Orçamento taxava dono de escravo e previa salário para dom Pedro II

Ricardo Westin | 05/12/2016, 14h29

O Orçamento nacional existe há quase 200 anos. É quase tão antigo quanto o Brasil independente. Foi a Constituição do Império, a primeira do país, de 1824, que obrigou o governo a criar e submeter ao Senado e à Câmara dos Deputados uma planilha contendo, de um lado, a previsão do dinheiro que será arrecadado com impostos ao longo do ano e, do outro, a previsão de como essa arrecadação será investida na máquina estatal e nas ações públicas, como iluminação e segurança.

Quem mergulha nos velhos Orçamentos imperiais e consegue vencer a numeralha e os jargões contábeis do tipo “dotação” e “exercício financeiro” acaba conhecendo a história do Brasil sob um prisma fascinante e pouco explorado.

Na coluna dos tributos que abasteciam os cofres do Império, estava a taxa dos escravos. O valor que o fisco cobrava dos proprietários variava conforme a localidade. Em 1867, a taxa anual era de 10 mil-réis por escravo no Rio de Janeiro, a capital do Brasil, 8 mil-réis nas capitais das províncias e 4 mil-réis nas vilas e povoações.

Para coibir a sonegação, a Coroa criou a matrícula geral dos escravos. Os proprietários que não faziam o registro ficavam sujeitos a uma multa de 200 mil-réis.

Os cofres públicos recebiam um pedágio cobrado por todo cavalo e besta que entrava na capital do Império para ser vendido. Os brasileiros só podiam receber distinções honoríficas de governos estrangeiros, como o título de comendador concedido pelo Vaticano, se pagassem uma taxa à Coroa.

Bebidas espirituosas

Particularmente pesados eram os tributos de importação de pólvora, chá e “bebidas espirituosas” (alcoólicas). Em 1843, as alíquotas desses produtos ficavam em torno de 50%.

Ajudavam a financiar o Império o imposto das apostas e dos prêmios de loteria, o tributo das passagens dos bondes do Rio e a taxa de matrícula das faculdades de direito e medicina. O Colégio Pedro II, hoje gratuito, cobrava dos alunos pensões trimestrais, remetidas para o caixa da Coroa.

O lucro das empresas estatais, como a Fábrica da Pólvora, o Correio Geral, os Telégrafos Elétricos e a Estrada de Ferro D. Pedro II, reforçava o cofre imperial.

A outra coluna do Orçamento, a das despesas, trazia as verbas destinadas a uma série de instituições, como o Presídio da Ilha de Fernando de Noronha, o Jardim Botânico, o Passeio Público, o Museu Nacional, a Academia de Belas Artes, a Biblioteca Pública, o Asilo dos Meninos Desvalidos, o Instituto dos Meninos Cegos, o Hospital dos Lázaros (destinado aos leprosos) e o Observatório Astronômico (criado por dom Pedro II para seu uso particular no telhado do Paço de São Cristóvão).

De todos esses estabelecimentos, apenas o Presídio da Ilha de Fernando de Noronha estava fora do Rio de Janeiro. A corte, como se vê, era desbragadamente privilegiada na distribuição dos recursos públicos.

Como o catolicismo era a religião oficial do Brasil, os salários dos padres e a conservação das igrejas eram pagos pelos contribuintes do Império e constavam do Orçamento. O governo também cobria as despesas com a “civilização e catequese dos indígenas” e a educação dos “ingênuos” (filhos de escravos que já nasciam livres, por causa da Lei do Ventre Livre).

O Orçamento de 1867 previu 10 contos de réis para a continuidade da elaboração de Flora Brasiliensis, um monumental inventário das plantas nacionais, com mais de 10 mil páginas ilustradas, preparado ao longo de sete décadas por naturalistas austríacos e alemães.

Das tantas cifras elencadas na coluna das despesas, a primeira era invariavelmente a “dotação de sua majestade o imperador”. Segundo um decreto de 1840, esses recursos eram destinados a “todas as despesas de sua imperial casa, reparos de palácios e quintas, serviço e decoro do trono; não compreendendo, porém, as despesas da Capela Imperial, da Biblioteca Pública e das aquisições e construções de palácios que a nação julgar convenientes para a decência e o recreio do imperador e sua augusta família”.

O decreto, no entanto, não era seguido ao pé da letra. Dom Pedro II usava boa parte da quantia para pagar os estudos de crianças pobres e financiar artistas como o maestro Carlos Gomes.

A soma destinada ao segundo imperador permaneceu congelada durante as cinco décadas de seu reinado: 800 contos de réis. Apesar de a arrecadação ter se multiplicado por dez entre 1840 e 1889, ele jamais permitiu que os parlamentares reajustassem a cifra. Isso ajuda a explicar por que viajantes estrangeiros se horrorizavam com a frugalidade do monarca e os palácios sem luxo nenhum.

No Império, tal qual ocorre hoje, o governo tinha que preparar uma proposta de Orçamento e submetê-la aos senadores e deputados. Após a aprovação, o Orçamento virava lei e o dinheiro começava a pingar nas repartições públicas de todo o país.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, permitem saber como se davam as discussões das propostas orçamentárias no Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado do Império, no Rio. Os senadores por vezes se exaltavam. Para alguns, o que a Coroa fazia era meter a mão cada vez mais fundo no bolso dos brasileiros.

Em setembro de 1843, o ministro da Fazenda, Joaquim Francisco Vianna, defendeu a arrecadação imperial perante os senadores:

— Senhores, até mesmo os homens mais desafetos à atual administração não podem deixar de concordar que existe um deficit [nas contas públicas]. Se existe, qual é o meio de preenchê-lo?

— O primeiro é a economia — retrucou, em tom de desafio, o senador Costa Ferreira (MA).

— Sendo o deficit permanente, não pode ser preenchido senão por meio da criação de impostos. Mas o nobre senador deu a entender que o governo não tem feito economias. Eu declaro ao Senado que o governo tem feito todas as economias possíveis. Se não tem feito, peço que me mostrem as despesas inúteis ou desperdícios — argumentou o ministro.

O senador Holanda Cavalcanti (PE), que anos antes fora ministro da Fazenda, apoiou o representante do imperador:

— A diminuição de despesa que se quer não seria economia. Seria o pior presente que se poderia fazer ao país. Se algum desses senhores que propõem tais economias dirigisse a nau do Estado, veria que a despesa não é excessiva. É necessário ver as nossas necessidades, e elas são grandes. Não é grande, porém, a despesa. Grande é a fraude que se derrama por toda parte, quer na despesa, quer na receita.

Na mesma sessão, o senador Paula Souza (SP) direcionou seus ataques ao imposto do selo. Todo documento jurídico ou comercial — como os processos judiciais, os contratos de compra e venda e as certidões de batismo, casamento e óbito — precisava ostentar uma estampilha adesiva produzida pela Coroa. O selo tinha que ser renovado todo ano, com o pagamento do respectivo imposto. Para o senador, era um custo que afugentava os investidores.

— Em um país como o Brasil, onde as transações comerciais começam, onde a indústria é nascente e onde há poucos capitais e convém chamá-los, o imposto do selo deveria ser aquele que em último lugar se houvesse de escolher, para não paralisar o comércio e a indústria, para não obstar o desenvolvimento da riqueza pública.

Os argumentos não convenceram. O famigerado selo não apenas permaneceu, como ficou mais caro ao longo dos anos e na República ganhou versões estaduais. Seria abolido só em 1966.

IPTU imperial

Ainda em 1843, o senador Paula Souza se queixou do “excesso horroroso de despesa” previsto no Orçamento. Ele se referiu aos 54 contos de réis das “ajudas de custo de vinda e volta dos deputados”. Não havia dotação semelhante para os senadores.

— Onde se viu que se dessem ajudas de custo de ida e volta a deputados que nunca saíram do Rio de Janeiro? Pois todos têm tido, até das antigas legislaturas, até suplentes de alguns dias. Vejam-se quantos contos de réis dissipados!

O consultor aposentado do Senado James Giacomoni, autor do livro Orçamento Público (Editora Atlas), explica que a Monarquia brasileira compreendeu logo a importância de o Orçamento passar pelo crivo do Poder Legislativo:

— O imperador não podia criar tributos e gastar a seu bel-prazer. Ao Parlamento cabia fazer uma crítica prévia das receitas e dos gastos. Era essa colaboração entre o Executivo e o Legislativo que tornava o Orçamento legítimo.

A proposta era discutida primeiramente na Câmara e depois no Senado, depois votada pela Assembleia Geral (a reunião das duas Casas, equivalente hoje ao Congresso Nacional) e por fim sancionada pelo imperador. Hoje é ligeiramente diferente. O projeto orçamentário não passa mais pela Câmara e pelo Senado separadamente. É debatido por deputados e senadores na Comissão Mista de Orçamento, votado pelo Congresso Nacional e assinado pelo presidente da República.

No passado, o calendário orçamentário do Brasil começava em julho e terminava em junho do ano seguinte. Trata-se provavelmente de uma influência dos Estados Unidos, que na época adotavam o mesmo ano fiscal. Desde 1888, a lei orçamentária brasileira coincide com o ano civil, vigorando de janeiro a dezembro.

Existe outra diferença importante entre o passado e o presente. Atualmente, os projetos de Orçamento só podem conter tributos e alíquotas já existentes. No Império, eram os próprios Orçamentos que criavam e reajustavam os impostos.

Pelo Orçamento de 1843, o governo duplicou tanto a taxa de matrícula das faculdades de direito e medicina quanto o tributo anual das “casas de leilão e de modas”. O Orçamento de 1867 instituiu um rudimento de IPTU, no valor de 3% do “valor locativo”, cobrado do morador de cada “casa de habitação arrendada ou própria”.

Planilha capenga

Foi o artigo 172 da Constituição de 1824 que tornou o Orçamento anual obrigatório. A determinação constitucional, porém, demorou para sair do papel. Nos primeiros anos, as propostas que o Ministério da Fazenda enviou para a Câmara e o Senado foram capengas. Faltava a previsão de receitas e gastos de muitas províncias.

Os transportes eram lentos e precários, e as planilhas orçamentárias dos governos provinciais, que eram despachadas de todos os cantos do Império em cavalos ou navios a vapor, por vezes só chegavam à corte depois que o prazo para a votação já havia se esgotado. Além disso, os burocratas ainda não tinham cultura financeira e não sabiam exatamente quais dados deveriam pôr nos balanços.

Na fala do trono da abertura do ano legislativo de 1827, no Senado, dom Pedro I disse aos deputados e senadores que era perigoso não ter controle sobre quanto o país arrecadava e gastava:

— Um sistema de finanças bem organizado deverá ser o vosso particular cuidado nesta sessão [ano legislativo], pois o atual, como vereis no relatório do ministro da Fazenda, não é só mau, mas é péssimo, e dá lugar a toda qualidade de dilapidações.

Após estudar os números enviados pelo ministro, os deputados e senadores concluíram que não passavam de um “amálgama de algarismos” sem pé nem cabeça. Os dados disponíveis em 1827 foram suficientes para aprovar o Orçamento apenas da corte e da província do Rio de Janeiro.

O Orçamento imperial tampouco foi aprovado em 1828, o que levou dom Pedro I a dar um puxão de orelha nos parlamentares na fala do trono que encerrou o ano:

— Bastantes foram os atos legislativos desta sessão [deste ano], contudo os negócios de fazenda não foram tomados na devida consideração. Espero ver o tempo da próxima futura sessão sabiamente aproveitado.

O pedido, de novo, não foi atendido. A Assembleia Geral só aprovaria o primeiro Orçamento do Brasil em dezembro de 1830, para o ano fiscal iniciado em julho de 1831. A conta fechou no azul, com a receita maior do que a despesa. Foi uma exceção. Dos 60 Orçamentos imperiais, 42 foram deficitários.

Os primeiros Orçamentos do Brasil eram quase simplórios. Tinham não mais do que 30 páginas. Não era necessário mais. O governo se compunha de apenas seis ministérios, e os gastos com o país eram baixos.

Com o tempo, a máquina estatal cresceu e o poder público assumiu novas missões, como oferecer saúde e educação gratuitas, programas de transferência de renda e incentivos fiscais para dinamizar a economia. Isso explica por que o Orçamento que o Congresso votou em 2016, por exemplo, teve 3,5 mil páginas.

Reportagem atualizada em 12/12/2019

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)