ocorresse.

Tendo mais recursos, a ciência brasileira vai mesmo crescer?

Sem dúvida. O Brasil tem um potencial gigantesco sendo desperdiçado. Veja toda a biodiversidade da Amazônia. Em vez de ser apropriada e explorada economicamente de forma sustentável, ela está sendo derrubada, queimada, destruída. Curiosamente, o Brasil até hoje não tem um grande programa nacional para a Amazônia. Também não tem um grande programa nacional para o mar ou para a energia renovável, apesar de todo o potencial. É por meio da ciência que podemos construir um projeto de país para as próximas décadas. Os países que fizeram isso avançaram. A China tinha o mesmo PIB do Brasil em 1995. A riqueza de um cidadão sul-coreano era a mesma de um cidadão brasileiro 30 anos atrás. A China e a Coreia do Sul, ao contrário do Brasil, apostaram pesadamente em ciência e educação. Veja onde estão agora.


Reportagem: Ricardo Westin
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Claudio Portella e Diego Jimenez
Design gráfico: Ronaldo Alves
Edição de Fotografia: Pillar Pedreira
Foto de capa: Fiocruz Imagens