Cresce preocupação com desperdício de alimentos

Guilherme Oliveira | 11/09/2018, 10h11

A América Latina perde 127 milhões de toneladas de alimentos a cada ano. Um quinto das carnes, um quarto dos cereais e mais da metade das frutas e verduras ficam pelo caminho e não são consumidos, estima a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Problemas estruturais de produção e logística respondem por parte desse cenário, mas o consumidor final também tem sua parcela de culpa — e não apenas no que diz respeito a comida estragada. Pesquisa recente revelou que 60% dos brasileiros têm o hábito de descartar alimentos ainda em boas condições.

Em um mundo de população crescente e recursos escassos, a questão ganha urgência. Segundo a FAO, a humanidade já desperdiça um terço de tudo aquilo que produz para se alimentar, num total de 1,3 bilhão de toneladas jogadas fora.

A redução do desperdício à metade é um dos objetivos da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). É uma meta ambiciosa. Conforme estimativa da consultoria Boston Consulting Group, se persistir o ritmo atual, até 2030 a perda será de 2 bilhões de toneladas.

Isso significará um baque de US$ 1,5 trilhão (mais de R$ 6 trilhões) na economia mundial. Esse valor inclui os custos da energia para produzir a comida descartada e da comercialização e armazenagem. Além disso há o chamado custo de oportunidade: a “perda” de tudo aquilo que não está sendo produzido em razão do uso da infraestrutura na produção de alimentos que serão perdidos.

O representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic, destaca que o impacto econômico pode ser sentido no supermercado:

— Os produtos ficam mais caros porque o custo do desperdício é embutido no preço final para o consumidor. Quando desperdiçamos, estamos fazendo um mal a nós mesmos.

Impacto ambiental

Bojanic também chama a atenção para o fator ambiental. O apodrecimento de alimentos que ficam pelo caminho e não recebem o tratamento adequado libera no ar e no solo gases e substâncias poluentes, tais como o gás carbônico, o gás metano e o ácido nitroso.

— As emissões de gases do efeito estufa por desperdício de alimentos são equivalentes às de todo o parque automotor do mundo — alerta.

O caso brasileiro é particularmente desafiador porque reúne graus diferentes de obstáculos, explica Gustavo Porpino, analista da Secretaria de Inovação e Negócios da Embrapa.

— Os países mais desenvolvidos concentram o desperdício na etapa de consumo. Problemas derivados da logística inadequada são vivenciados pelos países mais subdesenvolvidos.

A perda pré-consumo pode ocorrer em vários momentos: na colheita, armazenagem, processamento ou transporte. Porpino observa que a infraestrutura do país não tem acompanhado o avanço produtivo no campo, criando gargalos.

— A produção de alimentos no Brasil cresceu exponencialmente nas últimas três décadas, mas os investimentos em agrologística para escoar a safra não foram suficientes.

Esses gargalos são diferentes para cada nível de produtor.

— Os pequenos e médios produtores têm dificuldades de acessar conhecimento por meio da assistência técnica e da extensão rural, porque a rede pública nos estados enfrenta contingenciamento de recursos. Também há dificuldade de acesso ao mercado. Por outro lado, grandes produtores precisam atender altos padrões de qualidade exigidos pelo comprador, e parte da perda é derivada dessas exigências no padrão estético — explica.

Segundo a FAO, 28% da perda anual de alimentos se dá ainda na fase de produção. Outros 17% ocorrem durante o transporte. Deficiências estruturais e burocracia estão entre as causas apontadas para justificar as falhas na distribuição.

Diretor-executivo da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Bruno Batista aponta que todos os tipos de transporte mais usados têm alguma defasagem: nas rodovias, falta pavimentação e duplicação; nas ferrovias, a integração entre regiões é dificultada pela falta de uniformidade; os rios têm ampla gama de problemas.

— Há dificuldades na implementação dos investimentos programados, em virtude de lentidão na elaboração de planos, incorreções nos projetos e dificuldades em processos licitatórios. A participação do setor privado, apesar dos avanços regulatórios atuais, enfrenta obstáculos pela insegurança institucional — lamenta ele.

Esses problemas estruturais causam acidentes e atrasos que levam à perda de produtos no caminho. Também há gargalos nos pontos de distribuição e recebimento, em especial nos portos, diz.

Sem políticas

O Brasil não possui uma política nacional de combate ao desperdício de alimentos estruturada em lei. Não é por falta de tentativa: há iniciativas tramitando há mais de 20 anos.

Um exemplo é a chamada Lei do Bom Samaritano, um projeto do Senado apresentado em 1997 e que até hoje não foi aprovado em definitivo. Seu intuito é incentivar pessoas e empresas a doar alimentos em excesso para instituições de caridade. Para isso, o texto propõe isentar o doador de responsabilidade em caso de dano ao beneficiário.

O projeto passou no Senado, mas aguarda análise da Câmara dos Deputados.

Situação semelhante vive a proposta, mais recente, de criação da Política Nacional de Combate ao Desperdício de Alimentos. Ela normatiza o processo de doação de alimentos sobressalentes. Aprovado em 2016, também está na Câmara.

Além de facilitar a doação, outra possível via de ação do Legislativo é a desoneração de tecnologias que prolongam a vida útil dos alimentos, como embalagens inteligentes.

A FAO calcula que, na América Latina, maus hábitos em casa, como a tradição de fartura à mesa, respondem por quase um terço do desperdício. Para a nutricionista Andrezza Botelho, mudar essa cultura para obter o máximo aproveitamento dos alimentos tem um impacto positivo social, ambiental e também na saúde.

— As pessoas não prestam atenção no que comem — diz.

A mudança de hábitos passa por toda a relação com a comida, das compras até o preparo e o consumo, afirma a nutricionista.

A conscientização não precisa vir do dia para a noite. Construir uma nova relação com a comida é um processo gradual, diz a autônoma Nicole Berndt, que há dois anos vem transformando a rotina familiar para reduzir a produção de lixo.

Ela conta que começou a buscar produtos mais saudáveis e naturais para combater alergias. Nessa procura, acabou entrando em contato com iniciativas de estímulo à redução do desperdício.

— Mudei a forma de consumir. Parei de frequentar grandes supermercados e fui para lojas a granel, onde posso levar potinhos para comprar coisas que são compotáveis. Compro a quantidade que eu preciso, apenas o que usamos. É muito difícil estragar.

Nicole relata suas experiências no blog Casa sem Lixo, em que compartilha dicas para uma vida com menos rejeitos. A sugestão que ela dá a quem quiser embarcar nesse estilo é não radicalizar.

— Comece por onde é mais fácil. Mexer com alimentação é mexer com hábitos. Tem que ser gradativo.

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Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)