Entrevista completa Ministro Nelson Jobim


MINISTRO NELSON JOBIM

ENTREVISTADORA– Em 30 de agosto de 2018, registramos o depoimento do Ministro Nelson Jobim sobre sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988, parte do projeto de história oral, comemorativo dos 30 anos da Constituição.

Participam da gravação Virgínia Malheiros Galvez, Tânia Fusco, Ricardo Movits e Élcio Patrocínio de Lima.

Ministro, embora vindo de uma família de políticos, na Constituinte, o senhor viveu o seu primeiro mandato de Deputado e já no cenário federal. Foi fácil essa chegada?

MINISTRO NELSON JOBIM– Não, não é questão de ser fácil; é mais sorte que juízo.

Ocorreu que, em Santa Maria, havia três Deputados Federais: João Gilberto Lucas Coelho, do PMDB; o Nelson Marchezan, do PDS, à época; e o Osvaldo Nascimento, do PDT, que era ex-Prefeito. Esses três eram os que eram eleitos por aquela região de Santa Maria. Ocorreu que o João Gilberto, que era um grande Parlamentar, resolveu ser candidato ao Senado. O Nelson Marchezan foi candidato a governador – disputou com o Pedro Simon –, e o Osvaldo Nascimento rompeu com o Brizola, saiu do PDT e, por isso, então, não foi candidato. Então, havia um vazio. E eu integrava o PMDB, e o Simon tinha que encontrar um candidato da região. O candidato natural da região seria o João Gilberto, mas ele saiu. Ele tinha de encontrar outro candidato natural, que seria o Cezar Schirmer, que era Deputado Estadual, mas o Cezar Schirmer não quis ser candidato estadual. Ele – fiquei sabendo disto depois –, então, acabou falando o meu nome. Vieram me procurar, e, então, acabei examinando o programa. Em destaque, estava aquele negócio de Constituinte. Eu era Vice-Presidente da OAB no Rio Grande do Sul. Eu acabei aceitando ser candidato, aplicando uma regra que eu aprendi com o meu avô: a gente tem que fazer escolhas – quando essas escolhas se impõem –, escolhendo o caminho em que o arrependimento for eficaz. Se eu me candidatasse e não me elegesse, eu continuava na mesma, não mudava nada; se eu me candidatasse e me elegesse, seria um mundo novo, um mundo novo em que eu poderia voltar para trás, renunciar, enfim, voltar para Santa Maria; agora, se eu não me candidatasse e me arrependesse de não ter me candidatado, não haveria solução. Então, eu resolvi me candidatar. Foi isso.

ENTREVISTADORA– E aí essa chegada lá teve alguma perplexidade? O senhor já trabalhava com a questão de direitos humanos. Foi assim que o senhor... Não é? O senhor era...

MINISTRO NELSON JOBIM– Eu trabalhava com isso aí, eu trabalhava com problemas da situação da transição democrática.

E, quando eu me elegi, resolvi, então, estudar alguns Regimentos Internos. O Senado tinha publicado uma coletânea dos Regimentos Internos de todas as Constituintes brasileiras, e eu ainda consegui lá os Regimentos Internos das Constituintes do pós-guerra da Europa. Estudei muito aquilo.

Quando cheguei a Brasília – eu vim de carro, trazendo a mudança etc –, eu fui almoçar, num sábado, com Antônio Britto, que já morava em Brasília há muito tempo. Almoçamos, e o Antônio Britto, então, sugeriu que eu conhecesse o Dr. Ulysses, que eu não conhecia. Fomos visitar o Dr. Ulysses à tarde. Essa conversa começou às 6h da tarde e se estendeu muito, porque ele começou a conversar sobre Regimento, e eu estava com tudo isso na cabeça. Aí, eu fiz sugestões pra cá, fiz sugestões pra lá: "Isso assim não funciona; não funcionou em 1946; não funcionou em 1934", etc. Então, o Dr. Ulysses determinou ao Pimenta da Veiga, que era o Líder do PMDB, que conversasse comigo. Naquela época, em Brasília, a história era o café da manhã. E ele me convida para um café da manhã no Hotel Nacional.

Eu comecei a me envolver com a história do processo constituinte, não porque eu tivesse autoridade política – não era isso –, é que eu tinha estudado isso. Eu era um sujeito organizado, tinha memória de ferro – hoje não tenho mais – e, então, acabei me envolvendo nesse processo. Tanto é que, quando houve o início do processo constituinte propriamente dito, o Dr. Ulysses me chamou para ajudar na elaboração de umas normas iniciais, regimentais prévias, que ele deveria outorgar para disciplinar a votação do Regimento Interno, que não existia. Depois, o Dr. Ulysses me indicou para o Senador Fernando Henrique na época como relator do Regimento. Eu virei uma espécie de amanuense, que ajudava a escrever, e aí me envolvi com esse negócio.

ENTREVISTADORA– Parece que o Dr. Ulysses havia encomendado anteriormente uma proposta à assessoria da Câmara, que foi feita com base no Regimento de 1946 e que não foi bem recebida pelos Parlamentares. Também há uma história que a gente gostaria que o senhor contasse – se for verdade – de que o senhor e mais alguém teriam recortado trechos de Constituições de diversos países, e daí teria nascido, então, a definição de oito comissões temáticas. Como foi essa história, Ministro?

MINISTRO NELSON JOBIM– Primeiro, há um antecedente. Quando o Dr. Ulysses me indicou ao Fernando Henrique para ser o relator.... Antes disso, havia a eleição da Câmara e a eleição da Constituinte. O Dr. Ulysses sustentava que ele seria o Presidente da Constituinte – não havia nenhuma divergência –, mas ele sustentava também que tinha de ser Presidente da Câmara. Ele, corretamente, dizia o seguinte: "Não adianta ser Presidente da Constituinte se eu não tiver a estrutura da Câmara para colaborar; se botar outro Presidente da Câmara, vai ter de o Presidente da Constituinte solicitar ao Presidente da Câmara e vai dar confusão." E ele se candidata a Presidente da Câmara. Fernando Lyra resolveu ser candidato a Presidente da Câmara e disputar com o Dr. Ulysses. Aí é que aparece essa história desse Regimento, porque havia lá um trabalho que o Dr. Ulysses teria encomendado em 1986 à assessoria da Câmara, e eles lá tinham feito um anteprojeto, um estudo, que nada mais é do que o decalque do Regimento da Constituição de 1946, em que o governo, que na época era comandado pelo Presidente do Supremo Tribunal – o Getúlio tinha caído –, não tinha força política. Então, o projeto de Constituinte foi feito por uma comissão interna criada pela própria Constituinte da época, chamada de Comissão Nereu Ramos, porque era presidida pelo Senador Nereu Ramos, de Santa Catarina. Essa comissão fazia o projeto da Constituinte, depois esse projeto era votado no Congresso constituinte – discutido e votado lá. Nós fizemos uma coisa parecida. Ocorre que o Lyra, na campanha para Presidente da Câmara, usou esse material dizendo que iam se criar dois tipos de Constituintes: os Constituintes de primeira categoria, que seriam os sábios da grande comissão que iriam redigir o projeto, e os Constituintes de segunda categoria, que ficariam esperando que os sábios fizessem esse projeto. Era mais ou menos essa a linguagem. Isso não deu os votos suficientes ao Lyra – que foi bem votado, inclusive –, e o Dr. Ulysses ganhou a eleição para Presidente da Câmara.

Aí vem a história também para começar o processo constituinte. O Dr. Ulysses, então, pediu que a gente fizesse um esboço. O Bonifácio José Tamm de Andrada, o Andradinha, que era do PDS, e eu fomos para a Liderança do PDS, na época, com uma máquina de escrever Remington, e fizemos um decalque do Regimento Interno da Constituinte de 1946. Por quê? Você tinha dois modelos de fazer Constituinte no Brasil. Um era o projeto de governo. Aconteceu isso em 1891; aconteceu isso em 1934, com Getúlio, que tinha força; e aconteceu isso em 1967, quando o governo militar mandou o projeto da Constituição de 1967. Agora, o outro modelo era a criação dessas comissões que tinham acontecido em 1946. Acontece que a solução majoritária brasileira, que era o governo mandando o projeto, estava se repetindo contrariamente naquele caso. Por exemplo, o Sarney não tinha força política naquele momento. Ele estava mais ou menos na posição de 1946, não tinha como mandar um projeto de Constituinte, como aconteceu nas outras vezes. O Tancredo pretendia fazer isso. O Tancredo tinha constituído aquela Comissão Arinos, que fez um projeto. Aí nós fizemos um desenho desse modelo inicial, que era mais ou menos a mesma coisa, com ajustes, da Constituição de 1946.

Quando o Fernando Henrique abriu esse assunto, aí surgiu todo o ódio a esse tipo de solução, decorrente da campanha que o Lyra havia feito. E todo mundo se opôs. "Ah, não! Esse modelo não dá." Aí deu empate. Tínhamos que inventar um mecanismo. E o que a gente fez? Nós tínhamos que inventar, começar do zero. Como é que íamos fazer? Aí o que aconteceu foi isto: eu fui ao meu apartamento – eu morava na 302 norte – e recortei os títulos e capítulos de tudo que era Constituição que havia. O Senado tinha publicado uma coletânea das Constituições, com cinco ou seis volumes das Constituições ocidentais e das Constituições orientais, da União Soviética e dos países.... Enfim, eu recortei cada pedaço daquilo e fui, de noite, empilhando, em um trabalho empírico. E aí o que aconteceu? No final, havia lá nomes, títulos, capítulos que se repetiam em todas as Constituições, havia outros que se repetiam na maioria das Constituições, havia outros que se repetiam na minoria das Constituições, depois havia outros que eram idiossincrásicos. E nós chamamos, na época, de temas absolutamente constitucionais os que estavam em todas as Constituições; de relativamente constitucionais; de relativamente não constitucionais, porque eram minorias; e aqueles que eram individualizados, de idiossincrasicamente constitucionais.

E aí começamos a montar aquilo. O que fizemos? Pegamos o número total – eu peguei o número total da Assembleia –, identificamos as pessoas que eram Líderes partidários, enfim, formadores de opinião, Mesa, etc. e tiramos fora. E aí dividimos – fizemos um cálculo – o número de Parlamentares por oito, o que ia dar 60, e deu 60 para cada uma delas. Esse cálculo tinha sido ajustado. Depois, esses 60 eram divididos – eram 63. Cada comissão dessas dividia-se em três subcomissões, de 21 membros. Então, com aquilo, deu trabalho para todo mundo, porque começou, primeiro, o trabalho das subcomissões. E, depois que as subcomissões trabalharam etc. et al, elas produziram um texto. Cada subcomissão tinha lá uma tarefa. Uma tarefa era uma palavra, uma frase, como "organização do Poder Executivo", "organização do Poder Judiciário", sei lá.

E aí o que aconteceu? Foi assim que se fez. Deu muito trabalho, começou do zero. Deu muito trabalho, durante todo esse tempo, para chegar ao trabalho das comissões terminado – cada comissão tinha três subcomissões. Então, entregava-se o texto de cada uma das três subcomissões para a comissão, que tinha um presidente e um relator. Esse relator da comissão juntava os três textos, integrava os três textos. Esses três textos se transformavam em um só, que era votado pela comissão. Cada comissão fazia isso. No final, as oito comissões terminaram, cada uma delas, com oito textos. O Bernardo Cabral reuniu todos esses oito textos em um texto só. Aí começou o processo da chamada Comissão de Sistematização, que era composta por aqueles Parlamentares que não participaram do processo mais os presidentes das comissões, os relatores das comissões e os relatores das subcomissões. E formou-se a Comissão de Sistematização, que tinha lá em termos de oitenta...

ENTREVISTADORA– Oitenta e seis.

MINISTRO NELSON JOBIM– Oitenta e seis Parlamentares.

Nós tínhamos que dar um jeito de fazer uma montagem que superasse o problema de não quererem fazer uma comissão.... Tinha que haver um projeto. Então, aí você fez com que todos os Parlamentares participassem da elaboração do projeto, que era o final do texto da Comissão de Sistematização, e esse projeto da Comissão de Sistematização ia para o Plenário. Então, tudo aquilo seria revisto de novo por todos os Parlamentares.

ENTREVISTADORA– Mas a essa sistemática – pelo menos à sistemática da sistematização, da Comissão de Sistematização – reagiu justamente o Centrão, que acabou redundando na grande virada da reforma do Regimento. E a crítica que se fazia era que justamente muita gente ficou alijada do processo, não da fase inicial – como o senhor falou, houve uma boa distribuição na fase inicial das oito comissões –, mas da fase da sistematização. Então, a crítica do Fernando Lyra foi procedente?

MINISTRO NELSON JOBIM– Não, não, não. Foi outro problema.

ENTREVISTADORA– Não?

MINISTRO NELSON JOBIM– O problema foi outro. Não foi bem essa. Ocorreu um fato também de natureza política. O PMDB era o partido majoritário na Assembleia Constituinte. Então, cabia a ele o comando do processo todo – junto com os outros Líderes, mas com uma voz bem mais forte. E aí houve uma disputa de quem seria o Líder. Nós tivemos dois candidatos à Liderança: o Senador Mário Covas e o Deputado Luiz Henrique da Silveira, que depois veio a ser Senador e Governador de Santa Catarina – já falecidos os dois. E houve essa disputa entre os dois. O Luiz Henrique era muito ligado ao Dr. Ulysses; o Mário Covas era mais distante do Dr. Ulysses – embora paulista, havia disputas aqui em São Paulo etc. E aí o que ocorria? O Dr. Ulysses era Presidente do PMDB, era Presidente da Câmara, era Presidente da Constituinte e, com isso, tinha muita força. Havia uma espécie de fricção entre o Dr. Ulysses de um lado e o Presidente Sarney do outro. O Líder do Governo era o Carlos Santana, que era um extraordinário Deputado médico da Bahia. O Carlos Santana, como Líder do Governo, começou a operar para que o Governo votasse, os membros do PMDB ligados ao governo Sarney votassem em Mário Covas. Termina a eleição e o Mário ganha, eleição para Liderança na Bancada; o Luiz Henrique perde. Aquilo era visto como uma derrota do Dr. Ulysses e uma vitória do Sarney. Evidente que, na eleição, o Mário não podia deixar de aceitar os votos do governo, porque era uma disputa eleitoral. Aí, o que aconteceu? Começaram a acusar, começaram os discursos: "O PMDB se entregou para o Sarney", etc.

Na designação dos relatores das subcomissões, que eram 21, se não me engano – cada subcomissão tinha um relator e um presidente, depois cada comissão tinha 8 relatores e 8 presidentes, depois esses relatores etc. integrariam a Comissão de Sistematização –, o Mário Covas, que tinha poder de designar tudo, porque éramos maioria absoluta, preencheu essas vagas de presidentes das comissões, de relatores das comissões, de relatores das subcomissões com a esquerda do PMDB. Com isso, a Comissão de Sistematização, esse grupo todo, que eram 21 sub-relatores, 8 relatores e 8 presidentes, foi integrar a Comissão de Sistematização, que era uma maioria sólida, para se juntar àqueles outros que não eram membros de nada – que eram quarenta e poucos, não recordo os números, mas eram em torno de quarenta e poucos – para completar o número. Aí, a Comissão de Sistematização ficou à esquerda do Plenário, ou seja, a posição política da Comissão de Sistematização ficou à esquerda do Plenário.

Quando terminou, no final do processo, já próximo ao fim dos trabalhos da Comissão de Sistematização, começou-se a organizar o chamado na época de Centrão. O Centrão era integrado pelo PMDB, por vários partidos. O PMDB tinha de tudo, tinha liberais de direita, liberais de esquerda, comunistas, etc.

No final, surgiu a crise do Regimento. No que consistia a crise do Regimento, ao fim e ao cabo? Era o seguinte: quando nós elaboramos o Regimento Interno, o Regimento Interno que foi aprovado lá atrás para a Constituinte proibia a oferta de emendas substitutivas globais. Você podia emendar um texto, mas nunca uma emenda substitutiva de todo um texto, primeiro. Segundo, os mecanismos de votação previam os destaques. Então, você tinha destaques para suprimir textos, destaques para substituir um texto por uma emenda, destaques para modificar e destaques inclusive para aprovar um texto que não estava naquele outro. Acontecia o seguinte, veja bem o fenômeno: alguém aprovou um texto x na subcomissão.  Esse texto x aprovado na subcomissão precisava, para ser aprovado, da maioria absoluta da comissão, 11 votos. Com 11 votos, você aprovava um texto na subcomissão. O texto aprovado na subcomissão acabava participando do texto da comissão, juntava com as outras duas subcomissões e você teria um texto na comissão. Lá estava aquele artigo, aquela regra aprovada por 11 votos. Aí, esse texto que estava na comissão, se alguém da comissão não quisesse saber daquele texto, teria que suprimir o texto. Então, faria um destaque supressivo do texto, que precisava, o destaque, para suprimir, ser aprovado por maioria absoluta. A comissão tinha sessenta e uns quebrados, precisava de trinta e poucos votos para conseguir derrubar. Então, começou a acontecer o seguinte fenômeno: o sujeito tentava derrubar o texto que vinha da subcomissão e não conseguia os trinta e tantos votos, o que significava que 11 era maior do que trinta e poucos. Bom, até então ninguém havia percebido muito bem isso, foi depois que a gente viu.

Quando chegou à Comissão de Sistematização, aconteceu o fenômeno. Quando o Bernardo Cabral, que era o Relator, juntou oito textos das comissões, fez o primeiro texto que ia ser submetido à Comissão de Sistematização, foi uma gritaria. Deu quinhentos e tantos artigos, nós chamamos aquilo de Frankenstein, porque tinha artigos demais, tinha coisas contraditórias que iam ser corrigidas na Comissão de Sistematização. Quando chegou à Comissão de Sistematização, aconteceu a mesma coisa. Corrigimos aquelas coisas e tal, mas, o texto que estamos dando como exemplo, que foi aprovado por onze que derrotaram trinta e poucos, quando chegou à Comissão, a Comissão de Sistematização – quanto é que você disse, 86? – precisava de maioria absoluta, que dá 44, precisava ter 44 votos para derrubar. Então, acontecia o seguinte: um texto aprovado por 11, se fosse feito um destaque supressivo a ele, esse destaque, para ser aprovado, precisava de 44 votos; se tivesse 43, ficava um texto aprovado por 11. Aí, o Centrão gritou.

Quem verbalizou mais isso foi um Deputado de Santos, o Gastone Righi, que conhecia o Regimento. Pouca gente conhecia o Regimento; eu conhecia porque estudei muito aquilo. Conheci mais por estudo, depois aprendi durante toda essa coisa. Surgiu o impasse: o Centrão se negava a votar no Plenário o texto que tinha sido aprovado na Comissão de Sistematização. Aí propôs uma alteração no Regimento, que basicamente eram duas, além de outras coisas, mas o fundamental era isso: um, a possibilidade de que, no Plenário, pudessem ser apresentadas emendas substitutivas globais, o que era proibido no Regimento; dois, que se introduzisse dentro dos destaques – no Senado, havia no Regimento Interno do Senado; a Câmara não tinha – o que se chamava destaque para votar em separado (DVS). A diferença entre um e outro era o seguinte: se você fizesse o destaque supressivo, o destaque supressivo aprovado retirava o texto destacado fora; no DVS, o mecanismo é outro: quando você começa a sessão, você tem um texto básico composto de 15 ou 20 artigos, um texto básico. Esse texto básico é votado inicialmente, tem que ser aprovado inicialmente, ressalvados os destaques. Se você tem um destaque supressivo, esse artigo não foi votado no primeiro momento, ele está fora. Ele vai ser votado em separado. Isso significa que esse artigo, para voltar para o lugar, precisa ter maioria absoluta. Invertia o quórum. Nós não tínhamos, no Plenário, condições de resistir a essa pretensão, que era, ao final, ao fim, ao cabo, a correta. As pretensões do Centrão estavam corretas.

Fez-se uma longa discussão, e, ao final, tivemos que ceder e se fez a reforma do Regimento. Alterou-se o Regimento da Constituinte, introduzindo as emendas substitutivas e o destaque para votar em separado.

ENTREVISTADORA– O senhor cita uma frase do Deputado Ulysses Guimarães – há algumas historinhas que eu li que eu gostaria que o senhor contasse, mas uma especificamente tem a ver com isso –, que é uma frase dele que diz que "em política até a raiva é combinada." Isso se aplica a essa situação? Houve uma combinação para acertar as coisas?

MINISTRO NELSON JOBIM– Primeiro, você, no processo legislativo, enfim, no Senado, na Câmara, para superar governo, tem de partir do diálogo; não só do diálogo, como também de você medir as forças.

A Bancada do PMDB era majoritária, mas acontece que havia grande parte do Centrão que era composta pelo PMDB. Eu me lembro de que estava lá o José Richa integrando o Centrão, era o Hércules que se chamava na época, e também o Luís Roberto Pontes, que era do Rio Grande do Sul e que havia sido Ministro no final do governo Sarney. E aí foram medidas forças e se verificou que você, para continuar o processo, tinha que negociar com o Centrão e aceitar as exigências do Centrão. Aceitamos as exigências do Centrão, fez-se um acordo, porque essa expressão que você usou e era usada muito pelo Dr. Ulysses, que dizia "em política até a raiva é combinada", é exatamente o problema que nós estamos vivendo hoje, em que há uma variável nova dentro do processo político, que é o ódio, e o ódio fez com que os adversários políticos passassem a ser tratados como inimigos, objeto de: "vamos querer matá-los." Então, com essa situação, tem que abrir o diálogo. É o que nós temos hoje: o diálogo completamente obstruído. Naquela época, se fazia esse diálogo, acertava-se.

O PMDB avaliou a sua capacidade de tentar manter o Regimento, verificou que não tinha capacidade para isso, quer dizer, o PMDB e o grupo que defendia o texto da sistematização, então nós tivemos que ceder. E aí deu origem a uma mudança completa no processo constituinte, por quê? Porque o Centrão, no Plenário, apresentou várias emendas substitutivas globais, por títulos e capítulos – por títulos. Acho que era tudo títulos.

Aí surgiu uma dúvida dentro do PMDB que era: "Vamos brigar para tentar manter o texto da sistematização, ou seja, vamos rejeitar as emendas do Centrão?" Porque as emendas do Centrão oferecidas tinham preferência em relação ao texto do Centrão; as que tinham preferência entravam. Votavam, primeiro, o texto do Centrão, as emendas do Centrão e depois, se as emendas do Centrão não fossem aprovadas inicialmente, ressalvados os destaques, nós tínhamos que votar o texto da sistematização. E aí nós avaliamos e vimos que íamos perder; e nós íamos perder, porque houve um trabalho muito eficaz do pessoal do Centrão na negociação das emendas substitutivas; vários interesses de alguns Deputados individualizados.

Há um caso típico que era, se me recordo, uma história de direito autoral. Havia um Deputado que tinha lá uma gravadora de música evangélica e, então, pediu, para garantir os direitos autorais, direitos autorais, salvo para as músicas religiosas. E, com isso aí, ele não precisava pagar os direitos autorais na sua gravadora.

E isso está lá. Então, você tinha satisfações de um para outro e, com isso, havia votos. E aí o que fizemos? Qual foi a opção? Vamos brigar, enfrentar o Centrão ou vamos tentar votar os textos do Centrão e, depois, através de complicado mecanismo de destaques, de emendas, o diabo a quatro, tentar recompor, em cima do texto do Centrão e dentro do texto do Centrão, o texto da sistematização? E foi isso que a gente fez.

ENTREVISTADORA– Então, Ministro, o senhor esteve na linha de frente dessa organização dos trabalhos desde o início. O senhor participou como Sub-Relator e braço direito do Ministro Bernardo Cabral, então Relator-Geral, desde aquela organização dos textos que vieram das oito comissões; depois, na sistematização daquelas primeiras propostas; e o senhor foi até o final, até o último projeto e até o texto final votado pela comissão.

(Intervenção fora do microfone.)

MINISTRO NELSON JOBIM– No Plenário, havia quatro Sub-Relatores. Eram o Fernando Henrique, eu, o que foi Governador de Mato Grosso...

ENTREVISTADORA– Wilson Martins.

MINISTRO NELSON JOBIM– ... Wilson Martins, e aquele do Espírito Santo.

ENTREVISTADORA– José Ignácio Ferreira.

MINISTRO NELSON JOBIM– Esses quatro, digamos, eram os Sub-Relatores, porque houve também – eu me esqueci de lhe contar – uma disputa no PMDB, porque a relatoria cabia ao PMDB. O Ulysses pretendia que o Fernando Henrique fosse o Relator, e aí tivemos três candidatos dentro da Bancada: o Bernardo Cabral era um, o Fernando Henrique era outro e o Pimenta da Veiga era o outro candidato – o Pimenta era Líder do Partido na Câmara. E, nessa disputa, ganhou o Fernando Henrique, aliás, ganhou o Bernardo em segundo turno, porque, no primeiro turno, os dois mais votados foram o Bernardo e o Pimenta, e o Fernando saiu fora. Quando o Fernando saiu fora, não foi eleito, o PMDB do Senado despejou seus votos no Bernardo Cabral e elegeu o Bernardo. E aí o Bernardo, dentro da composição política daquele momento, convidou nós quatro para sermos, digamos, os assessores.

Na verdade, a minha posição lá não era uma posição com poder decisório político. Eu era mais um operacional, eu era um amanuense, eu escrevia. Eu não tinha força política, eu não tinha história política no Partido para ter uma voz aqui. Participava-se muito na casa do Dr. Ulysses, mas sempre era mais não para ser ouvido no sentido político, mas para ser ouvido como escrever, como redigir, aquela coisa. E aí ficamos os quatro até o momento em que nós fomos trabalhar no Banco do Brasil. O Bernardo resolveu sair porque, no início, trabalhava-se no Senado, junto ao Prodasen, porque, na época, havia aquele monstro, que era um computador de um tamanho que hoje um laptop... Mas o fato é que não havia cópia nem nada.  Então, você trabalhava lá com aquelas folhas de papel, aquelas impressoras de gráfica.

Depois o Bernardo resolveu ir para o Banco do Brasil, e a coisa mudou. Mudou, nós acabamos saindo dessa sub-relatoria com o Bernardo. O Bernardo chamou então.... Naquele momento entrou o Fogaça e o ex-Governador de Santa Catarina, acho que o....   Não me lembro do nome. O Governador de Santa Catarina era um sujeito extraordinário. Ah, era o Antônio Carlos Konder Reis. Era o Antônio Carlos Konder Reis, e não lembro mais quem eram os outros, mas principalmente eram os dois. Então, o Antônio Carlos e os dois viraram. Aí, naquele momento, eu fui convidado pelo Euclides Scalco, que era o 1º Vice-Líder do PMDB, para ir para a Liderança do PMDB.

Aí eu participava, trabalhava como Vice-Líder do PMDB. E aí, dentro da Vice-Liderança, quando o Mário saiu do PMDB e entrou no PSDB, o Britto seria naturalmente o Líder para substituir o Mário, mas o Britto resolver ser candidato a Prefeito de Porto Alegre, isso em 1988. O Britto saiu e foi candidato a prefeito, e aí sobrou para mim. Eu virei Líder do PMDB.

ENTREVISTADORA– Mas o senhor foi o substituto na elaboração do Regimento Interno, o senhor foi o suplente da Subcomissão do Poder Legislativo, o senhor foi suplente da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo, o senhor foi titular da Comissão de Sistematização, o senhor foi Relator Adjunto da Comissão de Sistematização e o senhor foi Relator da Reforma Constitucional, depois, em 1993. Mas, com isso, eu quero dizer o seguinte: o senhor esteve sempre no centro, ali, das decisões...

MINISTRO NELSON JOBIM– Mas não significava que a minha voz fosse uma voz que pudesse induzir decisões.

ENTREVISTADORA– O senhor está sendo modesto. (Risos.)

MINISTRO NELSON JOBIM– Eu sempre disse que eu fui um amanuense: eles resolviam lá e eu, então, redigia.

ENTREVISTADORA– Bom, vamos considerar que o senhor está sendo modesto.

Eu estou colocando essa questão pelo seguinte: o que eu estou querendo colocar? Que o senhor sempre esteve no centro das decisões. O senhor também participava de todos cafés da manhã do Dr. Ulysses. A gente sabia que o Dr. Ulysses não fazia café da manhã sem a sua presença.

ENTREVISTADORA– Mas o senhor sempre estava lá.

O que eu estou querendo colocar para o senhor? O senhor conviveu muito de perto, sabendo dos principais assuntos em discussão; o senhor sabia das principais pressões que estavam em questão, dos principais interesses e das principais soluções que se encontraram. Eu sei que eu estou colocando uma questão muito geral, mas eu queria lhe perguntar: naquele momento, como foi lidar e conviver, primeiro, na parte da consolidação? E efetivamente trabalhando com o Relator, com os diferentes Parlamentares de outros partidos na hora de consolidar texto, como foi conviver com os colegas de outros partidos para chegar ali ao consenso do texto? O senhor já comentou um pouquinho quando respondeu à pergunta da Tânia.

E como foi, depois, conseguir construir esse grande pacto que foi o texto da Constituição? Eu coloquei de uma forma geral, mas, se o senhor puder comentar isso aí, porque o senhor realmente esteve nessa linha de frente, Ministro.

MINISTRO NELSON JOBIM– Havia uma ... uma força que puxava a gente. Qual era a força? Nós tínhamos que terminar uma Constituinte, uma Constituição; tínhamos que aprovar uma Constituição; não podia ficar esse assunto parado. Então, a grande habilidade – isso eu aprendi lá, naquela época – aprendi fazendo. Não tínhamos teoria; depois é que a gente faz e começa a usar. Normalmente a gente faz as coisas, e depois alguém chega e começa a dizer: "Olha, vocês fizeram algo articulado, da seguinte forma, etc." – o que não é verdade. Mas, no final, a gente ouve aquilo e fica tão encantado por ter feito aquilo, que acaba aceitando que tenha feito mesmo. Mas não era: as coisas iam se ajustando, as conversações iam criando soluções sob a perspectiva de que nós precisávamos criar maioria.

Nós precisávamos ter maioria absoluta para aprovar o texto: logo, tínhamos que criar. E aí, se criou uma série de fórmulas para se chegar a isso. Por exemplo, nós tínhamos algumas técnicas que foram utilizadas, digamos, não previamente pensadas, mas criadas dentro do impasse – porque é o impasse que produz o mecanismo de solução, a solução do próprio impasse. Então, você tinha o impasse em que você não tinha maioria para aprovar texto. Vou dar um exemplo de um caso que eu repito muito, que é um que me vem à cabeça sempre. Tínhamos uma forma de linguagem para trabalhar com isso. Quando você tinha um texto x, e esse texto x não fazia maioria porque ele continha soluções que não satisfaziam um setor, aí você tentava fazer com que aquela parte do texto que não satisfazia o setor fosse discutida em legislação complementar à Constituição, em legislação ordinária; ou seja, mandava-se para a lei. Então, você pegava o texto, e, se havia aquele pedaço que não tinha jeito, então: "Não, não dá. Então tira fora e escreve aqui 'na forma da lei'." Então, era aquilo que nós chamávamos na época de um acordo dilatório: iríamos discutir esse texto, esse assunto depois, quando da lei ordinária.

Quando o assunto era muito, digamos, agudo, ele não ia para a lei ordinária; mandava-se para a lei complementar. Por exemplo, na ordem dos trabalhadores, há aquele problema da despedida imotivada, que é o art. 7º, inciso I. Esse foi o único daquele art. 7º que mandamos para a lei complementar, porque era uma coisa mais robusta, uma discussão mais robusta. Encontrou-se uma fórmula, uma composição para o texto principal, e aquilo que era divergência, em que não conseguíamos fazer um entendimento, se jogava para adiante.

Outra forma que se usava era tornar impreciso o texto, quando não se conseguia.... Por exemplo, um exemplo clássico disso era o assunto do repouso semanal remunerado. Havia uma linha que vinha da esquerda, do PT principalmente... O PT não tinha grande expressão naquele momento, mas o PT liderava os outros partidos; o PT tinha lá, não me lembro mais, uns sete ou oito Deputados.

ENTREVISTADORA– Sete.

MINISTRO NELSON JOBIM– O Líder era o Plínio de Arruda Sampaio. Naquela época, o Plínio não era um radical, ficou depois; ele era mais ligado ao Partido Democrata Cristão – a origem do Plínio era de democrata cristão –, e ele tinha também uma capacidade de negociação.

E aí, nesse repouso semanal remunerado, os sindicalistas queriam um texto mais ou menos assim: "repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos". Acontece que a esquerda e o próprio PMDB, enfim, não tinham votos para conseguir aprovar aquela matéria. Da outra parte, que vinha do lado do Centrão, o texto era: "repouso semanal remunerado na forma de acordo coletivo de trabalho ou de contrato coletivo de trabalho". Também não tinha. Aí surgiu um problema: esse negócio do repouso semanal remunerado é algo que vem da primeira CLT. Como nós tínhamos decidido colocar direitos dos trabalhadores dentro da Constituição, gerais, tinha que apontar uma saída. Aí o Dr. Ulysses encomendou ao Antônio Britto e a mim que tentássemos a negociação. Saímos os dois lá para tentar fazer um entendimento.

Em conversa com o Plínio Sampaio, o Plínio disse o seguinte: "Olha, topo; mas há uma coisa que eu não aceito, não posso aceitar em hipótese alguma, porque eu não tenho como convencer a minha base, que é a expressão domingo." Aí fomos lá falar do outro: "De jeito nenhum, domingo, não." Aí puxa para cá, puxa para lá, conversa, e aí nós criamos o texto chamado de "repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos". Não ficou obrigatório. E o advérbio de modo ajuda muito nisso, porque o advérbio de modo é transeunte. Uma coisa é "preferencialmente"; não era obrigatório, mas dava um espaço para você discutir esse assunto. Aí ficou o domingo, que interessava, porque era algo de que não se podia abrir mão do lado da esquerda, naquilo que a gente chamava de esquerda, e não ficou obrigatório, que era o problema do outro lado. Ficou preferencialmente e acabamos aprovando.

Então, havia uma negociação desse tipo. Mas por que a gente fazia isso? Porque nós tínhamos a clareza – tanto um grupo, como o outro, como nós tínhamos a clareza – de que nós tínhamos que terminar o trabalho. Nós tínhamos que dar uma solução ao impasse. Não adianta você se fechar no impasse, porque você paralisa todo trabalho. E aí se criavam mecanismos.

Foram criados mecanismos intermediários, inclusive regimentais. Algumas vezes se criou lá...

ENTREVISTADORA– Conte para a gente uns.

MINISTRO NELSON JOBIM– No Plenário, você criava um problema. Havia algo que não tinha solução. E, aí, passava uma sessão, e não se conseguia votar nada. Aí criamos uma expressão que se chamava "buraco negro", porque tinha aparecido a teoria dos buracos negros na astronomia, então nós associamos. "Está um buraco negro, não consigo aprovar nada." E aí, na segunda sessão, o que significava o buraco negro? Buraco negro significava que o texto da emenda substitutiva do Centrão não fazia maioria; que todas as emendas e destaques apresentados não faziam maioria; que o texto da sistematização, que tinha sido destacado para substituir aquele, também não fazia maioria. E aí, como é que faz?

E aí, tive uma longa conversa com o Paulo Afonso. Eu aprendi tudo que eu sei de regimento interno com o Paulo Afonso, que era um sujeito extraordinário e muito respeitado. Aí, puxa para cá, puxa para lá, eu descobri isto no regimento interno – porque eu tinha essa coletânea toda – das cortes espanholas: o regimento interno previa um negócio chamado emenda de transação. Aí eu inventei essa tal emenda de transação. No início, Paulo Afonso disse que aquilo não tinha história no Brasil, mas eu disse: "Olha, está aqui; os espanhóis usam isso lá. Nós não estamos inventando nada de novo. Os espanhóis usam isso para resolver os impasses, porque o regimento interno é um mecanismo para dar solução, não para criar dificuldade e não dar solução." Então, inventamos a tal emenda de transação.

Como era a emenda de transação? Você podia fazer uma negociação política na hora da votação e criar um texto todo baseado em vários outros textos. Mas aí, no início, quando isso começou a funcionar, o Dr. Ulysses, rigorosamente, sugerido pelo Paulo Afonso, exigia que as palavras que tivessem nesse texto da transação tivessem origem nas emendas que davam base. Então, não podia se criar palavra nova. Eles criavam uma amarração. Mas aí aquilo começou a funcionar, no início com a gente fazendo aquele esforço imenso, porque aí a gente botava meio torto o texto, porque a gente dizia: "Bom, vamos corrigir isso na Comissão de Redação." Depois acabaram as emendas de transação se transformando em emenda nova, porque era a emenda que conseguia fazer a maioria. E aí se fez a maioria.

ENTREVISTADORA– Ela está aqui me cutucando para o senhor qualificar o Paulo Afonso, que era o Secretário-Geral da Mesa.

MINISTRO NELSON JOBIM– Paulo Afonso era um sujeito extraordinário. E o Paulo Afonso tinha uma coisa curiosa, que eu aprendi logo, eu vi isso quando eu assumi, quando eu entrei na Câmara: ele ia muito cedo para a Câmara. Quando o Dr. Ulysses o chamava, ele ia 7h; 6h30 ele estava na Câmara. E ele formava uma espécie de cafezinho. Então, aí é que se faziam as relações entre os Parlamentares de todos os partidos. E ele tinha muita autoridade.

O Dr. Ulysses, inclusive, me contou que quando ele – Ulysses – foi eleito Presidente da Câmara, que foi o primeiro Presidente da Câmara depois do PDS, que era do PMDB, a primeira coisa que os Deputados do PMDB queriam era que ele botasse um Secretário-Geral da Mesa que não fosse o Paulo Afonso. O Paulo Afonso já estava há 20 anos, vinha lá de trás. Aí, o Dr. Ulysses disse que começou a pensar, como faria, etc., e começou o trabalho para depois escolher o novo Diretor-Geral. Aí ele disse o seguinte: que ele assistiu a um troço que chamou a atenção dele. Os Deputados subiam à Mesa e iam falar com o Paulo Afonso e o chamavam de Dr. Paulo Afonso. Ai o Dr. Paulo Afonso é que dizia o que eles tinham que fazer. E eles, então, só vinham para falar com o Dr. Ulysses depois de o Paulo Afonso ter concordado. Aí ele: "Mas, ah, é assim, é?" Aí ele disse: "Não. Vou manter o Paulo Afonso." E manteve o Paulo Afonso.

O Dr. Paulo Afonso queria se aposentar, inclusive, mas o Dr. Ulysses insistiu, aí o Paulo foi lá e ele disse: "Olha, você fica na Constituinte, depois se aposenta." E o cara ficou e depois ainda entrou para o TCU, acabou indo para uma vaga no TCU.

ENTREVISTADORA– Eu tinha 200 historinhas para perguntar para o senhor. Várias delas o senhor já contou, por isso eu não o interrompi. Estavam aqui contadas. Mas algumas coisas...

A gente está falando dessa coisa do consenso, do consenso possível, do jeitinho, da metodologia que vocês encontraram para tocar esse trabalho para frente. E aí eu li uma coisa muito interessante, que é a história da indicação do Jarbas Passarinho para Vice Relator da Comissão, sendo feita pelo...

MINISTRO NELSON JOBIM– Vice-Presidente.

ENTREVISTADORA– ... pelo Haroldo Lima, do PCdoB, não é?

MINISTRO NELSON JOBIM– Aconteceu o seguinte. Foi eleito Presidente da Comissão de Sistematização, que era a comissão final daquele processo complicado, o Senador Afonso Arinos. E aí se fez a primeira sessão. E o Afonso já estava com mais idade. E ele também já estava muito... Ele queria contar história... Era um sujeito extraordinário. Mas não tinha mais autoridade para comandar, e, naquele quadro, não dava. Então, não dava e surgiu um problema. Aí se levou o problema ao Dr. Ulysses: "Olha, o Afonso não tem condição de conduzir, porque ele não tem interesse nisso; não é do feitio dele ser o Presidente para ter autoridade e tocar aquilo para frente." Aí ligou o Dr. Ulysses e reuniu os Líderes... E a verdade é o seguinte: todas as Lideranças, de todos os partidos, confiavam absolutamente no Dr. Ulysses.

Aí levaram ao Dr. Ulysses: "Olha, temos esse problema aí." Aí o Dr. Ulysses disse: "Olha, vamos fazer o seguinte; nós não podemos tirá-lo; vamos criar Vice-Presidentes, vamos botar Vice-Presidente para esta comissão e depois o Vice-Presidente assume e não se criam dificuldades." E aí foi o que aconteceu.

Aí quem são os Vice-Presidentes? E aí o PCdoB foi uma surpresa! O Haroldo Lima, que era o líder do PCdoB, que era um Deputado da Bahia, um bom sujeito, extraordinário, o Haroldo indica o Jarbas Passarinho. Foi aquele negócio! Acontece que o Jarbas tinha sido Presidente do Senado e o Jarbas era absolutamente legalista. Ele não atropelava ninguém. Ele era confiável. Eles tinham confiança. Aí foram o Fernando Henrique e o Jarbas, não sei se havia um terceiro...

ENTREVISTADORA– Havia um terceiro. Agora não estou me lembrando, mas tinha um terceiro. Eram três.

MINISTRO NELSON JOBIM– O terceiro já era Vice-Presidente, antes, que era o Aluízio. Era um que tinha um problema de um olho... Aluízio Campos, uma coisa assim, que era o Vice-Presidente, também não funcionava. E aí botaram mais dois. Esses dois acabaram presidindo aqui.

A gente resolveu o assunto.

ENTREVISTADORA– Vou pegar outra historinha, daí a gente entra na parte mais séria para encerrar, mas é que são histórias boas e a sua tem essa memória.

É a história lá do ciúme do Dr. Ulysses em relação ao Mário Covas, ou vice-versa. O ciúme do Mário Covas em relação...

Essa história é muito boa.

ENTREVISTADORA– É verdade que o senhor...

ENTREVISTADORA– Chamava de Dr. Ricardo, se identificava como Dr. Ricardo. Eu queria que ele falasse.

MINISTRO NELSON JOBIM– Havia um problema paulista. O Senador Mário Covas era um sujeito extraordinário, mas tinha lá suas divergências locais e tinha uma imposição refratária em relação ao Dr. Ulysses, porque o Dr. Ulysses também era reconhecida autoridade. Então os dois – o Mário também era daquele modelo – eram bicudos.

Aí o Dr. Ulysses às vezes ligava para o Plenário, lá para a comissão, para a liderança para falar com alguém. Nisso deu problema. Houve uma cena em que nós estávamos numa reunião de Líderes, presidida pelo Mário Covas, e nós estávamos discutindo Previdência Social, o capítulo da Previdência Social. E quem tocou nesse negócio da Previdência Social dentro da Liderança foi o Almir Gabriel, que era Senador e depois foi Governador do Pará. E o Almir tocou nesse assunto.

Então o Almir estava sentado ao lado.... Eu ficava sempre lá porque eu era o sujeito para escrever. Aí estava o Almir, o Mário, o Almir ao lado do Mário, o Britto e depois eu. Aí de repente veio uma moça lá da assessoria da Liderança e fala com o Almir no ouvido. E o Almir diz: "Mário, me desculpe, porque eu tenho que dar uma saída." Aí saiu lá, saiu o Almir, e demorou. E a sessão não começava, porque quem na verdade ia conduzir a sessão era o Almir Gabriel, que controlava aquele assunto. O Mário dava a ordem, ou mantinha a estrutura, mas não conhecia o problema. Aí volta o Almir. Quando o Almir volta, ele diz: "Pô, demorou!" E o Mário naquela época tinha largado o cigarro, então ele ficava com o cigarro na boca apagado, e mordia o cigarro.... Aí o Almir disse: "Me desculpe, Mário, mas é que o Dr. Ulysses me chamou."; "O quê? Chamou para quê?"; "Ele queria falar comigo sobre esse assunto."; "Ah, então ele que venha comandar aqui." E saiu da mesa, ficou furioso.

Bom, a partir daquele momento, nos telefonemas que ele, o Dr. Ulysses, fazia para mim, ele não dizia que era ele que queria falar comigo, era o Dr. Ricardo, porque aí evitava que desse algum estresse.

Eu fui galgando posições. Quando o Mário adoeceu e eu fui para a Constituinte, eu fiquei muito ligado ao Scalco, que era o 1º Vice-Líder. Eu fiquei muito atuante, junto com o Brito, mas as desconfianças criavam essa situação.

ENTREVISTADORA– Eu queria que o senhor falasse um pouquinho... O senhor foi uma pessoa que batalhou muito contra o decreto-lei. Não foi? O senhor tinha uma posição bem contrária ao decreto-lei, desde antes lá.

MINISTRO NELSON JOBIM– Lá atrás. Era o mesmo negócio da medida provisória.

ENTREVISTADORA– É. Aí, chegamos à medida provisória, que vários consideram o monstrengo da...

MINISTRO NELSON JOBIM– O que acontece é o seguinte: a diferença fundamental que se estabelecia é que o decreto-lei, se não fosse modificado pelo Congresso dentro de um período tal, ele se transformava em lei. Nós tínhamos clareza de que era necessário dar ao governo uma determinada posição de provocar o processo legislativo em questões urgentes.

Então, nós fomos atrás do decreto legge, da Itália, e nós chamamos de medida provisória, porque era diferente o mecanismo. A medida provisória era editada, entrava em vigor desde logo e se ela não fosse votada dentro do período, num primeiro momento, de trinta dias, ela perdia o efeito desde logo.

Então, como tinha a necessidade de haver a aprovação da medida provisória, eu defendi a medida provisória no modelo da época. Quem foi contra, duramente contra, foi o Líder do PDS, um Deputado do PDS do Rio Grande do Sul, que acabou sendo presidente do TCU, o Adylson Motta. O Adylson Motta é que fez o encaminhamento contra, e eu defendia a medida provisória. Eu era contra o decreto-lei no modelo militar. Inclusive, fiz um texto no início para os partidos, etc.

ENTREVISTADORA– Mas me parece que o senhor...

ENTREVISTADORA– Você está sem microfone.

Parece-me que o senhor não tem o entendimento de que a medida provisória não é realmente imprópria no texto da Constituição. Existe essa crítica de que ela não deveria ter sido mantida, porque o texto original era parlamentarista e tal. Parece que o senhor não concorda com isso, não é, Ministro?

MINISTRO NELSON JOBIM– Inventaram isso depois. Quando houve o texto do Centrão, qual foi a grande a disputa que tinha naquele momento, já na sistematização? A grande disputa no Plenário era presidencialismo ou parlamentarismo. Política. E de outro lado, você tinha uma outra disputa, que era dentro do mandato do Presidente Sarney.

ENTREVISTADORA– Então, medida provisória é ou não é imprópria na Constituição?

MINISTRO NELSON JOBIM– Como nós discutimos... Como se discutiu na Comissão de Sistematização, introduziu-se a medida provisória por necessidade, que seria para levar essa medida provisória para o primeiro-ministro, no regime parlamentarista. Quando veio a emenda substitutiva do Centrão, que era o regime presidencialista, a medida provisória era um texto do Centrão. Não foi um texto que veio para sistematização; se manteve no texto do Centrão como um mecanismo de edição de um ato contínuo, um decreto-lei do governo militar, que era a forma de você ter o enfrentamento de problemas urgentes, que eram.... Como é que era? São duas condições: é urgência...

ENTREVISTADORA– ... e relevância.

MINISTRO NELSON JOBIM– ... e relevância. Em matérias urgentes e relevantes podia o governo usar a medida provisória, que era a forma de você viabilizar.... Isso tem no regime presidencialista e tem no regime parlamentarista. A medida provisória tem no regime parlamentarista, como também esses tipos de atos, digamos, de vigência desde logo, para tratamento de casos excepcionais, tem no regime presidencialista. Então, é bobagem se dizer... E tem uns que dizem: "Ah, porque a Constituinte nasceu parlamentarista e depois virou presidencialista". Aí você pergunta para esse personagem: "Onde está o remanescente do parlamentarismo dentro da Constituição, que tu não encontras?" Aí eles vão para a medida provisória: "Ah, tem a medida provisória!" – e é só isso. Ou seja, é bobagem. Essa história é conversa. Do meu ponto de vista, é completamente... não tem sentido.

E aí eu citei outra coisa também. A Constituição é muito grande. Então, eu me lembro... Primeiro, vou contar dois fatos. Depois, o problema do tratamento dos direitos da pessoa humana, dos direitos humanos deu muito elogio para a Constituinte.

Quando nós estávamos fazendo o Regimento Interno.... Na história da Constituição brasileira, das Constituições brasileiras, os textos dos direitos humanos, estavam lá no art. 140, 150, normalmente. Portanto, desde lá atrás, desde a Constituição de 1891, republicana, como nas outras: no 140, está lá o elenco de direitos e garantias individuais. Aí, o Fernando Henrique disse o seguinte: "Olha, vamos fazer o seguinte: vamos trazer esse texto para cá, para o primeiro título da Constituição, para botar ali, porque esses textos são mais fáceis de aprovar. Aprovando esses textos aqui, nós prejudicamos vários outros assuntos que vão ser suscitados nas outras comissões".

E foi o que aconteceu. Então, nós botamos o texto de direitos e garantias individuais, porque votaríamos texto de direitos e garantias individuais ali, e depois de alguns debates na ordem econômica, ordem social, já estaria resolvido isso aqui. Então, várias emendas ou vários textos caíam pelo fato de você ter aprovado aqueles direitos em que o debate era só sobre o direito, não era sobre aquele texto logo adiante.

ENTREVISTADORA– O art. 5º, então?

MINISTRO NELSON JOBIM– É. O art. 5º. Aí, então, os comentaristas diziam: "Os Constituintes foram extraordinários por botar o compromisso". Não era, era uma técnica para você reduzir o debate na ordem econômica. Mas muita gente acreditou que haviam feito isso porque era um privilégio, e começaram a repetir.

Mas, na verdade, não foi assim.

ENTREVISTADORA– O senhor afirmou, em mais de uma entrevista, na nossa pesquisa, que o senhor acha que deveria haver uma lipoaspiração na Constituição. O senhor defende, então, uma reforma constitucional que realmente diminua essa Constituição?

MINISTRO NELSON JOBIM– Veja, ocorre o seguinte: por que a Constituição é longa? Porque era mais fácil você aprovar um texto constitucional do que aprovar uma lei. A lei, em 1987, tinha de passar primeiro pela Câmara e ser aprovada; depois pelo Senado e ser aprovada. Se o Senado modificasse o texto da Câmara, tinha de voltar para a Câmara para a Câmara votar o texto do Senado. Depois disso, o texto ia para o Poder Executivo. Daí o texto poderia ser vetado. Depois, voltava o veto para o Congresso para o Congresso rejeitar o veto – e a maioria era de dois terços.

Então, era muito mais difícil você aprovar uma lei ordinária do que você aprovar um texto da Constituição, que precisava de maioria absoluta em dois turnos de votação. Então, a tendência...

De outra parte, você também tinha grande desconfiança, porque aquele Plenário, aquela política, naquele momento, aquele Executivo, por causa do governo militar, da lembrança do governo militar; toda aquela geração que estava lá tinha convivido com o governo militar.

Então, vamos botar tudo para dentro da Constituição.

Ao botar tudo para dentro da Constituição, você criou um problema: você colocando tudo para dentro da Constituição, sendo que alguns textos você trabalhava com ambiguidade para conseguir a aprovação, você aumenta, digamos, a participação do Poder Judiciário na definição dos textos.

Ou seja, hoje a constitucionalidade de uma lei depende de duas análises: uma que a lei chama de constitucionalidade formal. Se ela obedecer aos mecanismos de aprovação, os mecanismos regimentares e legais de aprovação etc. e tal, se a iniciativa era ou não era privativa de alguém etc., aí seria constitucional. Além do mais, o texto tem o que eles chamam de constitucionalidade material, que é o texto não ser contra, no mérito, a algum conteúdo dessa Constituição.

Bom, no momento em que você fez isso, ocorreu um fenômeno, depois da Constituição, no relacionamento com o Poder Judiciário. Como isso aconteceu? Começou a haver uma incapacidade progressiva dentro do Congresso, principalmente depois... A coisa ficou mais clara quando houve aquela eleição do Severino Cavalcanti.

Mas o fato é que, antes disso, começou a desaparecer a consistência de o sistema político resolver as suas divergências. Ou seja, as divergências eram resolvidas no sistema político e acabavam. Mas, aí, houve um momento de partidos. Alguns partidos.... Eu me lembro de um Senador do Rio de Janeiro, do PSB, que tinha um nome árabe, que dizia o seguinte: o meu partido é tão pequeno – ele era um Senador – que é mais importante eu votar lá e perder no Senado, porque depois eu entro com uma ação, vou lá apresentar uma ação direta de inconstitucionalidade. Por quê? Porque a Constituinte tinha aumentado o número de legitimados para promover as ações diretas de inconstitucionalidade.

Aí, o que aconteceu? Os políticos que não resolviam, que não se satisfaziam com a solução no âmbito político começaram a acionar o Tribunal, o Supremo. Aí, o que aconteceu? No início, o Supremo teve uma posição de retração, ou seja, de contenção: "Não, isso é matéria política, não vou entrar nisso". Mas, depois, com as mudanças da composição do Tribunal, começaram alguns a gostar disso, e aí começou o Supremo a intervir no processo político, começando.... Inclusive, agora, neste momento, nós temos aí duas hipóteses curiosas. Por exemplo, a Constituição diz claramente que não é possível... Uma das condições de admissibilidade de uma candidatura é você ter filiação partidária. E agora tem lá um pedido no Supremo, uma ação, não sei bem o que é, de que é Relator o Ministro Barroso, que pede a tal de candidatura avulsa, que é não filiada a partido. Aí, o Supremo marcou audiências públicas. Para quê? Para discutir conveniência? Conveniência não se discute no Supremo, discute-se no Congresso.

ENTREVISTADORA– Era isso que eu queria perguntar para o senhor. Na verdade, é a minha última pergunta. A gente tem hoje, com tudo que está estabelecido e com isso que o senhor acaba de relatar e apontar, um absoluto equilíbrio entre os Poderes? Está estabelecido isso na Constituição?

MINISTRO NELSON JOBIM– Há uma disfuncionalidade. Nós temos, hoje, um mecanismo de disfuncionalidade dentro da Câmara. No Senado, não, porque o Senado tem uma característica diferente. Dentro da Câmara há uma disfuncionalidade, e temos uma disfuncionalidade também dentro do Supremo.

Na Câmara, a disfuncionalidade começou.... Havia iniciado o processo de inconsistência dos partidos políticos, mas ele ficou mais agravado com a eleição do Severino Cavalcanti. Lembre-se de que, em 2005, o PT e o PSDB não se acertaram na composição da Mesa. E aí houve três candidatos, três ou quatro candidatos a Presidente da Câmara: um daqui de São Paulo, o Greenhalgh; uma divergência interna dentro do PT, o candidato era o Virgílio Guimarães; um candidato do PFL, que foi um Deputado da Bahia, o Aleluia; e, em quarto lugar, o Severino Cavalcanti, que era candidato do "baixo clero". O PSDB não se entendeu com o PT, e o PT, internamente, também não se entendeu. Teve um candidato dessa... E aí o PSDB não teve candidato.

Resultado da votação, em primeiro turno: os mais votados foram o Greenhalgh e o Severino Cavalcanti. Quando foi para o segundo turno o Severino Cavalcanti, o PSDB despejou os votos no Severino Cavalcanti como retaliação ao PT, porque deveria ele ter a Presidência da Câmara, porque ele era o partido majoritário naquele momento. Elege-se o Severino Cavalcanti.

Qual foi o efeito da eleição do Severino? Naquilo que eu conheço a Câmara, você tem, tinha uma estruturação da Câmara no seguinte sentido: você tem a massa de Deputados, que hoje são 513; em cima dela você tinha as Lideranças partidárias; e em cima a Presidência da Câmara e, depois, o governo.

Os Deputados, para terem acesso ao Presidente da Câmara, para, enfim, levar suas reivindicações, precisavam do apoio dos seus Líderes. Para ter acesso ao Governo, para os Deputados irem lá reivindicar posições e situações regionais, etc., eles precisavam dos Líderes.

Com isso, o Líder tinha não só uma autoridade política, como tinha uma utilidade instrumental para os Deputados. O Deputado tinha que ter, digamos, uma relação com a Liderança. E, com isso, em linhas gerais, nós podíamos dizer que um Líder partidário tinha o voto de 80% da sua Bancada. Vinte por cento da Bancada eram de Deputados da sua Bancada, que eram, digamos, autoridades ou tinham formação de opinião – e esse Líder tinha que se dirigir para negociar com eles.

Com isso, você tinha um mecanismo de consistência de negociação. O Governo – não só o Governo, mas também os projetos internos dos partidos, etc. –, para fazer uma negociação, negociava com os Líderes partidários. E para a negociação com as Lideranças partidárias sobre um projeto – em um projeto de Governo, que tem interesse no Governo –, você possuía duas formas de negociação: ou você conseguia fazer uma negociação de mérito... Na negociação de mérito, havia dois tipos: a negociação que envolvia o próprio Governo – o Governo assumia o compromisso de não vetar ou assumia o compromisso de vetar, mas mandava um projeto imediato, porque precisava votar rápido ou coisa parecida – e ainda existia a outra forma, que não envolvia o Governo – o sujeito aprovava no Congresso, e o Governo tinha possibilidade de vetar.

Se não houvesse ou não desse solução esses acordos, não se construísse uma solução de acordo, você tinha os chamados acordos processuais, que eram acordos de procedimento: como é que vamos votar – coisas simples –, que dia iremos votar, como a votação será feita, essa votação será na quinta-feira ou na terça-feira. Quinta-feira é mais interessante para aqueles que não querem aprovar, porque o quórum cai mais rápido, etc. Então, você tinha esses entendimentos que eram feitos pelos Líderes.

No momento em que foi eleito o Severino – isso depois continuou, no meu ponto de vista –, o Severino se reverenciava diretamente.... Ou melhor, os Deputados baixo clero ou a massa se reverenciavam diretamente ao Presidente da Câmara, e aí os Líderes perderam a sua capacidade de controle das Bancadas, porque era o Severino que, digamos, marcava audiência dos Deputados com o Governo, pedia para receber fulano ou beltrano, substituindo a função dos Líderes, que perderam a importância. Tanto é que hoje, vou repetir, você sabe quem são os Líderes dos Partidos na Câmara?

ENTREVISTADORA– Não. Só muito poucos.

MINISTRO NELSON JOBIM– Não sabe. Antes você tinha o Líder do PMDB, que dava entrevista e tal. Não tem nada, hoje não tem nada. Por quê? Porque não tem importância. E, com isso, você perdeu a consistência do Partido. Você criou um problema brutal para uma negociação política que possa se fazer dentro para criar as maiorias necessárias para aprovar a matéria. Isto empurrou o Governo a recorrer, digamos, abusivamente das medidas provisórias, porque, na medida provisória, você cria um fato consumado e, depois, vai tentar negociar em cima do fato consumado.

Então, você observa que há muito pouco projeto do Governo. Usa-se medida provisória para qualquer coisa. Não é porque o Governo é autoritário, é porque a disfuncionalidade está posta dentro da Câmara.

Isso se repetiu. Quando o Severino caiu, o Michel foi eleito Presidente da Câmara, mas ele já não reconstituiu aquele Governo que vinha detrás. Depois, quando foi eleito o Eduardo Cunha, foi a mesma coisa. O Eduardo não fez nada no sentido de reconstituir. Os presidentes posteriores não retomaram a consistência, por quê? Porque gostaram de ser o personagem principal do jogo.

O mesmo se passou com o atual Presidente, o Rodrigo Maia, que também é, são todos bonapartistas. Eles se dirigem ao Plenário e não aos Líderes, não são intermediados pelos Líderes. E aí, perdeu a importância.

ENTREVISTADORA– Bom, isso...

ENTREVISTADORA– A segunda coisa que o senhor ia dizer é em relação ao Judiciário, porque a gente estava falando do equilíbrio.

MINISTRO NELSON JOBIM– Vamos chegar lá.

Então, veja bem, com essa inconsistência da Câmara, essas inconsistências da Câmara começaram a levar as disputas políticas para o Poder Judiciário. Como o texto da Constituição é muito amplo, o Judiciário começou a avançar em decisões claramente legislativas, através de discursos. O que aconteceu no Poder Judiciário? Começou a moda dos princípios. O princípio passou a ser um instrumento retórico para não aplicar a Constituição e inventar uma solução nova.

Eu te dou o exemplo, esse aí, que é texto óbvio: é condição de elegibilidade ou de ser candidato ter registro em partido político. Aí, o sujeito diz: "Não precisa, vamos botar um avulso". O sujeito, em vez de indeferir esse troço logo, não; convoca uma audiência coletiva. Para discutir o quê? A conveniência. A mesma coisa vai acontecer com o negócio do aborto. Vão fazer audiência coletiva sobre o aborto, vão ficar discutindo dois meses, três meses, pode, não pode. Se pode, pode até quando? Isso tudo é uma discussão tipicamente legislativa, mas está sendo feita dentro do Supremo, dentro daquela regra que eu referi a vocês.

E, no Supremo, você tem o problema da visibilidade. A transparência, que era o objetivo do Marco Aurélio quando criou a TV Justiça – foi ele que criou isso –, o Marco Aurélio tinha o compromisso de fazer o trabalho transparente. A transparência hoje do Tribunal, via televisão da Justiça, não é mais transparência; é visibilidade individual dos seus membros, que é um problema, digamos, de inconsistência dentro do próprio Tribunal, de desfuncionalidade dentro do Tribunal, porque você não tem mais liderança dentro do Tribunal que dê uma conformidade colegiada. O Tribunal hoje são disputas internas entre diversas correntes e diversos indivíduos que tentam ter sua visibilidade através desse mecanismo aí que vocês estão usando.

Bom, o que é que eu acho? Como é que você consegue um acordo de reforma constitucional, no meu ponto de vista? Teríamos que, primeiro, fazer um acordo, dizendo: "Quais as matérias que estão na Constituição que devem ir para a lei, sair da Constituição e irem para a lei?". Há várias. Então, alguém faz um conjunto disso e examina. E qual é o discurso político para convencer o Parlamento a tirar da Constituição aqueles artigos? O discurso político é que, com isso, você retoma a capacidade de controle do processo de gestão do País, não fica mais com o Judiciário. Não sendo matéria constitucional, o que vai ser votado lá não tem nada a ver com Constituição; tem a ver com legislação ordinária.

Como é que você pode fazer isso? Você não pode fazer isso tentando discutir méritos das questões. Então, você dividiria em dois momentos: um primeiro momento seria fazer um acordo sobre o que é que tem que sair do texto. Na ordem tributária, aquilo lá é um corte tributário infernal. Tira aquilo lá de dentro, mas uma parte você não pode tirar. Vai substituir o que por aquilo? Então, você faz a seguinte técnica: pega um texto, artigo tal, etc., na emenda, essa constitucional e diz: "vai para as disposições transitórias". E bota um artigozinho dizendo o seguinte: "Até que seja votada a lei ordinária correspondente, continuarão vigendo essas regras". Essas regras deixam de ser de ser constitucionais, mas continuaram, vai haver um gap, um buraco entre as duas coisas. Então, lá adiante você vai discutir a reforma constitucional, que não é mais; é reforma da lei. Aí vão votar a lei e serão leis complementares, depende do acordo que for feito.

ENTREVISTADORA– Faria a mesma coisa para a reforma política, Ministro?

MINISTRO NELSON JOBIM– Perfeitamente. Mas qual é o grande argumento? O grande argumento é: essa é a nossa proposta, uma proposta para que o Parlamento retome sua autonomia e sua capacidade de decidir matérias, já que o Judiciário estava fazendo isso através da alegação de que determinadas decisões nossas contrariam a Constituição. Tirem os artigos que justificariam esse discurso e nós voltamos a ter o poder de novo.

ENTREVISTADORA– Na reforma política, no que o senhor acha que é preciso mexer?

MINISTRO NELSON JOBIM– Veja, eu vi essa reforma, essa minirreforma que foi feita: muito boa. É muito boa por quê? Observe, nós temos hoje, na Câmara – é claro, eu estou me referindo sempre à Câmara, porque é eleição proporcional –, 25 partidos políticos, sendo que alguns deles são organizados em dois blocos parlamentares.

Faz-se uma reforma política e se estabelece o seguinte: 1. Na eleição de 2018, pode haver coligação partidária; na eleição de 2022, não pode haver coligação partidária nem mais para a frente. Essa seria a última coligação partidária nas proporcionais. E diz mais, redesenha a cláusula de desempenho, que não é cláusula de barreira; é cláusula de desempenho, estabelecendo uma progressão.

ENTREVISTADORA– O senhor pode explicar a diferença entre desempenho e barreira?

MINISTRO NELSON JOBIM– Nesse caso não é. Nesse caso é o seguinte, na eleição de 2018, depois aumenta: o partido que não obtiver 1,5% dos votos nacionais ou não tiver elegido um mínimo de nove Deputados distribuídos em um terço dos Estados brasileiros, que são nove, não cumpriu o desempenho. E aí qual é a consequência? Esse partido não pode, não participará do Fundo Partidário e não participará daquelas propagandas eleitorais intercorrentes, não de campanhas, aquelas de anúncio.

ENTREVISTADORA– A institucional?

MINISTRO NELSON JOBIM– A institucional. Pois bem, aí você conjuga as duas regras. Eu sou candidato, sou Deputado ou vou ser candidato a Deputado e entro numa coligação partidária. Sou eleito. Na coligação, a conquista das vagas num Estado é feita pelos votos dados à coligação: o número de votos que a coligação obteve, que os candidatos da legenda da coligação obtiveram fazem a conquista de vagas. Quem foram os eleitos? Vamos supor que essa coligação conseguiu, conquistou cinco vagas. Foram os cinco mais votados. Nessa hipótese, com relação aos cinco mais votados, o que nós vamos ter? Eu, vamos supor, sou o quinto mais votado e fui eleito, fui eleito com esse quinto lugar. Sou eleito, tomo posse e verifico que o meu partido, que é o caldo dessa coisa feita com base nos votos dados ao partido e não à coligação, o partido da coligação conseguiu x votos. Aí, eu verifico que o meu partido não fez 0,5% no País todo e, portanto, não vai ter essas benesses das duas situações.

O que acontece? Eu tenho ainda uma notícia terrível: em 2022, essa coligação que viabilizou a minha eleição não vai acontecer. O que vai acontecer? Esse Deputado troca de partido, porque a lei autoriza, durante esse período, que pode haver ajustamento de partidos. O que vai acontecer? Esse Deputado sai do partido que lhe deu a vaga e vai para um partido maior, para viabilizar a sua reeleição lá, em um partido que tenha cumprido a cláusula de desempenho.

Com isso, você estreita o número de partidos e viabiliza que o novo governo que vem em 2019 possa recompor a funcionalidade da Câmara. E observe que eu fiz um cálculo simples, apliquei essa regra nova nas eleições, na atual composição da Câmara: 10 partidos não teriam cumprido a cláusula de desempenho, ou seja, dos 25 partidos, 15 continuariam utilizando. Lembre-se: sem mexer nos Deputados. Agora, se você sabe que eu me elegi na coligação e vejo que o meu partido é um dos 15, eu vou sair do meu partido. O meu partido desaparece na Câmara.

ENTREVISTADORA– A gente não queria encerrar, mas a gente só vai encerrar porque o senhor precisa ir embora. Então, eu vou fazer a última pergunta que a gente faz. A Constituição mudou a sua vida, a sua participação na Constituinte e ter realizado a Constituição mudou a sua vida de cidadão ou de jurista ou de advogado?

MINISTRO NELSON JOBIM– Alterou tudo, porque eu era um advogado do interior do Estado, professor da faculdade de Direito de lá, e aí entrei num outro ritmo. Agora, eu não faço comparação. Alguém me pergunta assim: "Foi melhor ser Deputado constituinte ou foi melhor ser Ministro da Justiça, ou era melhor ser Ministro do Supremo, durante os dez anos em que você ficou, ou era melhor ser Ministro da Defesa? Qual era o melhor?".

ENTREVISTADORA– Não, não estou fazendo...

MINISTRO NELSON JOBIM– Esse tipo de assunto eu não olho, porque só dá problema e não dá solução.

ENTREVISTADORA– Eu não estou fazendo. É só mesmo para saber o que aconteceu com o ser humano quando fez...

MINISTRO NELSON JOBIM– Quem é sábio na verdade é o Zeca Pagodinho: "Deixa a vida me levar".

ENTREVISTADORA– Ministro, eu vou ter que fazer uma pergunta de jornalista, porque, em 2003, o senhor fez uma revelação ao O Globo, e essas coisas precisam ser ditas, daqueles artigos que teriam entrado apenas na comissão de redação. Eu considero que foi, enfim, ajuste, mas queria sua opinião, para o senhor ter a oportunidade até de dar um depoimento sobre o que aconteceu.

MINISTRO NELSON JOBIM– O que saiu em O Globo na época não era bem aquilo. Eles fizeram aquilo e ficou, mas o fato foi o seguinte: como nós tínhamos começado aquele processo Constituinte todo, quando chegou à Comissão de Sistematização, aliás, quando aprovamos o texto final do segundo turno é que nós começamos a examinar o conjunto total da obra, porque antes as discussões eram pontuais. Aí se identificou que faltavam coisas, que havia coisas contraditórias, que nós tínhamos aprovado uma coisa que poderia contradizer outra. E aí, o que aconteceu? Na Comissão de Redação, que era presidida pelo Dr. Ulysses – e integravam a Comissão de Redação as Lideranças partidárias todas e mais alguns Líderes, cuja regra eu não lembro –, nós tínhamos um acordo político. O acordo político era o seguinte: "Olha, esse artigo acabou não aparecendo, vamos ter que colocar". Se todos os Líderes que participaram concordassem, você colocava o artigo ou modificava o artigo.

Eu me lembro de dois deles. Um deles foi aquela regra do art. 3º: os Poderes são harmônicos e independentes entre si. Isso foi um artigo que faltou quando se mudou do governo parlamentarista para o governo presidencialista, porque não tinha essa regra. Então, vamos colocar. Todos concordam? Concordamos. Outro foi o negócio da autonomia das universidades, que não existia. Então, se fez um texto sobre a autonomia das universidades.

Quando terminou a Comissão de Sistematização, houve uma reação, por parte dos Parlamentares, de que a Comissão de Redação tinha modificado o texto, não era só uma Comissão de Redação, mas tinha conteúdo, o que era verdade.

Qual foi a solução dada ao problema? O Carlos Santana, que era o Líder do Governo na Constituinte, levantaria uma questão de ordem mostrando as modificações que a Comissão de Sistematização fez. Eu, que era Líder do PMDB, no final, contradiria a questão de ordem, dizendo que as modificações se fizeram por isso e por isso. E a solução que o Dr. Ulysses daria era que a aprovação da redação final se daria por maioria absoluta com voto aberto, com voto nominal e não com voto simbólico. Ou seja, nós criamos o que seria um terceiro turno.

Aí, quando houve a sessão, o Dr. Ulysses nos disse: "Não vamos fazer aquela liturgia das questões de ordem, eu vou decidir logo isso". Ele fez um discurso, quando da votação da redação final, fez um discurso não reconhecendo o fato, mas dizendo: "Afirma-se que a Comissão de Redação, que a Constituinte, no segundo turno, também fez modificações que não podia fazer", porque o segundo turno era só emenda supressiva e houve modificações no mérito no segundo turno, aquelas tais emendas de transação. Aí o Dr. Ulysses disse isso e convocou: "Vamos fazer uma votação final, para aprovação do texto final, não com votação simbólica", como dizia o Regimento, "mas com votação nominal". E ele fez a votação nominal, houve 480 votos, então, ele disse: "Com isso ficam sanados os problemas existentes". Então, foi isso que se resolveu. Não tem nada de misterioso, foi tudo combinado.

Eu me lembro de um caso em que sugerimos que fosse mexido na Comissão de Redação, e não foi aceito, que era alguma coisa relativa à Justiça Militar, não me lembro bem o que era. E que se opôs foi o Líder do PDT, que era...

ENTREVISTADORA– Vivaldo?

MINISTRO NELSON JOBIM– Não, um sujeito forte. Você se lembra dele.

ENTREVISTADORA– Lembro, do Rio de Janeiro.

MINISTRO NELSON JOBIM– Do Rio, muito boa pessoa.

ENTREVISTADORA– Esqueci o nome dele. (Deputado Brandão Monteiro/PDT/RJ)

MINISTRO NELSON JOBIM– Esse líder, que era um cara ótimo, tinha recebido a posição do Paulo Ramos, que era Deputado, depois foi secretário, enfim. O Paulo Ramos era um Deputado do Rio de Janeiro ligado à Polícia Militar e ele disse: "Olha, eu não concordo com isso". Aí o Líder do PDT, a bancada se opôs. Acabou, então, não se fechou.

ENTREVISTADORA– Então, a conclusão disso é de que não houve inclusão de matéria não votada?

MINISTRO NELSON JOBIM– Essa discussão está toda no Diário Oficial, no Diário da Constituinte. O único defeito da Constituinte sabe qual é? Aquele mundaréu de volumes que foram publicados, mas não tem índice.