Senado e Câmara aprovaram Lei Áurea em 5 dias

Ricardo Westin | 07/05/2018, 09h55

A lei mais famosa da história do Brasil completará 130 anos neste domingo. Em 13 de maio de 1888 (também um domingo), a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, libertando os escravos e implodindo o famigerado sistema socioeconômico que vigorava desde o Descobrimento.

A Lei Áurea nasceu em tempo recorde. O governo imperial enviou ao Parlamento numa terça-feira o projeto de lei que aboliria a escravidão. Os deputados aprovaram o texto na quinta. Os senadores, no domingo. A lei foi sancionada pela princesa imediatamente, e o Rio, capital do Império, explodiu em festa.

A aprovação, contudo, não foi unânime. Documentos guardados no Arquivo do Senado revelam um lado pouco conhecido da história: houve um grupo de parlamentares — reduzido, porém ruidoso — que se posicionou contra a Lei Áurea. Cinco senadores e nove deputados votaram pela derrubada do projeto.

Defensores dos interesses dos fazendeiros do café, eles profetizaram em tom catastrofista que o fim abrupto do trabalho escravo tornaria a agricultura inviável e, como consequência, levaria a economia nacional à ruína.

Principal líder da bancada escravagista, o senador Barão de Cotegipe (BA) discursou:

— Tenho conhecimento da nossa lavoura, especialmente das províncias de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, e afianço que a crise será medonha. A verdade é que haverá uma perturbação enorme no país durante muitos anos.

O senador Paulino de Souza (RJ), ele próprio um latifundiário do Vale do Paraíba (região entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro), bateu na mesma tecla:

— O elemento servil é o único trabalho organizado em quase todo o país, inclusive na extensa e rica zona das margens do Rio Paraíba, que tem sido nestes últimos 50 anos a oficina da riqueza nacional. Eu, ligado por muitos laços com os outros produtores da região, tenho o dever de colocar-me na resistência, em defesa de tamanhos e tão legítimos interesses, que entendem tanto com a fortuna particular como com a ordem econômica e financeira do Estado.

Em outra frente, Cotegipe classificou o projeto de inconstitucional:

— A Constituição, as leis civis, as eleitorais, as de impostos etc., tudo reconhece o escravo como propriedade. Mas, de um traço de pena, legisla-se que não existe mais tal propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem atenção a direitos adquiridos? Daqui a pouco se pedirá a divisão dos latifúndios, a expropriação, por preço mínimo ou de graça. Esperem. O primeiro passo é o que custa a dar, depois...

Caridade e filantropia

Pela rejeição do projeto da Lei Áurea, Cotegipe chegou a recorrer a argumentos humanitários:

— Agora entro no mar da caridade e da filantropia e pergunto qual é a sorte dos libertados, quais os preparativos para que aqueles que abandonarem as fazendas tenham ocupação honesta. Temos um frisante exemplo no Peru. Ali, os escravos foram de uma vez libertados. Uma pequena parte continuou nas fazendas, outra parte morreu pelas estradas e nos hospitais, e outra foi morta a tiro. Quer dizer que estes últimos se tornaram saqueadores, atacavam os viandantes e as fazendas e praticavam toda casta de barbaridade.

A bancada abolicionista reagiu. O senador Dantas (BA) assegurou que o discurso dos dois colegas contrários à Lei Áurea era exagerado e falso:

— Nos últimos 17 anos [por força da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários], 800 mil escravos desapareceram do Brasil. É justamente neste período que se nota a maior riqueza no país, grande aumento de trabalho e produção e, como consequência, considerável elevação da renda pública. Se foram essas as consequências da diminuição do trabalho escravo em mais da metade, o que se deve esperar é que o desaparecimento de 600 mil criaturas escravas não produzirá a nossa ruína, antes aumentará a nossa prosperidade, graças ao trabalho livre e nobilitado.

O senador João Alfredo (PE) explicou que, concretizada por meio de lei e conforme o desejo da Coroa e do Parlamento, a abolição seria uma medida prudente e estratégica, pois impediria o país de mergulhar numa guerra civil entre abolicionistas e escravagistas, tal qual a Guerra de Secessão, que arrasara os Estados Unidos duas décadas antes. A preocupação não era exagerada. O Brasil já assistia a confrontos isolados e até sangrentos entre os dois lados.

— Muito infeliz foi o Brasil herdando a escravatura. Porém, mais infeliz será se a sua extinção não for conseguida mediante sábias cautelas e previsões, de modo que não acarrete graves perturbações — disse João Alfredo. — Ninguém aspira à extinção com mais ardentes votos do que eu, mas desejo a reforma com espírito e processo conservadores.

Décadas antes, dom Pedro II havia fechado com a poderosa classe dos latifundiários uma espécie de acordo tácito por meio do qual a escravidão não seria abolida repentinamente. Em vez disso, seria eliminada de forma lenta, gradual e segura, de modo a não provocar nenhum grande abalo nas plantações, responsáveis pela sustentação política e econômica do Império.

Foi buscando a abolição gradual que se aprovaram a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885). Pela primeira, os filhos de escravas passaram a nascer livres. Pela segunda, os escravos passaram a ganhar a liberdade aos 60 anos.

As duas leis bastariam para que a escravidão encolhesse até desaparecer naturalmente por volta de 1930. Considerando a alta taxa de mortalidade dos negros e o crescente número de cartas de alforria, o fim poderia vir antes disso.

Pressão do papa

Esse pacto não escrito entre a Coroa e a elite foi lembrado no Senado, de forma sutil, nas discussões do projeto da Lei Áurea.

— Pretende-se dividir os brasileiros em escravocratas e não escravocratas, tornando odiosos aqueles que pugnam pela restrita execução das leis de 1871 e 1885 — afirmou o senador Cotegipe. — Isso não é certo. Na prática, a escravidão já está extinta. A questão é apenas de prazo.

Às vésperas de 1888, porém, muita coisa mudou e aquele acordo tácito se tornou insustentável. O movimento abolicionista cresceu de forma extraordinária e intensificou a sua propaganda. Jornais e revistas entraram com tudo na campanha. Ante tantos argumentos, a crescente elite urbana, menos dependente dos escravos do que a elite rural, se convenceu de que já passava da hora de acabar com a escravidão.

O Exército, por sua vez, estava farto das incômodas missões de caçar e matar negros fugidos e destruir quilombos. Além disso, havia pressões internacionais. O Reino Unido exigia leis abolicionistas desde a Independência. O papa Leão XIII chegou a criticar publicamente o sistema escravagista do Brasil. Em 1886, o senador Dantas afirmou:

— Sempre que penso que hoje o Brasil é a única nação do mundo cristão com escravos, sinto uma revolta contra esse obscurantismo e contra o desconhecimento dos direitos da civilização, do cristianismo e da liberdade. Temos que acabar de uma vez com essa instituição daninha e maldita que ainda existe.

A grande reviravolta ocorreu em junho de 1887, quando dom Pedro II viajou para a Europa com o objetivo de cuidar da saúde, debilitada pelo diabetes, e a princesa Isabel assumiu a Coroa pela terceira e última vez. Católica fervorosa e abolicionista convicta, ela decidiu que era o momento de romper o acordo pela abolição gradual e sepultar imediatamente a escravidão.

O plano só não vingou em 1887 porque o primeiro-ministro do Império era o Barão de Cotegipe, o mesmo senador que no ano seguinte faria discursos inflamados contra o projeto da Lei Áurea. O primeiro-ministro escravagista fez de tudo para frear os ímpetos da princesa.

Apoiados por Isabel, senadores e deputados apresentaram diversos projetos de lei abolicionistas em 1887. Uma proposta do senador Dantas previa o fim da escravidão para 31 de dezembro de 1889 e uma espécie de reforma agrária, com os ex-escravos sendo assentados em glebas às margens de rios e ferrovias.

Um projeto do senador Escragnolle Taunay (SC) marcava a abolição para o Natal de 1889, com a obrigação de os ex-escravos continuarem trabalhando para os ex-senhores por mais um ano, agora com salário. A proposta também determinava que o governo espalharia os libertos pelo Império, de modo a evitar a sua “acumulação” nas cidades.

Manobra da princesa

O primeiro-ministro conseguiu engavetar todos os esboços da Lei Áurea. A princesa, então, percebeu que, se quisesse que a causa abolicionista prosperasse, teria que derrubar o chefe do gabinete ministerial. Em março de 1888, usando como desculpa um incidente na segurança do Rio, Isabel exigiu que Cotegipe demitisse o chefe de polícia da capital. Ofendido, ele se recusou a fazê-lo e renunciou.

Livre do incômodo primeiro-ministro, a princesa escolheu como substituto o senador João Alfredo, afinado com as ideias abolicionistas. Isabel, que já tinha o apoio popular, ganhou o respaldo político que lhe faltava para acabar com a escravidão.

Em 3 de maio, na fala do trono (discurso com o qual a Coroa abria os trabalhos do Parlamento), Isabel avisou aos senadores e deputados que queria a aprovação da Lei Áurea, “aspiração aclamada por todas as classes”. No dia 8, a proposta do governo chegou à Câmara. No dia 13, o sucinto projeto — com dois artigos — foi transformado em lei.

A pressão e a pressa foram tantas que o Senado trabalhou inclusive no sábado e no domingo. A comissão de senadores encarregada de fazer a primeira análise do texto emitiu seu parecer favorável em cinco minutos.

Em todas as sessões, a população encheu as galerias e os arredores da Câmara e do Senado. O deputado Andrade Figueira (RJ), contrário à abolição, irritou-se com a “invasão de pessoas estranhas à Câmara” e disse que a “augusta majestade do recinto” havia virado um “circo de cavalinhos”. O deputado Joaquim Nabuco (PE), célebre abolicionista, acusou o colega de ter “coração de bronze”.

No final, atropelados pela onda abolicionista, os parlamentares escravocratas já sabiam que perderiam e até passaram a admitir a abolição imediata — mas com a condição de que o governo indenizasse os senhores com títulos da dívida pública. Inúmeros projetos de lei com essa previsão foram apresentados antes e depois da Lei Áurea, mas nenhum vingou.

— O cidadão brasileiro não pode ser privado de uma propriedade legal e garantida senão mediante prévia indenização do seu valor. É o que está na lei fundamental do Império — discursou no dia 13 o senador e latifundiário Paulino de Souza.

O historiador Mauro Henrique Miranda de Alcântara, autor de D. Pedro II e a Emancipação dos Escravos, explica que a indenização estava fora de cogitação:

— O Império vivia uma crise econômica, em parte ainda decorrente da Guerra do Paraguai. Além disso, o movimento abolicionista conseguiu convencer a sociedade de que a escravidão era uma coisa monstruosa. Com tal, seria inadmissível indenizar alguém que havia mantido pessoas escravizadas. Houve quem pedisse que os escravos fossem indenizados.

Pena de ouro

Ainda na histórica sessão do Senado em 13 de maio de 1888, o senador Paulino encerrou sua fala da seguinte maneira:

— São tantas as impaciências que sou obrigado a concluir meu pronunciamento sem demora. Confesso-me vencido. Cumpri, como as circunstâncias permitiram, o meu dever de senador. Agora posso cumprir o de cavalheiro, não fazendo esperar uma dama de tão alta hierarquia.

Sarcástico, Paulino referia-se a Isabel. A princesa aguardava no Paço da Cidade a chegada da Lei Áurea, que, para entrar em vigor, dependia de sua sanção. Uma delegação de senadores foi encarregada de levar-lhe o livro de leis, onde ela, com uma pena de ouro, deixaria sua assinatura. O trajeto dos parlamentares demorou mais do que o previsto porque o centro da cidade estava tomado por uma multidão efusiva.

— Seria o dia de hoje um dos mais belos da minha vida se não fosse saber meu pai enfermo — disse Isabel aos senadores.

A profecia dos escravocratas não se concretizaria. A libertação dos escravos, abrupta e sem indenização, não levou o Brasil à ruína. Mas implodiu o Império. Os latifundiários do café retiraram a sustentação que vinham dando à Coroa e, em 1889, respaldaram o golpe militar que implantou a República.

De acordo com o historiador Bruno Antunes de Cerqueira, presidente do Instituto Cultural Dona Isabel I, havia resistência à princesa como herdeira da Coroa, por ser mulher, religiosa, liberal e casada com um estrangeiro (o francês Conde d’Eu).

— Num cálculo político, a princesa apostou na abolição como a medida que sedimentaria o seu reinado. Quis mostrar que era, sim, forte e capaz de tomar decisões importantes para o país. Ela indicava que, como imperatriz, continuaria com as medidas abolicionistas e integraria os ex-escravos à sociedade. Isso afrontava a elite agrária. O golpe de 1889 não foi contra o reinado de Pedro II, mas contra o futuro reinado de Isabel.

A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira segunda-feira do mês. Acesse http://bit.ly/arquivoS

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)