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Capacitismo: subestimar e excluir pessoas com deficiência tem nome

Cintia Sasse
Publicado em 13/11/2020

Selo_Capacitismo Nao Tem Vez_05-11_lm-01.jpgUma violinista de 26 anos protagonizou em 2019 um caso de capacitismo evidente no aeroporto Guararapes, em Recife. A história ganhou repercussão nacional porque Uli Firmino foi impedida de viajar sozinha, mesmo apresentando laudo médico que atestava sua autonomia. O constrangimento ocorreu quando ela pediu mudança do assento próximo às turbinas do avião por causa da sensibilidade auditiva provocada pela síndrome de Asperger, um transtorno enquadrado no espectro autista (TEA).

Apesar de argumentar que viaja desde os 10 anos de idade sem nunca passar por problema semelhante, a violinista foi obrigada a enfrentar uma enorme burocracia por ter declarado a sua deficiência. Perdeu a data de uma cirurgia em Fortaleza, que foi remarcada posteriormente. E a companhia aérea foi multada em R$ 500 mil pelo órgão de Proteção e Defesa do Consumidor do estado (Procon-PE), fato amplamente noticiado.

O caso de Uli Firmino está entre os muitos episódios diários de preconceito e de discriminação envolvendo pessoas com deficiência no país. A violinista possui a mesma síndrome observada em talentos como o craque de futebol argentino Lionel Messi, diagnosticado aos oito anos; o ator britânico Anthony Hopkins e o falecido gênio da Física Albert Einstein.

A violinista Uli Firmino, vítima de capacitismo por parte de uma companhia aérea (foto: Taísa Guedes/Divulgação)

Segundo a senadora Mara Gabrili (PSDB-SP), que ficou tetraplégica aos 26 anos em decorrência de um acidente, ainda hoje é comum chamar de “pessoas normais” aquelas que não têm uma deficiência. Daí, ressalta a parlamentar, a importância da sociedade brasileira debater o capacitismo:

— Isso acontece por conta da construção social de um "corpo padrão". Muitos ainda subestimam a capacidade de uma pessoa em função de uma deficiência. O capacitismo define erroneamente a pessoa pela sua deficiência. Mas a pessoa é muito mais do que aquele impedimento físico, sensorial, intelectual ou mental, que adquiriu ao longo da vida ou nasceu com ele — explica Mara, que foi relatora na Câmara dos Deputados da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (PcD), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 2015).

Ela chama a atenção para o fato de que a acessibilidade não beneficia só a PcD. Quando a cidade constrói e mantém rampas de acesso, proíbe estacionar nesses locais e preserva calçadas, os benefícios alcançam outras faixas da população, como os idosos com pouca mobilidade, os pais que usam carrinhos para os seus bebês e mesmo as crianças pequenas que ainda não adquiriram segurança para andar. Mara reforça que não é a pessoa que tem um defeito, como muitos achavam antigamente, mas a sociedade é que precisa se conscientizar e implementar políticas públicas adequadas para um vasto rol de indivíduos com diferentes capacidades.

Mara Gabrilli: a pessoa é muito mais do que aquele impedimento físico, sensorial, intelectual ou mental (foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Origem

O termo capacitismo é relativamente novo e pouco utilizado no Brasil. Ganhou notoriedade nos Estados Unidos na década de 1980 durante os movimentos pelos direitos das PcD, segundo o senador Flávio Arns (Podemos-PR), que preside a Subcomissão Permanente da Pessoa com Deficiência.

— Desconheço o seu registro na legislação brasileira. No entanto, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) estabelece no seu artigo 4º que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades como as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação” — sublinha o parlamentar, que há 40 anos luta por uma sociedade mais inclusiva.

Arns lembra que como o termo foi criado no contexto de um outro país, independentemente do uso dele no Brasil, o importante é conhecer a realidade brasileira das PcD. A sociedade, acrescenta, precisa conhecer as normas vigentes, as lutas, as conquistas e avançar nas políticas públicas inclusivas.

— Precisamos ouvir as pessoas com deficiência, as suas famílias, os seus anseios e as suas necessidades. E lutarmos para que todos sintam-se cidadãos de direito — enfatiza.

A socióloga mineira Camila Lanhoso cita em artigo sobre capacitismo que, no Brasil, o termo foi registrado pela primeira vez nos anais da II Conferência de Políticas Públicas para LGBTs ocorrida em 2011. Ela reconhece que pode parecer algo desconexo que um termo para nomear formas de opressão dirigidas a pessoas com deficiência tenha surgido numa conferência voltada para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. De todo modo, foi nesse encontro que uma mulher branca surda lésbica se pronunciou sobre a existência do capacitismo.

A denúncia do capacitismo integra a luta por uma sociedade mais inclusiva (foto: André Gomes de Melo/Rio Solidário)

Polêmica

É inegável que houve muitos avanços após a Constituição de 1988. Mas como o universo das PcD é amplo e diverso, todas as mudanças de políticas públicas nessa área suscitam muita polêmica. Não há estatísticas oficiais seguras sobre as pessoas com restrições para se locomover, usar os cinco sentidos ou com deficiências múltiplas. O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia a Estatística (IBGE) registrou que 45,6 milhões de brasileiros (23,9% da população) apresentavam algum tipo de deficiência.

A proporção elevada chamou a atenção dos pesquisadores, que em 2018, com critérios e dados revisados, reformularam a projeção para 12,7 milhões de PcD no país, ou 6,7% dos brasileiros. Mesmo assim, só o próximo Censo poderá conferir segurança estatística aos dados, de acordo com especialistas no assunto.

A questão mais polêmica atualmente é a nova Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, oficializada pelo Decreto 10.502, de 2020. Os críticos às mudanças consideram o conteúdo da norma, que substitui um texto de 2008, exemplo claro de capacitismo.

O debate já está no Congresso. Os senadores Fabiano Contarato (Rede-ES) e Mara Gabrili assinaram um projeto de decreto Legislativo (PDL 437/2020) para sustar a nova política:

— Ela é excludente e incompatível com a inclusão e com normas jurídicas, como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2008 com status de Emenda à Constituição [Decreto 6.949, de 2009] — ressalta Contarato.

Fabiano Contarato é crítico ao decreto presidencial (foto: Pedro França/Agência Senado)

Contarato acrescenta que a convenção da ONU obriga o país a implementar um sistema educacional inclusivo, de inserção na comunidade e de combate à segregação. Além disso, o senador diz que o governo não ouviu as PcD e que a nova política contraria normas do próprio Estatuto da PcD.

O parlamentar destacou uma das principais críticas em relação ao novo decreto: a possibilidade de escolas particulares dificultarem o acesso ou recusarem a matrícula de alunos com deficiência. Por essa razão, a Rede Sustentabilidade ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 751, para suspender os efeitos do decreto e declará-lo inconstitucional.

Debate

Tanto entidades que representam as PcD quanto especialistas e parlamentares estão divididos nas suas avaliações. No entendimento do senador Flávio Arns, que desenvolve trabalho reconhecido junto às Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs), a nova política permite valorizar, preservar e reforçar a educação inclusiva, além de dar opções para que outros caminhos possam ser buscados.

Ele lembra que a área é extensa e variada, com pessoas cegas, surdas, com deficiências motora, intelectual e múltiplas, as que estão dentro do espectro autista e com distúrbios de comportamento. Para o senador, são sempre necessárias respostas a duas perguntas. A primeira é o que a pessoa precisa para se desenvolver, ser feliz, se integrar na família e na sociedade. A segunda é onde essa pessoa deve ser atendida.


— A resposta está na Constituição. Temos que ter um conjunto de políticas públicas capitaneadas pela educação, preferencialmente na escola comum, mas não exclusivamente. Porque muitas pessoas precisarão de outras alternativas, de mais apoios, de mais caminhos para que sejam atendidas — argumenta o senador.

Proposta

A diretora de Acessibilidade, Mobilidade, Inclusão e Apoio a PcD do Ministério da Educação, Nídia Regina Limeira de Sá, lembra que a nova política começou a ser discutida em 2016 e que havia muitas divergências sobre o foco na inclusão total, com todos os alunos nas classes comuns.

Segundo ela, alguns estados, como o Paraná e Mato Grosso do Sul, não seguiram a política de 2008. O Censo Escolar de 2019 mostrou um cenário bastante diverso. Muitos estados não tinham nenhuma escola especializada, como Acre, Roraima, Rio Grande do Norte, Alagoas e Espírito Santo.

Enquanto isso, o Paraná figurava na primeira posição, com 415 escolas especializadas, seguido de São Paulo, com 395; Minas Gerais, com 385 e o Rio Grande do Sul com 190. O contraste, acrescentou, era Santa Catarina possuir apenas uma.

Aula de música para alunos com deficiência em escola no Paraná (foto: Hedeson Alves/Ag. de Notícias do Paraná)

A proposta da nova política passou por um amplo processo de discussão promovida a partir de 2016 pela então Secretaria de Educação Continuada, Diversidade e Inclusão (Secadi), extinta no atual governo. Muitos consultores contribuíram para organizar o documento que ficou depositado no Conselho Nacional de Educação (CNE). Um deles foi a professora Maria Cláudia Santana Régis, com mestrado e doutorado em educação especial pela Universidade de São Paulo (USP).

Maria Cláudia conta que em 2018 apresentou um documento técnico à Secadi e ao CNE com sugestões de mudanças. Um dos aspectos abordados foi o aumento das ações judiciais contestando a política de 2008. Na Bahia, por exemplo, havia 228 processos ajuizados em 2017 na área da educação especial, com reclamações como exclusão em classes regulares e falta de vagas em escolas especializadas.

Em Goiás eram 152 ações em 2018 e 744 autos extrajudiciais, atendidos pelas juntas de conciliação, que variavam desde falta de professores especializados, recusas de matrícula até maus tratos e exclusão em sala de aula. A professora relata que havia muitas crianças matriculadas no ensino público que não frequentavam a sala de aula.

Criança com deficiência visual recebe atenção de professora em escola de Goiás (foto: Divulgação/Seduc-GO)

Excluídas

Para a diretora do MEC, a atual política preserva a inclusão e apenas proporciona maior flexibilidade ao sistema, atendendo mesmo quem está fora das escolas. Na falta de outras estatísticas, Nídia usa dados do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Assistência Social para apontar que há cerca de 200 mil crianças e jovens, entre 4 e 17 anos, fora das salas de aula.

Segundo a professora, cerca de 20% do universo atendido pela sua diretoria, projetado em cerca de 1,25 milhão de pessoas, — que além das PcD inclui os superdotados — frequentam escolas especializadas. O maior grupo, acrescenta, é o que apresenta “impedimento de longa duração de natureza intelectual”. Mas há lugares onde essas instituições inexistem. Uma alternativa aberta pela nova política é oferecer classes especializadas em escolas regulares.

Integrante do corpo docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Nídia sustenta que a nova política não é inconstitucional. Está alinhada com a convenção da ONU e com a legislação nacional vigente. Na avaliação dela, há muito desconhecimento sobre a nova política e disputas por interesses específicos.

A diretora do MEC assegura que negar matrícula no Brasil é crime previsto na Lei Brasileira de Inclusão. De acordo com ela, o CNE está finalizando as novas diretrizes nacionais da educação especial para atualizar o normativo de 2001. As propostas devem ser colocadas em consulta pública em breve e, na opinião de Nídia, vão clarear as dúvidas e mostrar como a nova política deve ser aplicada.


Entrevista

Senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP)

"Há um desmonte das políticas para pessoas com deficiência"

Mara Gabrilli em pronunciamento no Plenário do Congresso (foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Agência Senado — Como a sra. define o capacitismo?

Mara Gabrili — É comum, ainda hoje, encontrar referências às pessoas que não possuem uma deficiência como “pessoas normais”. Isso acontece por conta da construção social de um "corpo padrão". Muitos ainda subestimam a capacidade de uma pessoa em função de uma deficiência. O capacitismo define erroneamente a pessoa pela sua deficiência. Mas a pessoa é muito mais do que aquele impedimento físico, sensorial, intelectual ou mental, que adquiriu ao longo da vida ou nasceu com ele. Por isso, é tão importante discutir o capacitismo. Esse debate chega em um momento bastante preocupante, em que estamos vivenciando um desmonte das políticas para Pessoas com Deficiência em todas as esferas, com base em capacitismo. Muitas vezes isso acontece por maldade até, por crueldade, quando a pessoa desqualifica a outra por conta de um impedimento, acabando por discriminar e excluir. Mas há os que fazem por puro desconhecimento ou por preconceitos inconscientes. Por essa razão, a sociedade precisa debater o assunto — até para que haja um conhecimento amplo dos direitos das pessoas com deficiência. Por exemplo, estudar a Lei Brasileira de Inclusão, que eu tive a oportunidade de relatar ainda na Câmara dos Deputados. Essa lei foi um ótimo passo. Entre outros aspectos, ela reforça o direito de participação plena da pessoa com deficiência na sociedade, combate qualquer forma de discriminação e assegura a acessibilidade como um direito fundamental.

Esse conceito é novo no Brasil, mas é bem conhecido lá fora. O que marcou essa mudança de visão?

A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência trouxe, em 2006, um outro olhar e o modelo biopsicossocial no qual a deficiência está no meio. A inclusão não pressupõe "ses": se ele puder, se ele melhorar, se ele tiver condições. Não! A inclusão necessita de um estado eficiente que derrube as barreiras físicas e de comunicação, combata qualquer forma de discriminação e ofereça todas as condições para o ir e vir, para acesso e permanência em todos os serviços oferecidos para a população em condições de igualdade. Quando uma cidade melhora para quem tem uma deficiência, ela fica muito melhor, mais humana e acessível, para toda a população. Todo mundo ganha. Sempre compreendi a luta por políticas públicas para as pessoas com deficiência e para pessoas idosas, que são os segmentos mais vulneráveis, como um potente acelerador para um Brasil mais justo, igualitário e desenvolvido, melhor para todos os cidadãos.

Na sua história de vida, a senhora já se deparou com atitudes que podem exemplificar o capacitismo?

Quando fui nomeada a primeira secretária da Pessoa com Deficiência da cidade de São Paulo, em 2005, meu primeiro chefe de gabinete foi o Guilherme, que é uma pessoa cega. Como a secretaria era recém-criada e não havia sido prevista pela gestão anterior, tivemos que buscar inclusive um espaço para desenvolvermos o trabalho. Um dia surgiram dois espaços para visitar e eu pedi para o Guilherme ver um deles enquanto o secretário adjunto, que não tinha deficiência, estava vendo o outro. Logo depois, eu me peguei pensando que eu poderia ter colocado o Guilherme em uma situação constrangedora, afinal eu havia pedido para um cego ver um local. Mas, quando os dois voltaram, o adjunto me disse “achei bacana o espaço, a gente caberia lá.” Somente isso. O Guilherme me fez uma descrição minuciosa, falou sobre o número de mesas e de banheiros, da acústica, da circulação interna de ar, do piso, das janelas, enfim, ele de fato olhou com atenção o local. Por isso, costumo dizer que os limites que equivocadamente colocamos no outro, são limites da nossa cabeça. Não há vergonha nenhuma em perceber que, mesmo de modo inconsciente, temos algum preconceito. A vergonha está em não querer derrubá-lo.

A senhora considera a nova política para a educação especial (Decreto 10.502, de 2020) como um exemplo de capacitismo? Por que?

A Convenção da ONU consagrou uma mudança paradigmática na concepção da deficiência. A deficiência, que até então era considerada uma condição médica e estática da pessoa que a possuía — ou seja, uma “anormalidade” física, mental, cognitiva ou sensorial de seu “portador” — é definida, atualmente, como o resultado da falta de respostas que a sociedade e o Estado oferecem às características de cada um. Estamos diante de uma nova concepção da deficiência — denominada “social” —, em substituição ao modelo médico pretérito. O impacto dessa transformação não poderia ser outro, senão uma mudança de paradigma no enfrentamento de questões e soluções relativas à deficiência, bem como na implantação de ações e políticas públicas destinadas a garantir a plena inclusão na sociedade de pessoas sem discriminação em razão de suas diferentes formas de se locomover, de ouvir, de ver, de pensar, de aprender, de existir. O Decreto 10.502, de 2020, demonstra a incapacidade dos Ministérios da Educação e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de compreender ou implementar o modelo de direitos humanos da deficiência, segundo o qual são as barreiras dentro da comunidade e das escolas as responsáveis pela exclusão e não os impedimentos pessoais das pessoas com deficiência. A Política Nacional de Educação Especial, adotada em 2020, coloca claramente em seus artigos a previsão de que o aluno com deficiência será avaliado e que será buscado um modelo alternativo à escola comum quando esse aluno não se adequar ou não tiver condições. Se a referida avaliação é destinada somente a crianças, adolescentes e jovens que têm uma deficiência, ela se tornará claramente uma discriminação em razão da deficiência, conforme explicitado na Lei Brasileira de Inclusão. O texto da Lei 13.146, de 2015, em seu artigo 4º, diz : “Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.”

Como pretende negociar o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 437/2020, que assina com o senador Fabiano Contarato, para sustar o decreto 10.502, de 2020?

Precisamos fazer uma grande mobilização antes de colocar o PDL em votação. Toda a sociedade deve se envolver. O tema é extremamente importante, sensível e não podemos permitir que ele seja cooptado pela atual polarização política. Antes de pautá-lo é preciso garantir que todos os parlamentares tenham plena consciência da gravidade do decreto. E que consigamos derrubá-lo sem nos preocuparmos com as possíveis negociações em que se trocam votos por cargos.

Há muitos projetos que atendem as pessoas com deficiência parados no Senado, principalmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Como pretende articular para fazê-los tramitar na Casa?

Temos muitos projetos sobre os direitos das pessoas com deficiência tramitando não apenas na CCJ, mas em todo o Congresso Nacional. Temos buscado nos articular juntamente com a Frente Parlamentar do Congresso Nacional em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência para impulsionar a agenda do segmento tanto no Senado quanto na Câmara.

Alguns projetos relacionados aos direitos de pessoas com deficiência
Projeto Autor Explicação da ementa Localização atual
PEC 19/2014 Senador Paulo Paim e outros Inclui na Constituição Federal o direito à acessibilidade e à mobilidade entre os direitos individuais e coletivos Plenário
PL 1.211/2019 Senador Fabiano Contarato (Rede-ES) Estabelece como infração de trânsito, de natureza gravíssima, estacionar onde houver guia de calçada (meio-fio) rebaixada destinada ao acesso de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. CCJ
PL 262/2017 Senador Romário (Podemos-RJ) Estabelece que a interdição pode ser promovida pela própria pessoa com deficiência; que a entrevista terá assistência de equipe multidisciplinar; que a escolha de curador levará em conta a vontade da pessoa com deficiência e a ausência de conflito de interesses; que pode ser designado mais de um curador, em curatela compartilhada; que será preservado o direito à convivência familiar e comunitária. CCJ
PL 2.848/2019 Senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) Estende o acréscimo de 25% sobre o valor da aposentadoria para todos os segurados acometidos de invalidez, doença incapacitante ou qualquer outra situação que necessite da assistência permanente de outra pessoa. CAE
PL 277/2016 Senador Romário (Podemos-RJ) Obriga as empresas com 50 ou mais empregados a preencher seus cargos com pessoas com deficiência e com beneficiários reabilitados da Previdência Social, na seguinte proporção: de 50 a 99 empregados, 1 empregado; de 100 a 200 empregados, 2% por cento do total. CAS
PL 318/2015 Ex-senador José Medeiros (MT) Estabelece sanções aplicáveis em caso de descumprimento da lei que promove a acessibilidade das pessoas com deficiência. CCJ
PL 311/2018 Ex-senador Antonio Carlos Valadares (ES) Considera pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual, de comunicação ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. CDH
PL 2.709/2019 Senador Romário (Podemos-RJ) Estabelece que, até que sejam criados pelo Poder Executivo instrumentos para avaliação da deficiência, será suficiente laudo emitido por profissional habilitado para o reconhecimento de condições físicas, mentais, sensoriais ou funcionais que impliquem restrições no acesso a bens, serviços e espaços, limitando o exercício de direitos em igualdade de condições com as demais pessoas. Admite profissionais habilitados nas áreas da medicina, psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia ou terapia ocupacional. CDH
PL 378/2018 Ex-senador Dalirio Beber  Considera como incapaz de prover sua manutenção a pessoa com deficiência ou idosa cuja renda mensal per capita seja inferir a três quintos do salário mínimo. CAE
PL 1.235/2019 Senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) Determina a reserva de 1 cargo, em cada empresa que possua entre 50 e 99 empregados, a ser ocupado por pessoa com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social. CAS
PL 285/2015 Ex-senador Blairo Maggi (MT) Estende a obrigação de contratação de trabalhadores com deficiência para as empresas que contem com 15 ou mais empregados; determina, também, que o percentual de contratação será calculado proporcionalmente ao número de trabalhadores de cada estabelecimento da empresa e não a partir do total de empregados da empresa. CAS
PL 510/2015 Senador Romário (Podemos-RJ) Altera o Código de Trânsito Brasileiro para incluir a penalidade de apreensão do veículo em caso de estacionamento irregular em vaga para pessoa com deficiência. CCJ
PL 3.434/2020 Senador Paulo Paim e outros Torna obrigatória a política de inclusão de pessoas negras, indígenas e com deficiência em programas de pós-graduação das instituições federais de ensino superior. Prevê vagas suplementares para pessoas transgênero e quilombolas. Plenário
PDL 437/2020 Senador Fabiano Contarato (Rede-ES) e senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) Susta, nos termos do art. 49, V, da Constituição, a aplicação do Decreto Federal 10.502, de 2020, que cria a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Ainda não atribuído a comissão
Fonte: Gabinete da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP)

 

Classe hospitalar é quase invisível no país, diz professora

As chamadas classes hospitalares não foram incluídas no decreto 10.502, de 2020, que formalizou a nova política para a educação especial no Brasil. O alerta é da professora Ângela Sanchez, que trabalha na rede estadual de São Paulo atendendo crianças e jovens internados em hospitais, uma área com pouca visibilidade e não incluída em estatísticas oficiais.

Com base em uma tese de mestrado, o único levantamento que encontrou, Ângela estima a existência de 208 classes hospitalares em todo o país, das quais 73 em território paulista.

Apesar de ter um alcance pequeno, a professora lembra que o atendimento escolar dentro dos hospitais foi mencionado na política para a educação especial em 2008, mas não foi incluído no novo texto de 2020.

Convidada a implantar uma sala de aula em um hospital oncológico infanto-juvenil situado em Itaquera, distrito com de 204,8 mil habitantes na Zona Leste da capital paulista, Ângela cumpre rigorosa rotina diária para ensinar alunos que vão do primeiro ao nono ano do fundamental. O atendimento multisseriado eventualmente abrange ali estudantes do ensino médio ou mesmo da pré-escola.

A professora explica que os alunos das classes hospitalares enfrentam patologias diversas e o tempo de internação deles é muito variável. Os da área de oncologia, por exemplo, podem permanecem de um a três anos hospitalizados. O atendimento é quase individualizado.

Classe Hospitalar no Hospital Materno-Infantil (HMIB), em Brasília (fotos: Luis Tavares/Ascom/SEEDF)

Ângela conta que tem enfrentado situações difíceis ao longo de 25 anos de magistério. Uma delas foi a implantação do ensino no Hospital Infantil Cândido Fontoura, unidade de saúde estadual igualmente localizada na zona leste da capital paulista e especializada no atendimento de crianças e adolescentes. O nome da instituição é uma homenagem ao farmacêutico que inventou o conhecido fortificante Biotônico Fontoura. A educadora atendeu ali crianças com doenças crônicas que “moravam” no hospital. Ela lembra que durante 11 anos chegou a alfabetizar, com a presença obrigatória de fisioterapeutas, alunos dependentes de respiradores.

Geralmente são os hospitais que solicitam os professores às secretarias estaduais ou municipais de educação, mas às vezes a iniciativa de montar a infraestrutura dentro das unidades é do setor educacional. Ângela relata que até já conseguiu doações de equipamentos de informática para a sala de aula no Cândido Fontoura.

Outro esforço pessoal da professora é o de conhecer e identificar possibilidades para a troca de experiências com outros países. Recentemente, por meio de parceria com um hospital pediátrico em Londres, ela articulou um projeto de intercâmbio para a troca de desenhos entre crianças internadas em São Paulo e na capital inglesa. Enquanto as brasileiras desenharam festas folclóricas e locais importantes de São Paulo em tecido, as britânicas registraram, no mesmo material, a rainha e pontos turísticos famosos.


Reportagem: Cintia Sasse
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição e tratamento de fotos: Ana Volpe
Foto de capa: StockPhotos