Cintia Sasse

 

Em plena madrugada, no início de abril, Adelir Carmem Lemos de Góes, de 29 anos, foi surpreendida pela visita de um oficial de justiça acompanhado de policiais armados que a forçaram, com o marido, a acompanhá-los a um hospital em Torres, município distante quase 200 quilômetros da capital gaúcha, onde foi submetida a uma cesariana sem o seu consentimento. O caso dramático e inédito de Adelir mobilizou pelas redes sociais protestos de defensores do parto humanizado e escancarou à opinião pública um dos principais desafios das políticas voltadas para a saúde da mulher: a necessidade de mudar o modelo que fez do Brasil o campeão disparado das cesáreas no mundo.

 

Embora haja uma tendência mundial de aumento desse tipo de operação para a chegada dos bebês — em decorrência, conforme documento do Ministério da Saúde (MS), de melhor acesso aos sistemas de saúde, maior disponibilidade de tecnologias, melhoria das técnicas cirúrgicas e anestésicas, vantagens financeiras pelo custo e planejamento desse tipo de cirurgia e a percepção sobre a segurança de certos procedimentos — os países acendem o sinal vermelho quando a proporção chega a 30%.

 

Há cinco anos, o Brasil cruzou a linha dos 50% de partos por cesárea. E de lá para cá, só tem aumentado, distanciando-se cada vez mais dos 15% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Apesar das iniciativas do governo nos últimos 20 anos, não houve reversão do quadro. O modelo brasileiro continua centrado na medicalização dos partos e nos hospitais.Maria Esther Vilela, coordenadora geral de saúde das mulheres do MS, em entrevista ao Jornal do Senado, informa: “98% dos partos no país são hospitalares”

 

Considerada a maior pesquisa sobre parto realizada no país, Nascer no Brasil, divulgada recentemente pelo MS e pela Fiocruz, entrevistou 23.894 mulheres atendidas em maternidades públicas, privadas ou conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012. Foram coletados dados em 266 hospitais de 191 municípios, incluindo todas as capitais e cidades do interior de todos os estados. Os resultados comprovam que não há recuo nas cesáreas.

 

Quase um milhão de mulheres são submetidas a parto cirúrgico todos os anos, mesmo sem indicação médica adequada, inclusive adolescentes, cuja taxa atingiu 42%. Segundo a coordenadora da pesquisa, a epidemiologista Maria do Carmo Leal, não há justificativas clínicas para percentuais tão elevados. Essas cirurgias, continua, expõem as mulheres e os bebês a riscos desnecessários e aumentam os gastos do país com saúde. O estudo mostrou que quase 70% das entrevistadas desejavam o parto vaginal no início da gravidez, mas poucas são apoiadas nessa decisão durante a gestação e muitas são induzidas pelos próprios obstetras.

 

Esse excesso de cesarianas produziu outro problema: a proporção elevada de bebês retirados antes da hora. Isso os expõe a maiores riscos, inclusive com internações mais frequentes em UTIs neonatais. A pesquisa indicou que 35% dos bebês brasileiros nasceram com 37 ou 38 semanas de gestação, ou seja, no limite da prematuridade. Se tivessem alcançado 39 semanas ou mais de gestação, respeitado o tempo normal de nascimento, eles poderiam ganhar mais peso e mais resistência para chegar ao mundo. O estudo apontou também que a taxa de prematuros (antes de 37 semanas) atinge 11,5%, proporção, por exemplo, 60% mais alta do que na Inglaterra.

 

Reação no Congresso

 

Essa situação alarmante e o caso Adelir, o único a ter interferência judicial para obrigar uma mulher em trabalho de parto a fazer cesárea, contribuíram para reacender os debates no Congresso. Na terça-feira passada, a pedido das senadoras Ana Rita (PT-ES) e Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), audiência conjunta da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e da Comissão de Assuntos Sociais (CAS) iniciou o ciclo de discussões no Senado. No começo de maio, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara realizou o Seminário Faces da Violência contra a Mulher.

 

As duas Casas se debruçaram sobre temas importantes, como violência obstétrica; desrespeito à mulher em decisões sobre seu corpo, prevalecendo opiniões médicas, como no caso Adelir; falhas das faculdades que continuam jogando no mercado profissionais desatualizados e despreparados; ausência ou pouca informação que oriente a mulher nas suas escolhas; ganhos econômicos e financeiros desse tipo de assistência; e a necessidade de resgatar as experiências positivas de um modelo que foi sendo substituído, progressivamente, a partir dos anos 70.

 

Atenção Domiciliar

 

Até meados do século 20, os brasileiros vinham ao mundo pelas mãos de obstetrizes e parteiras. Os partos normais prevaleciam. Eram poucas as cesáreas. Segundo estudo citado no documento Saúde Brasil, do MS, a assistência à mulher no Rio de Janeiro, entre 1920 e 1960, capital do país na época, se organizava de quatro formas: Serviço Obstétrico Domiciliar (SOD) do modelo sanitarista, proposta filantrópica das damas da sociedade, assistência hospitalar individualizada e assistência obstétrica integrada, que consistia de uma rede, espalhada nos diversos bairros da cidade, de consultórios de pré-natal acoplados a consultórios de higiene infantil, ambos articulados com uma maternidade e com um SOD.

 

Muitos fatores influíram para tirar o protagonismo da mulher no momento mais especial de sua vida. Um deles foi o avanço da tecnologia. Isso fez com que o médico não pudesse ir mais à casa das gestantes com uma simples maleta. “O cuidado médico foi se sofisticando e as gestantes passaram a ter que ir ao hospital para fazer determinados procedimentos”, explica a médica e professora de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB) Daphne Rattner, presidente da Rede de Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), entrevistada pelo Jornal do Senado.

 

As parteiras e as obstetrizes perderam espaço no novo modelo de assistência médico-hospitalar urbano. Em 1972, segundo Daphne, a última escola de obstetrizes do país, ligada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), encerrou suas atividades. Somente em 2004, o curso foi reaberto na USP Leste. Enquanto essa mudança estava em curso no Brasil, países europeus como Inglaterra, Holanda, Alemanha e Espanha continuavam desenvolvendo a assistência às mulheres com enfermeiras obstetras, obstetrizes e parteiras. Nesse modelo, os médicos só entram quando os partos complicam, apresentando risco real de morte para a mãe e o bebê.

 

Violência obstétrica

 

O ingresso da mulher no mercado de trabalho, a pressa do mundo moderno, a mudança na estrutura de saúde do país, com a criação do já extinto Instituto Nacional de Assistência Médica e da Previdência Social (Inamps), são alguns dos outros fatores apontados pelo ministério. Dados de 1970 mostram que a taxa de cesárea era de 14,6%, ascendendo a 32% em 1980 nos hospitais vinculados ao Inamps. Em 2000, eram de 38% e, dez anos depois, 52%.

 

No entanto, existe um fator delicado que induziu muitas mulheres brasileiras à cesárea: práticas que hoje são consideradas como violência obstétrica associaram o parto normal a momentos de medo, desamparo, de uma verdadeira tortura, dependendo do hospital e do médico. Isso é tão real e presente que uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, revelou que uma entre quatro mulheres brasileiras declara ter sofrido algum tipo de violência obstétrica.

 

Essa proporção assustadora constou do relatório final da CPI da Violência contra a Mulher, sob responsabilidade da senadora Ana Rita. A CPI investigou durante 16 meses o funcionamento da rede de proteção às brasileiras vítimas de agressões. O trabalho mais focado na Lei Maria da Penha foi tratado em um encarte do Jornal do Senado, premiado recentemente (O INFERNO DAS MULHERES). Apesar de não investigar diretamente a obstétrica, a CPI a incluiu entre as formas de violência contra as mulheres brasileiras.

 

E no que ela consiste? O conceito internacional a define como qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), ou ainda ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.

 

Há um leque amplo desse tipo de violência. Ativistas do parto humanizado apontam, entre esses atos, frases usuais nos hospitais, e não só nos públicos, que desqualificam e ofendem a mulher, como “para de berrar, na hora de fazer não gritou” ou “não faça escândalo”. São tratamentos agressivos, grosseiros e zombeteiros; nomes infantilizados e diminutivos; procedimentos dolorosos, desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, submeter a mulher a mais de um exame de toque, às vezes por mais de um profissional, posição ginecológica com portas abertas, dar hormônios (ocitocina) para agilizar o parto, fazer episiotomia (incisão na região do períneo, entre o ânus e a vagina, para aumentar o canal do parto) sem consentimento.

 

Algemadas

 

E não para por aí. Existe inclusive o descumprimento de leis, como a que garante às parturientes, no âmbito do SUS, o direito à presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, no parto e no pós-parto imediato (Lei 11.108/2005), que se originou de um projeto do Senado de autoria da atual secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, Ideli Salvatti, na época em que era senadora. E outra que assegura à gestante conhecer e se vincular previamente à maternidade onde receberá assistência no âmbito do SUS (Lei 11.634/ 2007).

 

Os abusos são tantos que Ana Rita, relatora da CPI da Violência contra a Mulher, pediu, durante a audiência da CDH e da CAS, que eles sejam denunciados pelo Disque 180 (a central da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) que atende os casos de vítimas de agressões), o que já está sendo providenciado pelo governo federal.

 

Se todo esse desrespeito ocorre com mulheres livres, imagine o que acontece com as encarceradas. Há quase três anos, advogadas da Pastoral Carcerária produziram documentário intitulado Mães do Cárcere, com o objetivo de discutir questões relativas à maternidade no sistema prisional do país. Há depoimentos estarrecedores. Um deles, o de uma ex-usuária de crack, que deu à luz o sexto filho amarrada à maca por corrente em um dos pés e com as mãos algemadas. “Minha perna estava inchada. Fiquei com uma levantada, mas não dava para ficar na posição de parto”, conta a presidiária, cuja filha foi levada para um abrigo e dada para adoção sem conhecimento da mãe.

 

Integrantes do movimento pelo parto humanizado conhecem esses relatos. Segundo a presidente da ReHuNa, essa é uma pauta que deve ser tratada em breve. Apesar das iniciativas do governo, como a Rede Cegonha, Daphne afirma que os defensores do “empoderamento da mulher” no parto e no nascimento dos seus bebês ainda são poucos.

 

O movimento se articula principalmente pelas redes sociais e enfrenta a resistência da maioria dos obstetras, que prefere continuar com as cesáreas eletivas (desnecessárias).

 

Além disso, muitas faculdades de medicina, acrescenta Daphne, rejeitam incorporar aos cursos de obstetrícia as mais atualizadas evidências científicas, que colocam por terra a opção da cesárea em partos de baixo risco. Documento do ministério mostra que as mulheres submetidas a cesáreas têm 3,5 vezes mais probabilidade de morrer do que as que fazem parto normal, conforme dados colhidos entre 1992 e 2010. Essa relação sobe para 5 vezes quando se avalia a infecção puerperal, com base em dados de 2000 a 2011.

 

Os interesses econômicos e financeiros não são só dos médicos, que ganham mais com as cesáreas, com menor risco de se envolverem em questões judiciais e com a comodidade de planejamento das suas agendas. Os hospitais podem cobrar mais pelos procedimentos adotados nesse tipo de cirurgia. De acordo com a coordenadora-geral de Saúde da Mulher do ministério, em alguns planos de saúde a taxa de cesárea chega a 100%.


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