Há 80 anos, União Nacional dos Estudantes faz história no país

Juliana Monteiro Steck | 07/08/2017, 12h50

A história do Brasil moderno não pode ser contada sem citar a participação da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que representa os universitários do país, fundada em 1937 e que completa 80 anos nesta sexta-feira.

Da campanha O Petróleo é Nosso na década de 1940, passando pelo enfrentamento à ditadura militar nos anos 60 e 70, pelas Diretas Já nos anos 80 e pela mobilização dos caras-pintadas na década de 1990, a UNE fez parte das principais mobilizações populares da história recente brasileira.

Participaram do movimento estudantil pessoas como os senadores José Serra (PSDBSP) e Lindbergh Farias (PT-RJ), os poetas Vinicius de Moraes e Ferreira Gullar, o cineasta Cacá Diegues e o religioso Frei Betto.

O movimento estudantil no país teve suas origens em 1901, quando foi criada a Federação dos Estudantes Brasileiros. A partir da Revolução de 1930, os estudantes começaram a atuar em organizações como a Juventude Comunista e a Juventude Integralista. No Dia do Estudante, 11 de agosto de 1937, o Conselho Nacional de Estudantes conseguiu consolidar o projeto de uma entidade. No encontro, no Rio, os jovens criaram a União Nacional dos Estudantes. Desde então, a UNE começou a se organizar em congressos anuais e a buscar articulação com outras forças da sociedade.

Nos primeiros anos da UNE eclodiu a 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Os estudantes opunham-se ao nazifascismo e pressionaram o ditador Getúlio Vargas a tomar posição na guerra.

Em 1942, os jovens se apossaram da sede do Clube Germânia, na Praia do Flamengo, no Rio, reduto de militantes nazifascistas que se tornaria a sede da entidade. No mesmo período, o Brasil entrava oficialmente na guerra contra o Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão.

Naquele ano, o presidente Vargas, pelo Decreto-Lei 4.080/1942, oficializou a UNE como representativa dos universitários. Em 1945, no entanto, devido à morte de um estudante no Recife durante um comício, a UNE rompeu com a ditadura do Estado Novo.

Petróleo

A partir de 1947, com o fim da guerra e a derrubada do Estado Novo, a campanha pelo monopólio estatal do petróleo movimentou o Brasil. A UNE foi protagonista, participando do movimento O Petróleo É Nosso, que durou até 1953, quando foi criada a Petrobras. A importância do movimento estudantil na época era grande e os questionamentos sobre as forças políticas no movimento eram constantes.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado mostram que, em outubro de 1947, o senador Luís Carlos Prestes (PCdoB-DF) questionou o colega Hamilton Nogueira (UDN-DF) a respeito da UNE.

— Há dois ou três dias, jornais cariocas publicaram sensacionais declarações de um senador da República contendo acusações à União Nacional dos Estudantes. O senador Hamilton Nogueira afirmou que a UNE está eivada de comunistas. Tais palavras carecem de fundamento — disse Prestes.

— O nobre senador Carlos Prestes procura intrigar-me com os estudantes — reagiu Nogueira, afirmando que defendia o direito democrático de partidos comunistas existirem e que tinha uma excelente relação com a UNE. Na década de 1960, os universitários fundaram os diretórios centrais dos estudantes (DCEs) e os diretórios acadêmicos. A UNE participou da Campanha da Legalidade, pela posse de João Goulart.

Em 1962, a organização reforçou sua ação no campo da cultura com a criação do Centro Popular de Cultura e da UNE Volante. João Goulart foi o primeiro presidente a visitar a UNE. Ainda em 1962, a ação dos estudantes pela reforma universitária levou à decretação de uma greve geral nacional, paralisando a maior parte das 40 universidades brasileiras da época.

Comício

Em 1964, o então presidente da UNE e atual senador José Serra foi um dos principais oradores do comício da Central do Brasil, que defendia as reformas sociais no país e foi um dos episódios que antecederam o golpe militar. Hoje, Serra lembra que o quadro era muito diferente do atual.

— Havia cerca de 100 mil universitários no Brasil. Eles representavam apenas 1% dos jovens que estavam na idade de frequentar uma universidade. Eram politizados, liam muito e se dedicavam quase que somente aos estudos. Eu dava aulas particulares, mas não era como ter um emprego em tempo integral e frequentar a universidade à noite, o que muitos estudantes fazem hoje. Atualmente são 5 ou 6 milhões de universitários com um perfil muito heterogêneo. Os debates e discussões que havia não se conseguem hoje. Hoje há mais segmentação e há as juventudes partidárias.

O senador conta que entrou no movimento quando estudava engenharia em São Paulo. Foi eleito para a União Estadual de Estudantes de São Paulo (UEESP) e depois para a UNE.

— Era um momento tenso, de crise, mas eu dava muitas palestras, participava de grandes comícios. Me mudei para o Rio. Me lembro de ser acusado de agredir os militares porque critiquei João Goulart por ter nomeado militares como ministros. Tínhamos aliados no Senado e na Câmara. Participávamos da Frente de Mobilização Popular [FMP] — narra Serra.

A FMP surgiu em 1962, com o objetivo principal de pressionar o presidente Goulart e o Congresso a adotar um programa que implantasse reformas de base. Participavam políticos como Leonel Brizola e Miguel Arraes.

Regime militar

A primeira ação da ditadura militar ao tomar o poder em 1964 e depor o presidente João Goulart foi metralhar, invadir e incendiar a sede da UNE, na noite de 30 de março para 1º de abril. Serra lembra que, nesse momento, foi considerado um agitador perigoso, mandado para fora do país por 14 anos, sem direito ao passaporte brasileiro.

Em novembro, o regime militar retirou legalmente a representatividade da UNE e das UEEs por meio da Lei 4.464/1964, que ficou conhecida como Lei Flávio Suplicy de Lacerda — o ministro da Educação na época.

A UNE passou a atuar na ilegalidade e organizou passeatas nas principais capitais. Em 1968, estudantes e artistas engrossaram a passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, pedindo democracia, liberdade e justiça. O lema era “É proibido proibir”. Intensificaram-se os protestos, especialmente dos universitários, contra a ditadura.

Os militares reagiam com repressão, em episódios como o fechamento do Restaurante Central dos Estudantes, conhecido como Calabouço, que oferecia comida a baixo custo no Rio. Em 1968, no dia 28 de março, durante a repressão a uma passeata, a Polícia Militar invadiu o restaurante e o comandante da tropa atirou no estudante secundarista paraense Edson Luís. Outro estudante, Benedito Frazão Dutra, também morreu depois de ficar dias em coma. As mortes deflagraram o ciclo de manifestações populares de 1968 pela redemocratização.

Registros do Arquivo do Senado mostram que o assunto repercutiu na Casa. Em abril de 1968, o senador Josaphat Marinho (MDB-BA) propôs que o governo não se limitasse “a ouvir o pensamento faccioso dos seus agentes de informação, quase sempre imbuídos de mentalidade policial”, e fosse “direto e certo, sem intermediários, ao encontro da mocidade”.

— Se o governo proceder com espírito de tolerância e compreensão, não se enfraquecerá perante a mocidade nem se diminuirá diante da opinião pública — disse da tribuna.

No mesmo dia, os senadores Arthur Virgílio (PTB-AM) e Mário Martins (MDB-GB) fizeram críticas ao secretário de Justiça do estado da Guanabara, Cotrim Neto, por não saber dialogar com os universitários e pelo episódio do restaurante Calabouço.

O também senador Aurélio Vianna (PSB-GB), em junho do mesmo ano, disse que o movimento estudantil “não é subversivo, como alguns desejam fazer crer para justificarem violências e atentados contra a juventude do nosso país. É um movimento consciente, para que os estabelecimentos de ensino tenham condições de funcionar e possam servir de suporte, de sustentação a este país”.

Punição

No fim de 1968, a edição do Ato Institucional 5 (AI-5) deu poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem considerados inimigos do regime. No mesmo ano, em outubro, foi realizado clandestinamente o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Foram presas mais de 700 pessoas, entre elas as principais lideranças do movimento estudantil.

O Decreto-Lei 477/1969, baixado pelo presidente Artur da Costa e Silva, previa a punição de professores, alunos e funcionários de universidades por “subversão ao regime”. Os professores considerados culpados eram demitidos e ficavam impossibilitados de trabalhar nas instituições educacionais do país por cinco anos. Os estudantes eram expulsos e proibidos de cursar universidade por três anos. Jarbas Passarinho, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), comentou o fato anos mais tarde, como senador.

Em discurso no Senado em agosto de 1976, Passarinho (Arena-PA) disse que o decreto- -lei “surgiu como uma resposta”:

— Foi uma reação à ação conquistadora do Partido Comunista, que tem uma ação messiânica exatamente sobre aquela fase etária das populações mais voltadas para o romantismo e para a capacidade de serem doadores, que são os jovens. Viu-se, assim, o processo revolucionário na contingência de repelir a agressão organizada.

A norma vigorou até 1979, quando foi revogada pela Lei da Anistia (Lei 6.683).

Diretas Já

O principal impulsionador do movimento de reconstrução da UNE foram as grandes passeatas de 1976 e 1977. Mas o congresso de reconstrução da entidade aconteceu em Salvador, em 1979. No ano seguinte, no Congresso Geral da UNE de Piracicaba (SP), venceu Aldo Rebelo, ligado ao PCdoB, que futuramente presidiria a Câmara dos Deputados.

Em 1983, a UNE participou ativamente da campanha Diretas Já, com manifestações e intervenções importantes nos principais. A campanha foi iniciada pelo senador Teotônio Vilela (PMDB-AL).

— O voto direto deve ser conquistado, e não barganhado com ninguém — afirmou o senador, ao defender a aprovação da proposta de emenda constitucional que havia sido apresentada em março daquele ano pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), que estabelecia as eleições diretas para presidente da República.

Em novembro de 1983, cerca de 15 mil pessoas participaram de comício na Praça Charles Miller, em São Paulo, pela PEC das Diretas. Teotônio morreu no mesmo dia, em decorrência de câncer.

— Não poderia haver maior homenagem a Teotônio do que esta manifestação — disse o então senador Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP).

A emenda não foi aprovada, e a UNE então apoiou a candidatura de Tancredo Neves à Presidência. Com o fim do regime militar, em 1985, foi aprovado pelo Congresso Nacional o projeto que trazia a entidade de volta para a legalidade, de autoria do deputado e ex-presidente da UNE Aldo Arantes (então no PMDB, hoje presidente do PCdoB goiano). A proposta foi sancionada pelo presidente José Sarney como a Lei 7.395/1985, que dispõe sobre os órgãos de representação dos estudantes de nível superior.

Constituição

Em 1988, a UNE participou ativamente dos debates na elaboração da nova Constituição, com a defesa da autonomia universitária e da gestão democrática nas escolas públicas. Passeatas coordenadas nacionalmente ocorreram em 6 de setembro de 1989, nas vésperas da primeira eleição direta presidencial pós-ditadura.

Em 1992, o movimento estudantil teve papel predominante na mobilização dos brasileiros com os jovens de caras pintadas na campanha que pedia a saída do então presidente (e hoje senador pelo PTC de Alagoas) Fernando Collor. No mesmo ano, o estudante paraibano Lindbergh Farias, hoje senador, tornou-se presidente da entidade, dois anos depois de ser eleito secretário-geral. O pai de Lindbergh, Luiz Lindbergh Farias, fora vice-presidente nacional da UNE em 1961.

— Naquela época, a gente gastava 15 dias para organizar uma passeata. A UNE tinha que chamar uma reunião dos DCEs e grêmios, organizava visitas às escolas, às salas de aula. Para ter uma passeata, você precisava de uma direção. Tinha que ter uma UNE, um partido, um sindicato. Agora não. Há as redes sociais. Na minha época, era um movimento mais de juventude de classe média. Eu queria que estivesse lá a periferia, mas não estava. Hoje uma parte da juventude que não entrava nas universidades, filhos de trabalhadores, passou a entrar. A universidade tem hoje juventude classe média e de periferia, que é a nova classe média — compara o senador Lindbergh.

Século 21

Em 2002, devido à postura da direção da UNE sobre reforma universitária, houve um rompimento que levou muitos estudantes a fundarem outras entidades até 2009. O doutor em Educação Gil César Costa de Paula avalia, em uma análise sobre a atuação da UNE de 1960 a 2009, que a entidade passou de uma postura de inconformismo a uma de submissão ao Estado, resultando na desmobilização das entidades estudantis.

Em sua tese de doutorado, o pesquisador afirma que a UNE criou, “no período da redemocratização, uma postura de colaboração com os governos denominados democráticos”.

Em 2007, a UNE ganhou na Justiça a posse de sua sede na Praia do Flamengo e, em 2010, pela Lei 12.260, o reconhecimento unânime do Congresso de que o Estado brasileiro tinha uma dívida com os estudantes pela invasão, incêndio e demolição do prédio em 1964.

A atual presidente da UNE, Marianna Dias, diz que grandes transformações da sociedade brasileira aconteceram devido ao protagonismo dos estudantes.

— Por meio da organização, a gente pode mudar a educação, a vida das pessoas, a dignidade. A UNE nasceu da necessidade dos estudantes de defender o Brasil e o mundo durante a 2ª Guerra Mundial, para se posicionar contra a entrada do Brasil no nazifascismo. Defendeu a soberania nacional em pautas importantes para o país e tem muita coisa para contar nestes 80 anos. Quantos estudantes deram a vida, abriram mão de sua liberdade pela democracia nos tempos da ditadura militar?

Para Marianna, o momento atual também é histórico e de posicionamento. Os estudantes devem continuar a ser transformadores da política, diz.

— O processo de fortalecimento da UNE hoje vai levar a entidade a completar mais 80 anos.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)