Entrevista completa Ministro Bernardo Cabral


Depoimento gravado pelo jurista, ex-deputado e ex-ministro Bernardo Cabral em seu escritório no Rio de Janeiro pela equipe do Serviço de Arquivo Histórico (SEAHIS) da Coordenação de Arquivo (COARQ).

 

Degravado e revisado pela equipe de taquígrafos analistas de Registro e Redação Parlamentar (taquígrafos) da Secretaria de Registro e Redação Parlamentar (SERERP) da Secretaria Geral da Mesa (SGM).

 

(Texto com revisão.)

ENTREVISTADORA– Em 23 de agosto (julho) de 2018, registramos o depoimento do Jurista Bernardo Cabral, ex-Deputado, ex-Ministro sobre a sua participação como Parlamentar e Relator-Geral da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988 como parte do projeto de história oral comemorativo dos 30 anos da Constituição.

Participam da gravação nós servidores, Virgínia Malheiros Galvez, Tânia Fusco, Ricardo Alagemovits e Elcio Patrocinio.

Ministro Cabral, vamos falar um pouco da sua história fora da Constituinte. Consta que o senhor se decidiu pela carreira do Direito aos 17 anos para atuar na acusação do julgado do assassinato do seu irmão, morto aos 27 anos.

Com apenas 22 anos o senhor se bacharelou e iniciou a sua carreira no tribunal do júri. A sua formação inclui ainda Psicologia, Serviço Social e outras tantas graduações. O senhor construiu uma carreira marcante e diversificada nas áreas do Direito, jornalismo e na política. Dentre os cargos executivos, o senhor foi chefe de polícia, secretário de governo do interior e da Justiça, procurador jurídico e fazendário do Amazonas, seu Estado, chegando mais tarde, já depois da Constituinte, a Ministro da Justiça.

Conte um pouco dessas experiências na vida pública, Ministro, por favor.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Bom, a primeira experiência é muito dolorosa. Eu ia estudar engenharia, já tinha obtido uma bolsa de estudos para os Estados Unidos e, no mês de janeiro de 1949, eu recebi essa notícia.

Eu estava me preparando para em julho fazer essa viagem quando, no dia 15 de maio de 1949, um domingo, uns amigos na parte da tarde convidaram meu irmão para irem a ir a um barzinho fazer a comemoração de um aniversário. Um policial chegou ao local e entendeu – não sei de que modo, eu não estava presente – que eles estavam fazendo muito barulho e que iria acabar com a festa.

O meu irmão caiu na imprudência – hoje eu digo imprudência, mas ele tinha razão – de perguntar por que e com que autoridade ele iria acabar com aquela festa. Meu irmão e outros tinham apenas vinte e poucos anos.

Ele puxou uma Parabellum, que era uma arma de guerra àquela altura, e disse "Acabo a festa porque eu quero." E deu o primeiro tiro na perna do meu irmão, que caiu ajoelhado. Ele deu outro tiro, de cima para baixo, que o transfixou, atingindo a artéria da coxa. Tendo perdido muito sangue, ele faleceu.

Com a morte do meu irmão nesse brutal assassinato, eu não fui mais viajar, porque éramos só nos dois e a minha mãe pediu, pelo amor de Deus, primeiro, que eu tirasse da cabeça a vingança, porque ela não queria chorar um filho morto e outro na cadeia, e que eu não viajasse mais, porque, senão, meus pais iriam ficar sozinhos. Eu não fui e fiz vestibular para Direito.

Como eu havia tirado primeiro lugar tanto no básico como no científico, porque tinha feito científico para me preparar para Engenharia, eu achava que era um aluno estudioso, e, como não havia, naquela altura, vestibular para que você se preparasse em cursinho – o que havia era apenas o vestibular de exame direto –, eu fiz e passei direto para a Faculdade de Direito, sempre com a ideia de que eu iria estudar Direito porque um dia acusaria o matador do meu irmão. E assim o fiz. Só que, como ele era policial, houve espirit de corps, e o inquérito não andava – durante quatro anos, ele não andou.

E tirei, àquela altura, uma Carta de Solicitador, que era um documento dado pelo Tribunal de Justiça, pela Presidência, para que você pudesse advogar acompanhado de um advogado. Chamava-se solicitador.

Eu fiz amizade, não no sentido da amizade de grande conhecimento, com um promotor de Justiça, que foi muito corajoso. Ele procurou de todo jeito esse inquérito; o inquérito veio, e ele denunciou o guarda quatro anos depois. E ainda um juiz mais corajoso acolheu a denúncia e mandou ao tribunal do júri.

O tribunal do júri, como todos sabemos, é uma coisa meio teatral. Como eu havia participado de vários concursos de oratória e havia sido vencedor, eu comecei levantando os autos, fazendo o célebre cumprimento ao presidente do tribunal do júri, ao promotor, aos colegas advogados – eram três que faziam a defesa do guarda, e um deles era meu professor na Faculdade de Direito –, e virei-me para o conselho de sentença com os autos e disse: "Senhores do Conselho de Sentença, eu me encontro neste Tribunal com a procuração dos meus pais para acusar o matador do meu irmão". Isso foi um pouco teatral, mas era o sentimento que eu tinha. Ele foi condenado pelo júri a 13 anos; apelou, houve um segundo júri. Eu já estava terminando a Faculdade de Direito e era assistente da Promotoria.

No segundo júri, o meu professor da faculdade cometeu um erro citando a página, que eu sabia de cor, pois só tinha aquilo. Eu disse a ele que ele estava faltando com a verdade. Isso criou um pouco de pânico no conselho de sentença, porque ele colocou o dedo em riste dizendo "você é muito moço para saber se um professor seu está faltando com a verdade". Disse: "Então, leia!" Ele não sabia que tinha sido mudado, porque ele tinha muito renome, e procurou e não encontrou. Eu sabia onde estava, mas não disse. Aí eu apelei para o conselho de sentença fazendo a alteração. Foi teatro? Foi.

O segundo dizia que ele tinha quatro filhos. "Ah, quatro filhos... Mandar esse homem..." Eu peguei a folha corrida, onde ele era dado como solteiro, onde dizia que ele não era casado, que não tinha nenhuma amante... Portanto, não existiam filhos. Tudo aquilo era o teatro da falta de verdade. E ele foi condenado a 20 anos.

O Código de Processo Penal dizia que quem fosse condenado a 20 anos poderia protestar por novo júri. Ele foi a novo júri, e o terceiro júri o condenou a 20 anos.

Quando ele foi para a penitenciária, anos depois, não sei de que modo – com o assassinato do meu irmão, a minha mãe passou um mês sem comer. Foi um choque danado. Vivia de choro –, ele, depois de muito tempo, procurou a minha mãe, através não sei de quem, para pedir perdão. A minha mãe disse que não o recebia, mas o perdoou. Ele cumpriu a pena.

Então, o começo da minha vida na advocacia me levou a fazer concurso para promotor – eram muitos candidatos, e eu passei em segundo lugar – porque eu queria um título para ser professor titular da faculdade, aquelas coisas todas, professor catedrático, que nunca cheguei a ser porque não abriram concurso, mas eu fiquei com esse título.

Mas eu vi que a minha vocação não era o Ministério Público. Eu tinha ido acusar o matador de um irmão meu, e eu não nasci para isso. E fui advogar. Fui advogado a minha vida inteira. Quando eu cheguei a completar seis anos... Na nossa turma na faculdade de Direito – nós éramos uma plêiade de garotos muito, muito danados; danados, estudiosos –, na nossa turma, todos disputavam o primeiro lugar; só um que não era. E, dentre esses todos, eu acabei tirando o primeiro lugar e fui o orador da minha turma. Então, nós fizemos um grupo para lutar contra o que havia de ruim na Assembleia Legislativa. Aí começa a minha carreira de político junto com advogado.

Nós éramos cinco apenas. Àquela altura, a Assembleia Legislativa do Amazonas tinha 30 Deputados. E nós cinco fazíamos, éramos muito aguerridos – muito! E nos pegou em plena revolução de 1964. O governador tinha sido eleito em 1962 – portanto, ele não tinha cumprido dois anos de mandato –, e o General Presidente da República, Castello Branco, mandou o Gen. Jurandir Bizarria Mamede para Manaus para fazer a eleição do candidato do governo militar.

O candidato era um homem muito sério, o Artur César Ferreira Reis, professor. Não havia nada contra ele, mas havia contra o Texto Constitucional, e eu declarei que não ia à reunião com o Gen. Mamede. A casa do general ficava bem ao lado da assembleia, porque lá não era o local para discutir o assunto. E não fiquei ou não fui bem visto por essa atitude independente. Imaginem, eu tinha 30 anos, cheio de vida e de...

No dia da votação dos 30 Deputados, eu disse que tinham criado um ato adicional reformando a Constituição Estadual e que era um verdadeiro estupro. Foi a primeira vez que se falou em estupro no Direito Constitucional. E eu votava contra. Eu era o quinto a votar. Quase que não me deixaram votar. E, dos 30, eu fui o único a votar contra.

No dia seguinte, os jornais colocaram: "Bernardo, único voto discordante da revolução". Com isso, acabei sendo candidato a Deputado Federal, e eu não queria mais ser político. Por este voto, que muitos tomaram como independente e corajoso e eu tomei apenas como coerente com o meu – eu tinha sido um bom aluno em Direito Constitucional –com os meus conhecimentos de Direito Constitucional. Nada de pegar em torno disso qualquer glória. Não. E dei essa declaração, mas acontece que extinguiram os partidos. O Ato Institucional nº 2 os extinguiu, e o Castello Branco criou a Arena e conseguiu que depois o MDB fosse criado.

Naquela altura, nós tínhamos duas pessoas que tinham muita liderança nessa área de oposição. Era o velho Arthur Virgílio, pai do Arthur Virgílio, que foi Senador e que hoje é Prefeito de Manaus. E ele, apesar de ser de mais idade que eu, tinha muito estima, muita admiração. Nós fundamos o MDB.

Quando nós fundamos o MDB, eu fui o mais votado na história política do Amazonas, porque era o líder. E, como fiz sozinho meu coeficiente eleitoral, chamei mais um comigo. Fomos os dois. Entre os oito, só nós dois do MDB fomos. E no MDB foi aquilo que todo mundo já sabe, respondendo à sua pergunta sobre por que eu fui político.

Aí chegamos lá cheios de novidade. Conseguimos todos nós, jovens, eleger Mário Covas, que era mais velho que eu três ou quatro anos, Líder da oposição. E eu fui o primeiro Vice-Líder. Daí foi muito difícil a gente, com dois anos de Deputado Federal, 1967, 1968... Em 1968 há até algumas publicações nos jornais da época: eu fui o primeiro a ir defender o voto do Márcio Moreira Alves, que estava sendo cassado. Foi pedida a cassação dele, do mandato dele pelo Poder Legislativo. O Governo militar teve esse cuidado, porque achava, como tinha a maioria, que ele seria cassado facilmente. O Mário estava em São Paulo e me pediu para fazer a defesa. Eu fui, cheio de livros de Direito Constitucional. Nós conseguimos derrubar, e ele não foi punido pelo Poder Legislativo. Isso foi no dia 12 de dezembro de 1968.

No dia seguinte, saiu o Ato Institucional nº 5. Eu e todos os demais ou todos os demais e eu fomos cassados. Eu perdi dez anos de direito político, perdi a minha carreira de professor universitário, fiquei sem nada.

Como eu não podia ir para Manaus, porque era longe e caro... Naquela altura, nós não tínhamos gabinete de Deputado Federal. Era um salão muito grande, com máquinas de escrever; só quem tinha o gabinete era o Líder da oposição, o Líder da situação e o presidente dos dois partidos. Nós todos, todos, fazíamos... Nós todos fazíamos nosso... Não havia nada de assessoria. Os nossos discursos eram cada vez mais duros, e o Ato Institucional baixado nos cassou.

Como eu tinha vindo no nosso Fusca para o Rio... O Estatuto do Cassado, que foi documento do governo militar, proibia que você saísse do local onde tinha acontecido a cassação. Eu estava aqui no Rio, quando o Repórter Esso anunciou: logo, primeiro, um rapaz que era do Espírito Santo, aí mais outro e Bernardo Cabral. Como meu nome é José Bernardo Cabral e como parlamentar eu só usava Bernardo Cabral, cassaram o Bernardo lá em cima, e o último, José Bernardo Cabral. Eu fui cassado duas vezes, como se fossem duas pessoas diferentes.

A partir da cassação, fiquei aqui no Rio, e a única coisa que eu sabia... Só isso mesmo eu sabia: ser advogado, porque eu não podia ter Carteira de Identidade, não podia fazer concurso público, não podia ser mais professor de faculdade, porque tinham tirado...  Enfim, eu fui advogar no canto de uma sala de um amigo meu que era pernambucano, chamado Haroldo de Melo. Durante uns 19 anos, eu fiz aquilo. Então, saí da política e continuei na advocacia. Em função de eu ter ficado no Rio, fui, primeiro, Conselheiro da Seccional da Guanabara, depois, Conselheiro Federal da OAB, Secretário e Presidente da Ordem. Então, começaram as duas coisas. Eu fui político por necessidade e por vocação sem nunca ter pensado ser advogado. Eu não seria. Eu acho que eu seria um péssimo engenheiro porque, quando fui Presidente da Ordem, cunhei uma frase de advogado, que era no Brasil inteiro. Eu acho que até já perdi a autoria. Alguns lembram. Em função de uma reunião que nós tivemos uma vez – eu, como Presidente da Ordem, com – eu vou dizer o nome dele, que era muito meu amigo, porque o advogado dele era muito ligado a mim – o Prof. Ivo Pitanguy, que, naquela altura, já estava no auge da cirurgia plástica, e um engenheiro nosso, cada um puxou para a sua, dizendo que era a mais bonita das profissões. E o Pitanguy foi brilhante, disse: "Não, na nossa medicina, você vê, a cirurgia plástica te tira os defeitos." Não pela beleza. Ele não tocou nisso. Naquela altura, era considerado na Santa Casa o cidadão que conseguia recompor as pessoas que tinham defeitos de desastre. Eu disse: "Olha, eu acho que vocês estão muito enganados. A profissão mais bonita que existe é a do advogado, porque o advogado [eu mexi com ele] é o cirurgião plástico do fato." Eu criei essa frase, dizendo por que era o cirurgião plástico do fato: porque o autor de uma ação cria o fato, e o que contesta a ação conta o fato. Então, quem patrocina o autor dá a sua versão, e quem defende os interesses do outro lado, a sua. Então, ele faz a cirurgia do plástico e diz que a única coisa que realmente é bonita na medicina é que ela dá a vida, mas a única coisa que dignifica a vida é a liberdade. E a liberdade só o advogado pode dar. Enfim, foi isso que fiz, sustentei minha família, meu filho de dez anos com a advocacia.

Eu não tenho nenhum outro hoje, depois de Relator... Eu vou dizer isso porque isso é muito importante na vida de um profissional. Como Relator, eu tive muita contribuição. Não eu. Eu não posso dizer que fui eu, mas os Constituintes comigo. Nós fizemos isso tudo. Ninguém faz nada sozinho. Nós criamos o Superior Tribunal de Justiça, que também existia. Era Tribunal Federal de Recursos. Criamos os cinco Tribunais Regionais Federais.

E, é claro, com a minha experiência na Ordem dos Advogados do Brasil, eu procurei mostrar que não podíamos mais: para os Ministros do Tribunal Federal de Recursos, que era o nome, os Parlamentares que não se elegiam, o Presidente da República nomeava a esses derrotados para o Tribunal Federal de Recursos. Então, nós criamos o que é hoje, o que é isso. Já havia o quinto dos advogados, já havia o quinto do Ministério Público, mas quem nomeava todos era o Presidente da República. Hoje, para nomear pelo quinto dos advogados, passa pela Ordem dos Advogados. Se é no Estado, ele sofre o crivo do Conselho Seccional. Se é para o Tribunal Federal, ele sofre o crivo... Então, ele sai da OAB com seis nomes, vai para o tribunal com três, e aí o governador ou o Presidente da República escolhe qual dos três. No Ministério Público é a mesma coisa.

E fizemos uma coisa também: Procuradoria-Geral da República era o lugar onde muitos iam ser Procuradores, sem ser do Ministério Público. Era um trampolim para ser Ministro do Supremo. Nós acabamos com isso. Hoje, para ser chefe do Ministério Público, Procurador-Geral da República, tem que ser escolhido pelos seus companheiros de classe. Tudo isso foi pela experiência que eu adquiri na advocacia.

E quero dizer o seguinte: eu não fui o melhor, porque, o que eu lutei por uma Assembleia Constituinte, eu fui Relator, mas os meus colegas Presidentes da Ordem, todos fizeram isso antes. O pessoal diz que a bomba do Riocentro arrebentou na minha gestão. Eu era Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Mas antes dessa minha gestão, houve a bomba da Dona Lyda lá, que derrubou inclusive quase parte do nosso... e matou a dona Lyda. O Presidente era o Eduardo Seabra Fagundes, que se saiu muito bem, quer dizer, todos se saíram bem. Então eu fui um a mais.

Então, o que eu quero dizer a vocês é que a minha carreira foi ao mesmo tempo o político que se serviu da sua experiência jurídica para a relatoria, mas se serviu sobretudo da cassação, da punição, de acabar com qualquer vaidade que eu pudesse ter; eu não tenho absolutamente, eu não faço questão, eu não tenho nenhuma, mas nenhuma... Vocês devem notar, eu fiz imprensa muitos anos. Eu conheço muito a imprensa por dentro para me impressionar com ela por fora. De modo que não faço... Eu faço o low profile... Eu estou dando esta entrevista, porque é história para a nossa Constituinte.

Eu quero dizer a vocês duas que eu tenho recusado muitas entrevistas. Por exemplo, quando houve a bomba do Riocentro, houve muita, mas muita... Todo mundo apareceu, menos eu, que tinha sido Presidente da Ordem. Sabe por quê? Porque junto comigo, tinham me ajudado Victor Nuno Leal, Barbosa Lima Sobrinho...  E eles estavam falecidos, não era justo que eu aparecesse... Não tem nenhuma entrevista minha nisso.

E depois dessa história, por que é que eu não advogo mais, nem no Tribunal Regional, nem nos tribunais superiores? Porque quando eu fui Presidente da Comissão de Constituição e Justiça e membro, eu argui muitos deles, à exceção... Eu estou fora há 15 anos. À exceção dos últimos que foram para lá, esses eu não argui. Então, quando eu vou lá, eu sou convidado para tomar café com os Ministros, tanto do Supremo, como do tribunal...

Como é que eu poderia chegar hoje com uma petição minha como advogado para pedir que me dessem uma liminar enquanto os advogados que estão nove, dez, quinze anos, ficam sentados pedindo audiência? Seria uma concorrência desleal que eu faria aos meus colegas e que eu não faço. Eu não advogo mais. Então, a única coisa que eu faço é prestar esse serviço para vocês, dando essa entrevista histórica para o meu País, só para aqueles que vêm mais tarde por aí.

ENTREVISTADORA– Ministro, nós agradecemos essa deferência.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu não quero atrapalhar você, mas já respondi muitas perguntas já que você ia fazer, sem que chegasse naquela... Vem para cá, vem para acolá... Aí se perde um pouco.

ENTREVISTADORA– Não, mas foi ótimo. Foi muito bom.

A gente vai voltar um pouco na retrospectiva do seu trabalho.

O senhor enfrentou um trabalho árduo. O senhor realmente, como profissional, lutou pela Assembleia Constituinte como político, como os Presidentes da Ordem todos fizeram, e o senhor fez, e finalmente o senhor chegou à Constituinte como Parlamentar e recebeu essa tarefa de orquestrar e organizar...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Agora eu lhe faço uma pergunta para melhorar: de quem eu recebi a tarefa? Vamos ver se você sabe.

ENTREVISTADORA– O senhor recebeu dos Constituintes.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Porque foram eles que me elegeram Relator. Muita gente pensa que eu fui nomeado Relator pelo Ulysses, por não sei mais quem, outras pessoas. Houve um que uma vez escreveu um livro dizendo que tinha nomeado um relator e tinha me demitido. Eu disputei a relatoria com o Fernando Henrique, que era Líder no Senado, e com o Pimenta da Veiga, que era Líder na Câmara. Eu não digo que eu derrotei os dois, eu tive a sorte de ser eleito pelos meus colegas. Então, a representação foi deles. Por isso, eu disse, no meu discurso, que eu era Relator sem compromisso com ninguém, nem com militar, nem com o Presidente da República. Eu tinha sido cassado, perdi os meus direitos políticos. Eu estava ali para fazer essa missão, só para lhe dizer isso antes de você me perguntar.

ENTREVISTADORA– Então, conte primeiro como foi essa escolha e, por favor, diga-nos se o senhor acha que teria sido mais fácil começar com aquele projeto do grupo dos notáveis, que era a ideia do Dr. Ulysses, porque foram dois anos de muita luta, não foi, Ministro?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu acho que essa talvez seja uma das melhores perguntas que poderiam ser feitas sobre a Constituinte. Veja, o Brasil, nesta existência toda, só teve cinco Assembleias Constituintes – cinco. O resto foram Constituições outorgadas por ditadores ou pelos militares. Sabe quais foram as que deram? A primeira deu a Constituição do Império, 1824; depois, foi a Constituição de 1891; depois, a Constituição de 1934, essa foi um pouco dura porque houve a Revolução Constitucionalista de 1932, porque o Getúlio, apesar de ter dado o golpe de 1930, prometeu que faria a convocação e não a fez, então, essa Revolução Constitucionalista não saiu vencedora, mas houve essa vitória, porque o Getúlio foi obrigado, e deu a de 1934; e a última e quarta foi a de 1946. Vejam, em todas essas Constituintes houve uma coisa chamada ruptura política institucional. Como? Quando o Brasil declarou a independência com o D. Pedro I, ele rompeu com Portugal. Toda vez que você faz essa ruptura, é importante, se não necessário, convocar uma assembleia constituinte.

Em 1889, a Assembleia Constituinte foi em função de uma ruptura. Qual foi a ruptura? Derrubaram a Monarquia. Em 1930, houve a ruptura que resultou na Constituição de 1934. E, em 1945, Getúlio foi derrubado, houve a Constituinte que deu a Constituição de 1946. A quinta ruptura institucional foi quando, no governo militar, o golpe ou a revolução, o que quiserem dizer, derrubou um Presidente da República eleito, que era o Jango. Ruptura. E aí houve essa convocação.

Agora, a sua pergunta é muito pertinente, porque, assim, todas as quatro Constituições anteriores – todas, sem exceção – tinham um esboço prévio. O esboço da Constituinte da Monarquia para D. Pedro I foi feito por cinco pessoas que se juntaram, José Bonifácio... Depois, em 1891, tinham feito um esboço, e deu até aquela chamada Réplica, do nosso Rui Barbosa com o Carneiro Ribeiro, que havia sido seu professor de português. Depois, a de 1934 também. E a de 1946, a mesma coisa. O que o Tancredo fez? Prometeu convocar uma assembleia constituinte, sabia que todas as demais tinham um esboço, criou a comissão de notáveis.

Essa comissão de notáveis, que era presidida pelo Afonso Arinos e composta pelos melhores nomes, fez um trabalho magnífico, mas concluiu o trabalho pelo sistema parlamentarista de governo. Era isso. Tancredo morre. O esboço desse trabalho dos notáveis foi enviado para o Planalto. Acontece que o Sarney era o Presidente da República – Tancredo tinha morrido – e ele era presidencialista – é até hoje. Ele simplesmente mandou publicar no Diário do Congresso e jogou na gaveta.

Então, nós começamos os trabalhos na Constituinte sem nada, tijolo por tijolo. Não havia nada, absolutamente nada. O Ulysses, que tinha a visão panorâmica das coisas, um dia chegou e disse: "Eu vou chamar e criar uma comissão de oitenta Parlamentares Constituintes, entre engenheiros e advogados, para fazer um esboço." Olhem, vocês não têm ideia da repulsa que isso causou, porque alguns Constituintes se insurgiram e disseram: "Ah, então, vamos ter Constituintes de primeira e Constituintes de segunda classe." Sim, porque os que não fossem escolhidos estariam fora.

Acabou-se a ideia. O que é que se fez? Foram criadas oito comissões temáticas. Se você pegar os títulos da Constituição, você vai ver o título dessas oito comissões temáticas. Cada uma delas se subdividia em três subcomissões e havia uma no topo que se chamava de Comissão de Sistematização. Como eram incluídas as principais figuras? As principais figuras das comissões técnicas eram o Presidente e o Relator. O líder do partido maior, do PMDB de então, que já não era mais MDB, era o Mário Covas, meu velho colega, e o Relator se dava ao PFL, que era o segundo, mas da seguinte forma. Quem primeiro escolhia era o Mário Covas, como partido majoritário. Se o Mário escolhesse a presidência, a relatoria caberia ao PFL. Houve isso até o final em todas as comissões temáticas e nas subcomissões, e não houve nenhuma, nenhuma discordância.

Mas, quando chegou na Comissão de Sistematização... Vejam o que é a história. O Afonso Arinos tinha sido presidente da comissão de notáveis. A Comissão de Sistematização, como o nome está dizendo, ia sistematizar o trabalho das comissões temáticas e das subcomissões. Daí é que ia resultar o esboço da Constituição final, aquele esboço que não tinha havido.

O PFL vai ao Mário Covas e vai ao Ulysses e diz: "Olha, o Afonso Arinos foi o presidente da comissão de notáveis. O Afonso Arinos é do PFL. Deem a ele." Não houve nenhuma discordância. Mas a relatoria, e aqui é o lado histórico; queira ou não queira, é a verdade... O Tancredo tinha um compromisso absolutamente válido com o Pimenta da Veiga, que era o Líder da Câmara e de Minas. Mas o Afonso Arinos, que não tinha nada e já estava na presidência, não estava nem se metendo nisso, também soube que o Ulysses tinha um compromisso com o Fernando Henrique, que era de São Paulo. Então, ficou uma situação delicada, os dois...

Aí eu soube dessa história. Soube dessa história e fui ao Ulysses e disse: "Olha, Ulysses, eu tenho um bom relacionamento com o Fernando Henrique, mas ele não é advogado. O Fernando Henrique, o lado que ele tem, altamente intelectual, é de outra linha. Ele é um filósofo. E o Pimenta da Veiga só tem quatro anos. Eu fui presidente da Ordem, fui cassado. Eu não posso aceitar" – isso foi mais ou menos o que eu disse, por isso estou repetindo – "que isso se resolva no compadrio."  Ulysses era um cara brilhante, sem dúvida nenhuma. Ele reuniu as lideranças principais, que eram as lideranças que representavam os respectivos Estados. Por exemplo, quem era do Ceará, escolhido pelos colegas, para representar o nome dos colegas?

E fomos para uma reunião. Nessa reunião, o Ulysses vira e diz assim: "Eu estou aqui pensando em escolher um relator e dois correlatores." E riu. Aí foi até uma brincadeira. Eu disse: "Muito obrigado, Ulysses" – eu tinha muita intimidade, porque nós tínhamos sido Deputados juntos, quando eu fui cassado, lá em sessenta e poucos. Aí eu disse: "Não" – ele viu a minha reação –, "não, não é bem isso." Porque eu disse "obrigado" porque eu iria ter dois correlatores.

Aí salta um Deputado do Maranhão, que representava o Maranhão – eu não me lembro, realmente eu não me lembro do nome dele agora; daqui a pouco, talvez –, e fez um discurso brilhante e oportuno, realmente. "Como? Então isso está sendo escolhido assim? Quem tem que escolher é a bancada. Nós temos trezentos e tantos Parlamentares. O PMDB sozinho fazer e aprovar o que quiser? E estamos aqui submetendo que A ou B... Não, quem tem que escolher é a bancada. A bancada, o PMDB lutou pela Assembleia Nacional Constituinte..." E terminou o discurso corretíssimo.

Só que o Amazonas tinha oito Deputados e, do PMDB, só tínhamos dois. Quem votava comigo... Quem votava era só quem era do PMDB, para a relatoria. Os outros Constituintes não se meteram nisso. A liderança... Pertencia ao PMDB a relatoria, porque a presidência já estava com Afonso Arinos.

O que é que me competiu, quando Ulysses me deu a palavra? Eu disse: "Olha, eu fui presidente da OAB e briguei por uma Assembleia Nacional Constituinte. Então eu sei que São Paulo tem trinta e tantos Deputados do PMDB, Minas tem, mas eu concordo com a tese. Eu não posso discordar, apesar de eu ser minoria. Vamos para a bancada."

Ulysses sorteou. Fernando Henrique falou em primeiro lugar, eu falei em segundo, e o Pimenta, por último. É evidente que, quando eu fui falar, destruí o discurso – ou tentei destruir – do Fernando Henrique e dei-lhes por antecipação, falando da história, que tinha sido a OAB que, na repressão aguda, tinha se manifestado, que eu tinha sido seu presidente.

E havia uma turma nova de Deputados Federais que não sabiam disso, alguns tinham trinta anos – de 1967 para 1986, eram vinte e poucos anos e, de 1964, muito mais, não conheciam isso. Aí um ou dois: "O senhor foi cassado pela revolução?" "Fui." Quer dizer, isso ficou um pouco na memória deles. Aí, quando eu terminei, dizendo da minha independência, que seria... Resultado da primeira votação: o Fernando Henrique teve 80 e eu e o Pimenta tivemos 84 votos juntos. Nessa altura, empatamos. Vamos para o segundo turno.

E aqui vem um parêntese que eu vou fazer que pode ficar gravado.

Mário Covas... Eu tinha sido vice-líder do Mário Covas em 1967, em 1968. Fomos cassados no mesmo dia. Depois ele foi ser governador, muito tempo depois. Nunca perguntei dele, nem ele nunca me disse nada. Começou a história da relatoria. Eu disse: "Mário, eu não sei como está o Senado. Eu sei que você é colega do Fernando Henrique. E eu gostaria..." E, antes de eu ir adiante, ele disse: "Bernardo, o meu voto é do Fernando Henrique, não tenho como... Sou Senador por São Paulo. Lamento. Você é um cara brilhante, mas tenho um compromisso." Parou aí.

Com a saída do Fernando Henrique – vejam como são as coisas –, o Senado votou maciçamente em mim; e eu botei na frente do Pimenta da Veiga 20 e tantos votos. Ele teve pouco mais de dois votos, e eu tive disparado. Nunca soube se ele, se esse rapaz que hoje é Governador do Paraná, o Richa... O Richa era muito meu amigo também, fomos Deputados juntos, e o Richa liderava uma turma de 22, que era conhecida. Deve ter trabalhado por mim. Nunca perguntei dele, nem nunca me disseram, mas o Mário teve essa correção...

(Intervenção fora do microfone.)

MINISTRO BERNARDO CABRAL – ...o que era de se esperar.

De modo que, veja bem, essa é um pouco da história da eleição que... Eu acho que só há um livro, que foi feito por um rapaz brilhante... Eu até o tenho aí. Vou dar um exemplar para o trabalho de vocês, porque foi o melhor trabalho que foi feito. Mas não se conta isso porque isso é um negócio particular.

ENTREVISTADORA– O senhor teve 111 votos, e o Pimenta, 90.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Foram 21 votos, isso depois de termos empatado no primeiro turno. Quer dizer, não seria de se... Se fosse uma vitória mais ou menos, pau a pau, eu teria mais um voto ou mais dois, mas foram mais 20 e poucos votos.

ENTREVISTADORA– Foi uma diferença...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Isso eu atribuo ao Senado, porque o Senado é que tinha, àquela altura... O PMDB deveria ter 20 e poucos Senadores. Não foi o Senado inteiro, foram os Senadores do PMDB, mas foi realmente uma vitória... De modo que foi assim que eu cheguei, pelas bençãos de Deus.

ENTREVISTADORA– Era isso que eu perguntar ao senhor, para o senhor contar como é que foi essa negociação.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Já contei.

ENTREVISTADORA– O senhor já contou.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Já contei. Como eu trabalhei nessa área jornalística, eu sei o que é....

Vamos lá!

ENTREVISTADORA– Agora, a gente já vai...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Vamos para outro.

ENTREVISTADORA– Agora a gente já vai para as suas defesas na Constituição.

Em 87, um dos argumentos que o senhor usava para defender a nova Carta era assegurar "um futuro sem golpes" – a expressão é sua – "de Estado periódicos para o Brasil".

MINISTRO BERNARDO CABRAL – E até recidivos. Eu dizia "periódicos" e "recidivos" às vezes.

ENTREVISTADORA– Periódicos e recidivos. Na matéria que eu li, não aparecia o "recidivos".

Mas, depois da Constituinte já pronta, nós tivemos dois impeachments, o do Collor e o da Dilma. Com trinta anos de vigência da Carta, como político, jurista e Relator da Constituinte, como o senhor vê isso? O Brasil gosta de derrubar Presidentes? Ou a gente escolhe mal, e a tradição dos golpes é mantida?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Um pouco de história antes. Você não pode chegar a uma conclusão sem partir de uma premissa. A premissa tem que ser verdadeira para que a conclusão seja verdadeira, porque, se a premissa não o for, a conclusão vai ser falsa. Qual é a premissa? A premissa é que, em 64, em 68, muitos fomos cassados, banidos, guerrilheiros, houve os que foram presos, os que morreram. Os que sobreviveram tiveram uma diáspora muito grande. Muitos foram para outros lugares, outros ficaram. O reencontro desse pessoal que motivou a diáspora foi na Assembleia Constituinte. Onde é que nós nos encontramos, os guerrilheiros, os banidos, os cassados? Foi na Assembleia Nacional Constituinte. E aí vem a primeira premissa: "Mas isso é uma Constituição enorme! Tem artigos que não acabam mais, 245 artigos!" É verdade. Ela não deveria ter muita coisa – coisas que não são, inclusive, do texto constitucional. É aquilo: infraconstitucional, portaria, decreto.

Mas você precisa entender, aquilo que o povo não entende... Aqueles que criticam – não é o povo em si –, aqueles que são os grandes analistas da Constituição... "Que essa Constituição é isso, é aquilo, é aquilo outro". Em 1987, quando começou, ali estavam os banidos, os guerrilheiros, ali estava uma dicotomia mundial em dois planos. Primeiro plano: o regime comunista; segundo plano: o regime capitalista. No regime comunista você tinha o Leste Europeu todo, era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. Deste lado daqui, era o sistema capitalista dominando a América Latina toda, quisesse ou não quisesse, e nós aí incluídos.

Muito bem. Quando essa Constituinte está sendo criada, com essa dicotomia, ninguém imaginava que, dois anos depois, cairia o Muro de Berlim – exatamente em dois anos ele foi abaixo. E abaixo, com o Muro de Berlim, foi todo o Leste Europeu, que era do regime comunista. Sobrou a Rússia. E do lado daqui você teve todas essas revoluções que foram ocorrendo: Nicarágua, todos; foram mudando, mudando, mudando. E a nossa Assembleia Constituinte, sem nenhum esboço anterior, estava sendo caminhada, estava sendo caminhada.

Vem a história do impeachment. Sabe por que houve o impeachment? Porque essa Constituição de 88, com todos os seus defeitos – tem muitos, é obra de um ser humano –, foi reduzida de dois mil e tantos artigos só para duzentos e quarenta e poucos. O pobre do Relator teve muita antipatia de muita gente, porque eu cortei o que era de pior que havia.

Mas o que não se podia deixar de entrever era o seguinte: esta Constituição teve o condão – e está tendo; tanto assim está tendo que está completando 30 anos – de impedir que uma simples confusão política desse, como deu... Quando? Na hora em que o Sr. Costa e Silva teve o seu acidente vascular cerebral, o Vice-Presidente da República era um homem da maior seriedade, era um brasileiro respeitado, professor catedrático, tinha sido Presidente da Câmara, um mineiro ilustre chamado Pedro Aleixo. A crise política – só a crise política, da doença – não permitiu que o Sr. Pedro Aleixo assumisse; quem assumiu foi o Ministro da Marinha, o Ministro do Exército e o Ministro da Aeronáutica.  Ou seja, esse trio impediu que o Pedro Aleixo assumisse, numa simples doença.

Com a Constituição de 1988, o Sr. Collor foi impedido. Aconteceu. Foi posto para fora do poder. E não foi por doença, foi por impeachment. Qual foi a junta militar que assumiu? Estou perguntando: qual foi a junta militar? Nenhuma. Quem assumiu foi o Sr. Itamar Franco. Sabem por que o Itamar Franco assumiu? Por esta Constituição de que a turma reclama. Ah, gosto muito de impeachment. Não! Gosto de impedir crises.

Só que, na atual crise, a crise foi moral, foi política, foi de desonestidade, foram todas as crises ao mesmo tempo. Muita gente foi bater à porta dos militares para intervir. E eles disseram o quê? Respeitamos a Constituição. Quem assumiu? O Vice-Presidente da República. Não foi uma junta militar.

Então, dever-se-ia agradecer o fato de nós termos uma Constituição que previu o que havia no passado e impediu que se repetissem as ditaduras que eram comuns. Houve a ditadura de 1930, a ditadura de 1937. Houve um golpe em 1930 e outro em 1937. Getúlio assumiu com muito menos. E esta Constituição impediu.

Então, o que eu lhe digo? Infelizmente, sou levado a dizer isto: tenho dois, só dois, não digo muitos, dois acontecimentos, duas circunstâncias que me deixaram muito, eu não diria, decepcionado. Foi o fato de não termos aprovado o sistema parlamentarista de governo e um instituto de desapropriação para fins de reforma agrária, porque, quando saiu da Comissão de Sistematização, a reforma agrária saiu perfeita. Foi derrubada por interessados e ficou pior do que o Estatuto dos Militares, muito pior.

O sistema parlamentarista de governo, quando foi derrubado no plenário, aqui do meu lado, vocês conhecem, porque está vivo até hoje, estava o Senador José Fogaça, que era o meu relator auxiliar. Está vivo. Foi prefeito. Do lado daqui, Adolfo Oliveira, que era Deputado aqui pelo Rio de Janeiro. À minha frente, estava Humberto Lucena, Senador, que era um líder dos presidencialistas. Isso não se conta e precisa ser contado.

Fogaça contou isto há uns meses: "Humberto, vai correndo e diz aos seus amigos presidencialistas que tirem urgente o instituto da medida provisória do texto constitucional, porque medida provisória só convive com o sistema parlamentarista de governo. Vocês vão dar a um Presidente da República poderes que nenhum ditador militar teve no País. Por quê? Porque ele vai substituir o Congresso. Sabe por que ele vai substituir? Porque ele começa a editar." Ouvi ele dizendo isso. E não tiraram a medida provisória. Mas, ainda assim, o que havia no texto original era que, em 30 dias, ela tinha de ser convertida em lei, porque, senão, perderia... Todos os Presidentes usaram medida provisória. Nenhum deixou de usar. Claro, se aproveitaram.

No sistema parlamentarista, o Primeiro Ministro, antes de assumir o governo, mostra o seu plano de governo: vou fazer isso e isso, e lhe dão uma moção de confiança. Se não derem, ele edita uma medida provisória. Só no Parlamento pode-se fazer isso, porque o Parlamento derruba.

O que fizeram depois? Foram ao Supremo e o Supremo permitiu, não sei por que, que fossem reeditadas as medidas provisórias. E o que é mais grave: na reedição embutiram ou embutiam coisas que não tinham nada com a medida principal. E a bandalheira está aí, arrebentou agora, o fulano de tal ganhou tanto da empresa tal, tanto da empresa tal, ganhou tanto. Só que essa medida provisória não é culpa do nosso trabalho constituinte. Foi culpa daqueles que estavam interessados, que tinham recebido trocas, trocas de editoras de televisão, de rádio. Houve um troca-troca danado.

De modo que quero dizer que a minha grande decepção é não termos apresentado o sistema parlamentarista, porque o impeachment, no sistema presidencialista, é muito doloroso. Você derruba, você tem que negociar. No parlamentarista, não. Basta uma moção e cai o chefe de governo, muda-se.

Vou lhe dizer, só para incluir essa parte e excluir pouca gente não atenta: a Segunda Guerra Mundial, quando terminou – eu só vou citar cinco –, deixou um rastro de destruição em muitos países: Alemanha, Itália, Japão, Inglaterra. Eu vou até poder citar mais outro. Muito bem, todos eles – todos – adotaram o sistema parlamentarista. A Inglaterra manteve o sistema parlamentarista monárquico, com uma diferença. A Espanha adotou o sistema parlamentarista monárquico. O franco teve pelo menos a visão, fizeram o pacto de Moncloa, o pacto adotou o sistema parlamentarista hoje. Veja a Itália. A Itália está agora mesmo em uma crise enorme, mas tira o Primeiro Ministro, substitui, porque a burocracia continua a mesma. Não é o cara que vai contratar mais milhões de pessoas que está aí.

Então, quero dizer o seguinte: essa é uma das minhas grandes decepções no trabalho em que eu ajudei, porque isso foi redigido por mim, pelo Fogaça, pelo Afonso Arinos. E esse trabalho nosso dava ao País mais outra evidência do impeachment sobre o qual você acaba de me perguntar.

ENTREVISTADORA– Não é um golpe então. Cumpre um rito constitucional. É isso?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Aliás, vou dizer mais: cumprindo um rito constitucional, com uma centena de emendas que já fizeram aí, emendas que transformaram essa Constituição – eu vou fazer aqui uma espécie de analogia com o que o povo pode entender – num canteiro de obras, um canteiro de obras cheio de buracos. Fizeram emendas que apenas atendem a interesses, não sei quais, de ocasião. O que deveriam ter feito era corrigir o texto, mandar para a paralisação ordinária, o que não fizeram. O texto constitucional – vou dizer mais –, para os grandes constitucionalistas mundiais e nós, não há nenhuma constituição do mundo que tenha as garantias individuais tão perfeitas quanto a nossa.

ENTREVISTADORA– A nossa Constituição garante o equilíbrio dos Poderes? Essa Constituição? Garante o equilíbrio de Poderes?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – A Constituição garante o equilíbrio de Poderes, só não garante a honestidade entre os que integram o poder. Tanto assim que, isso não veio da gente, todo mundo cita o Montesquieu.

Montesquieu fez um livro. O título, na verdade, é De l'esprit des loisO Espírito das Leis, no qual ele criou a separação, mas tornando independentes o Legislativo, o Judiciário e, evidentemente, sem dúvida nenhuma, o Executivo.

Dos três Poderes, o mais autêntico é o Legislativo. Vou dizer o porquê: é o único Poder que funciona de portas abertas. O cara entra, vaia o cara, faz o que quer, mas para a gente falar com o Presidente da República tem de marcar uma audiência, para falar com os Ministros do Supremo, os advogados têm de marcar audiência. Então, é o mais autêntico. Quando o Poder Legislativo está fechado, a democracia está fora, é ditadura.

Agora, eu não tenho a mínima culpa se os que estão nos Poderes lá não deveriam estar. E nós sabemos que há pessoas que estão nos três Poderes que não têm a compostura necessária para lá estar.

Então, a Constituição não tem nenhuma culpa porque previu isto: o equilíbrio.

ENTREVISTADORA– Ministro, com relação a essa questão da medida provisória e da inadequação dela em relação ao sistema presidencialista, a gente sabe que tem sido motivo de crise permanente. Ao mesmo tempo, existe uma demanda permanente também, ou pelo menos se fala, de uma revisão constitucional. O senhor acha que seria o caso ou o País estaria maduro para uma revisão constitucional que contemplasse uma mudança, talvez, no sistema de governo, até uma reforma tributária, que é uma coisa em que se fala muito também, na questão da divisão do orçamento, porque os Municípios pedem sempre muito mais verba? Então, há solução para essas questões que o senhor lamenta que não se resolveram?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Deixe-me dizer. Virgínia, uma coisa é uma revisão, outra coisa é uma emenda constitucional e outra coisa é uma miniconstituinte. Nós precisamos fazer um nova Constituição. Eu não quero dar palpite no que esses caras dizem, mas eles se esquecem de que constituinte é fruto de uma ruptura político-institucional. O Executivo está funcionando, o Legislativo está funcionando, o Judiciário está funcionando. Onde é que há essa ruptura? Onde é que tem ditadura? Onde é que está? Não está em parte nenhuma. Então, miniconstituinte é para quem não entende de Direito Constitucional. Isso é uma coisa. Para convocar uma assembleia nacional constituinte, como alguns pregam, eles têm de fazer essa ruptura. Porque, se não, você pode fazer uma revisão.

Olha aqui, não fizeram a reforma política porque não quiseram. Todo mundo fala que a previdência precisa de uma reforma social em que nós estamos entrando. E estamos mesmo. Essa história de dizer... Ainda hoje eu ouvi que só em 2018 se revolve. Vou dizer-lhe aqui, com a minha experiência, que nem daqui a cinco anos nós vamos resolver o problema nosso. Não há como resolver. Estou dizendo isso por causa do lado não só financeiro, mas do lado político. Vejam, aguardem esta eleição que vocês vão ver, com essa verba partidária oficial que está aí, as pessoas que vão ser eleitas.

Você me perguntou por que não voltei mais à política. Eu disse a ela que eu já tinha 50 anos de vida pública. Mas, no fim, é que hoje as pessoas estão seguindo a regra antiga de que você tinha três coisas para vencer uma batalha na política: a primeira coisa era você ter dinheiro, a segunda coisa era ter dinheiro, e a terceira era ter mais dinheiro. Com dinheiro, você junta um exército ou apoiadores ou colaboradores da sua campanha. Com dinheiro, você se movimenta para toda parte. E, com mais dinheiro, você compra outros partidos. Como é que os jovens independentes, como eu quando comecei minha carreira, têm condições hoje de fazer campanha política? Onde?

Muito bem, criaram a verba oficial, que vai a R$1 bilhão e tanto. Um rapaz antes esteve aí, filósofo, e disse para mim: "Vou ser candidato a Deputado Federal." Eu disse: "Faz muito bem, você vai levar." "O meu partido me prometeu R$1 milhão para ajudar." Eu disse: "Você, pelo menos, já tem isso aí." Um mês depois, ele chegou aqui e disse: "Caiu para R$100 mil." Eu disse: "Eu o avisei." Não falei para ele "dinheiro e mais dinheiro"; estou falando agora. "Eu lhe disse." Anteontem, na quinta-feira ou na sexta-feira, ele disse assim: "Tiraram tudo, não sou mais candidato." Ele disse isso para mim. Vou dizer logo o nome dele, que é o Presidente da Academia Brasileira de Filosofia. Esse cara iria dar uma contribuição enorme, mas caiu fora, como muita gente.

Então, quando você pergunta qual seria a solução, eu não sei como vão fazer essa miniconstituinte, eu não sei. Eu não sei como vão fazer a revisão, porque já estava para ser feita a reforma quando caiu. Fizeram uma reforma trabalhista, que movimentou meio mundo aí. E, meu Deus, foi uma gritaria que nos acuda, porque estão tirando privilégios, enfim!

ENTREVISTADORA– E qual é o Executivo que vai abrir mão de medida provisória?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – É isso que eu digo.

A única coisa que eu quero dizer é o seguinte: todas as pessoas que querem a reforma podem procurá-la. Dizem que sim, que cortam, que topam, desde que não se mexa no assunto deles. Esses aí concordam, mas, se mexerem no assunto deles, já passam a não concordar.

Então, isso fica difícil em um Brasil em que, salvo honrosas exceções, as pessoas estão muito mais preocupadas com as suas ambições pessoais do que com os interesses da coletividade. Essa época do espírito público, essa época daquela geração...

É o que eu dizia ainda há pouco. Quero dizer o seguinte: quando saí a primeira vez do cargo, eu saí do cargo com 26 anos. Eu, com 25 anos, era chefe de polícia, mas, aos 26 anos, fui Secretário do Interior e Justiça. Fui a São Paulo fazer uma reunião de secretários, e quem a presidia era o Secretário, um senhor bem-posto. Eu fiz um discurso pelo meu Estado, é claro, dizendo do que eu achava. Ao final, ele me chamou e disse: "Olha, eu já tenho cabelos brancos, admirei o seu trabalho, você é um rapaz moço. Eu vou fazer um ofício ao seu chefe dizendo da sua atuação aqui. Como é o nome do Secretário do Interior e Justiça?" Eu disse: "Bernardo Cabral." Aí ele disse: "Mas o senhor é parente dele?" "Não, sou o próprio." Ele olhou para mim e disse: "Mas como? Você já é Secretário?"

É que aquela turma era uma turma de idealismo. Nós lutávamos... Olha, o político brasileiro só tem três caminhos: ou ele é político por ambição... Se for por ambição, é porque ele gasta o dinheiro dele, quer ser isso, quer ser aquilo; não faz mal. O outro é por interesse pessoal. É esse que sabe que vai gastar o dinheirinho dele, porque é presidencialista, ele tem quatro anos de mandato ou oito. No parlamentarismo, não. Você sabe que, no parlamentarismo, você pode ser por seis meses Parlamentar, mas, se cai ou se se dissolve o Parlamento, ele vai ter de gastar novo dinheiro. E o terceiro é o político por vocação. Esse acaba sendo cassado, minha amiga, ou ele não é posto, ele sai por ele próprio, porque o vocacionado hoje é difícil.

Então, eu não tenho, realmente... Olha, eu vou dizer o seguinte: eu tenho isto aqui... Vocês não! Isso já está em vocês, porque vocês pegam e mexem em tudo. Eu tenho um neto que é um craque. Quando estou em dificuldade, é ele que me ajuda. É que a geração dele é outra. Havia um grande ministeriante que dizia "altro giorno, altri tempo".

Então, eu não posso lhe dar a resposta com exatidão. É a mesma coisa que haver um doente terminal, você ser a médica, e lhe dizerem: "Drª Virgínia, o que a senhora acha?" "Vai ser difícil, eu não tenho como dar uma solução." É difícil! A situação política brasileira não merece salvadores da pátria.

ENTREVISTADORA– Vou lhe fazer outra pergunta difícil.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Faça, que, se eu puder responder...

ENTREVISTADORA– O Bernardo Cabral idealista, que, pelo que entendi, moveu a vida inteira na vida pública...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Sem dúvida.

ENTREVISTADORA– ...saiu muito machucado depois de dois anos enfrentando interesses e trabalhando dia e noite, negociando, flexibilizando, enfim, compatibilizando esses interesses na Constituinte depois de dois anos? O senhor começou na sistematização sendo atacado de todo lado. Naquele primeiro projeto seu, que foi uma compatibilização, já começou tomando flechada, e foi assim até o fim. O senhor saiu muito lanhado, como se diz?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Você sabe que Camões fazia muito a figura do Velho do Restelo? "Lá vão aqueles malucos", Camões diz muito isso. Depois, vem Fernando Pessoa, que fez um negócio sobre o mar: "Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! [...] Quantas mães choraram". Depois de ele ter dito isso, "quantas mães choraram", ele diz assim: "[...] Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena?" Ele mesmo responde: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena."

Olha, para mim, eu quero dizer que valeu. Eu vou dizer por quê. Não é porque eu tenha feito um serviço completo. Não, eu acho que muita coisa ficou por fazer. Por muito sofrimento eu passei.

Naquela altura, você não tinha, quando seu telefone tocava, como identificar de onde vinha. Às 2h da manhã, o telefone tocava na minha casa. Minha mulher atendia, pensando que éramos nós, lá do Prodasen. "Olha aqui, o seu marido hoje não chega à sua casa, não. Ele vai ser fuzilado. Quem está lhe falando aqui é do Comando Delta. A sua neta [nós tínhamos uma neta] vai ser estuprada. Aguardem novas notícias." Um dia depois, chegava uma carta dizendo a mesma coisa, com ameaças. Eram ameaças disso e mais daquilo do Comando Delta. Um belo dia, como as ameaças eram grandes, eu falei com o Ulysses: "Ulysses, há isso, assim, assim, assim." Ele disse: "Nós vamos nos reunir." Eu disse: "Não reúna, não diga nada a ninguém." É bom eu estar dizendo isso agora porque há um tempo decorrido, senão vão dizer que é exploração política, que eu estou querendo aparecer. Então, isso magoava muito. Se você fosse fraco, teria desistido. Só que essas ameaças, eu já as tinha recebido quando era Presidente da OAB. O Presidente da OAB é membro nato do Conselho de Direitos da Pessoa Humana, nós, da própria OAB, a ABI e a ABE. O Presidente da ABI era Barbosa Lima Sobrinho; o da ABE era Benjamin Albagli. Éramos nós, os três.

Um dia, fiz uma denúncia de uma ameaça de morte ao Ministro da Justiça. Ele, simplesmente, virou para mim e disse: "Olha, nós não temos como garantir a sua vida. Não saia todos os dias com seu carro. Não saia pelo mesmo percurso." Então, eu já tinha vivido isso. Se eles quisessem, já tinham me liquidado. Eu passei. Agora, a inquietação em que a família fica é grande. Mas eu tinha um compromisso comigo mesmo, de que, se eu lutei para pegar a missão, eu tinha de ir até o final. E, no final, isso ainda não foi, mas, nos 30 anos, se o Congresso quiser, eu vou levar a carta que levei ao Ulysses, quando fizer 30 anos, uma semana antes, onde eu conto algumas coisas e, no final, cito Fernando Pessoa, um dos versos dele que diz assim: "O meu trabalho está feito. O outro Deus que o faça."

Então, é só isso que eu vou lhe dizer. Eu quero dizer o seguinte: houve algumas decepções? Sim. Alegrias, eu não posso deixar dizer que as tive. Mas o dia da promulgação foi um dos dias mais felizes da minha vida. E, no meio do ano, foi a primeira alegria. Foi a primeira alegria porque, em julho de 1988, o Sr. Ulysses Guimarães fez o mais bonito discurso que já havia feito e deu um recado aos caras que diziam que a nossa Constituição não durava seis meses, que ela ia tornar o Brasil ingovernável. Ele termina com esta frase: "Esta Constituição terá cheiro de amanhã e não cheiro de mofo." Ela não mofou. Então, nesse dia do discurso e no dia da promulgação também...

Desse modo, como eu carrego, como meu pai dizia, as cicatrizes do dever cumprido, eu estou satisfeito.

ENTREVISTADORA– Eu ia perguntar sobre o momento mais marcante, a maior alegria, mas o senhor já respondeu isso. Então, eu queria que o senhor contasse qual o momento mais difícil da sua relatoria, se houve um momento mais difícil. Chegaram a dizer que havia uma pressão.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu vou lhe dizer. O momento mais difícil foi quando nós soubemos que iam fechar a Constituição. Ulysses me chamou no gabinete e disse: "Eles vão ter a resposta hoje no discurso." E fez. Ele fez um discurso marcante: "Nós não viemos aqui para ter medo, viemos aqui para escrever a Constituição." Era uma porção de coisas. Então, a grande resposta que Ulysses deu foi a resposta que você queria ouvir. Foi isso. Esse foi o momento mais crítico, mais doloroso para nós porque era um instante em que tudo seria jogado fora.

ENTREVISTADORA– O que teria gerado, Ministro, aquela questão das Forças Armadas e a possibilidade de se interferir na ordem interna? Foi naquele momento?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Olha, eu vou lhe dizer o seguinte: o Ministro do Exército era um cara que não tinha vocação para ditador, Leônidas Pires Gonçalves. Leônidas me conhecia desde 1950, quando Jânio renunciou – não lembro bem a data precisa. Eu era Secretário da Justiça, e Leônidas era Major. E foi a Manaus, havia uma frente. Jânio despachava nos Estados. Ele fazia a Presidência da República de forma um pouco ambulante. Ele foi na escala avançada, e nós nos conhecemos e nos tratamos bem. Depois, vivemos muito sempre juntos aqui. Leônidas, como Ministro, nunca me fez um pedido, nunca me fez uma ameaça, ao contrário. Isso é verdade. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica tinham um corpo dentro da Constituinte, que era um corpo de assessoria muito preparado. Inclusive, havia um general que era professor de Direito Constitucional, havia um que depois foi ajudante do Ministério da Fazenda. Eles estavam preparadíssimos, muito preparados mesmo. Mas pressão nós nunca sofremos. Eu, pelo menos, nunca sofri.

ENTREVISTADORA– Então, não é verdade aquela história de que o senhor teria ficado uma madrugada na casa do Dr. Ulysses, eu acho, enquanto os assessores do General Leônidas ficaram no Prodasen esperando o projeto ficar pronto?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Absolutamente, absolutamente! Nunca entraram no Prodasen, nunca foram à casa do Ulysses. A história de que se reclama, a história da lei e da ordem é a seguinte: é que tinha de haver um mecanismo não só para lá; esse mecanismo era para o Poder Legislativo, tanto que houve uma vez em que Ulysses requisitou a televisão para dar uma entrevista, coisa que era sempre feita pelo Presidente da República.

Agora, é evidente – lá vem a tal história da dicotomia – que havia um lado simpático à esquerda e outro lado, o da direita; no meio, havia aquele Centrão. Quando a esquerda, que era violenta, não conseguia e quando a direita não conseguia, a gente mandava para a lei. A esquerda não queria que entrasse nada, ao contrário; a direita queria outra coisa. O que ficou no meio foi a lei da ordem.

Eu, com Ulysses... Por exemplo, esse inciso XV da Constituição, que é, inclusive, favorável a... O cara tem de pagar a sua imagem, enfim. Houve um dia uma conversa minha com Ulysses, nunca houve pressão. E os miliares nunca entraram, nunca puseram os pés no Prodasen, nunca entraram no Prodasen. No Prodasen, quem entrava era o Ulysses, eu ou qualquer Constituinte, nunca nenhum militar. E nunca nenhum foi à casa do Ulysses. Isso não é verdade, absolutamente. Quem inventou isso... Isso é uma fakenews, que já existia àquela altura.

ENTREVISTADORA– O senhor pode falar do inciso? Porque o senhor cita um inciso, e as pessoas não sabem qual é esse inciso que nos protege a todos. O senhor pode citá-lo?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Claro, está aqui, vou citá-lo em todo o original. Vou citar em todo o original para que as pessoas não digam que eu sei de cor, mas que estou citando sem dizer exatamente o que é a letra da lei. À frente eu vou dizer para ficar muito bem... A não ser que, nesse meio tempo, eles já possam tê-lo revogado. Se não o tiverem revogado...

Art. 5º. .............................................................................................

........................................................................................................

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Isso não existia. Ou você acha que isso teria entrado aqui por entrar? Entrou porque tinha endereço certo. E é mesmo. Hoje muita gente recebe indenização para respeitarem a sua intimidade, a vida privada, enfim. Guardem isso.

ENTREVISTADORA– Ministro, o senhor se sentiu, em algum momento, bastante pressionado – não vou usar a palavra "ameaçado" – pela esquerda, como o senhor citou, e pelo Centrão; pelos dois extremos?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não. Ameaçar nunca ameaçaram, não. Eles pleiteavam que eu fosse... Sempre tivemos muita convivência.

ENTREVISTADORA– Porque os ânimos estiveram bastante acirrados.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Exaltados em vários momentos, mas sempre no Plenário. Nas comissões sempre houve um trato cavalheiresco. Eu nunca sofri, na nossa reunião com Lideranças, com nenhum dos Líderes, por mais exaltado que pudesse ser.

Apenas numa reunião, quando se tratava de um assunto relativo ao art. 7º (Dos Direitos Sociais), numa reunião em que estava o Lula, que era Deputado Federal, e havia uns três Líderes, um deles, lá pelas tantas – um ou dois deles – virou-se para mim e disse: "É porque o senhor não sabe o que é difícil em uma perseguição política". E ele o fez de forma agressiva. Aí eu disse para o primeiro da esquerda: "Você foi cassado já? Você foi punido, esteve preso? Quantos anos de direito político lhe tiraram com cassação?" "Não, nenhum." E fui perguntando. E perguntei também ao Lula: "Você perdeu os direitos políticos?" Nenhum deles tinha perdido. "Pois, então, vocês estão falando com alguém que perdeu os direitos políticos." Eu perdi dez anos. Todo dia, antes de ser conselheiro federal, eu era intimado para chegar para prestar depoimento às 7h da manhã e, às 7h da noite, ainda não tinha sido ouvido. E mandavam que eu e um outro companheiro Deputado Federal, que tinha sido cassado do mesmo jeito, voltássemos no dia seguinte, porque o cidadão não tinha tido tempo. "Algum de vocês aqui foi para o DOI-Codi?" Nenhum deles tinha ido. Quando eles souberam que eu tinha ido, aí ficaram calados.

Eu disse: "Olha, eu estou cumprindo aqui a minha missão de Relator, e a minha missão de Relator é ouvir todas as partes. Na hora em que eu tirar a conclusão, isso vai para o Plenário. E o Plenário é soberano." Mas nunca houve realmente... Eu acho que fiz um trabalho de conciliação no que era possível, e no que não era possível a gente mandava... Há muita coisa – você pode notar aqui – que se criou, dizendo que ia para o buraco negro. Eu acho que essa Constituição pode não ter resultado de um trabalho ideal, mas foi o trabalho possível. Não podia ser de outro jeito.

E não podia ser por causa daquilo que eu lhe disse: dos acontecimentos que o precederam. Ninguém adivinhava o Muro de Berlim, ninguém adivinhava a União das Repúblicas Socialistas, ninguém adivinhava o Leste Europeu. A Iugoslávia toda foi embora, se perdeu; cada um foi para o seu canto, até Montenegro.

ENTREVISTADORA– Rememorando um pouquinho ainda: como o senhor viu quando aconteceu aquela pressão do Centrão para mudar o Regimento e alterar o conteúdo no projeto da sistematização?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Você tem que olhar as pessoas pelo ângulo delas. O Centrão não fez só o lado negativo que as pessoas todas dizem, não; ele também contribuiu, houve uma hora em que contribuiu. Contribuía conversando comigo e com o Mário, que era o Líder. Só que alguns pontos do Centrão colidiam com os meus, inclusive. A reforma agrária colidiu. O Centrão derrubou, sem dúvida nenhuma, o sistema parlamentarista, porque ajudou a derrubá-lo, mas o Centrão pelo menos fez uma coisa boa: a maioria passou a decidir. Primeiro, eles reformaram nesse sentido. Então, eu não rotulo o Centrão como tenha sido um órgão destinado a tumultuar a Assembleia Nacional Constituinte. Isso, não. Eu acho que não foi com essa finalidade.

ENTREVISTADORA– Eu vou fazer uma perguntinha para o senhor.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Faça.

ENTREVISTADORA– O senhor disse que essa Constituição não é a ideal, mas é a possível. Onde, na Constituição em vigor, ela está mais perto do ideal e onde ela está mais longe do ideal?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Ela está mais perto do ideal quando ela evitou, impediu que, com as crises políticas recentes que nós tivemos, houvesse um golpe militar, como foi na doença... E está mais longe quando não foram aprovados o sistema parlamentarista de governo e o instituto da desapropriação para fins de reforma agrária.

ENTREVISTADORA– Eu vou perguntar uma coisinha pessoal para o senhor.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Pergunte da seguinte forma: sabendo que eu não considero que existem perguntas inconvenientes; o que existe das partes que recebem perguntas são respostas inconvincentes. Eu não considero que nenhuma pergunta a mim dirigida seja inconveniente. Eu espero é que a minha resposta possa ser convincente.

ENTREVISTADORA– Não, não é nem inconveniente...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu estou só lhe dizendo isso porque, às vezes – deixe-me dizer, com toda a sinceridade; vocês têm prática disso como eu –, faz-se a pergunta, e o cara começa a enrolar, enrolar, enrolar, e não ataca a pergunta. Tem que atacá-la, senão você está perdendo o seu tempo. O que é isso? Desculpa eu lhe dizer, mas eu não vou chegar aos 86 anos para sair de uma coisa que eu sempre respeitei em mim mesmo: eu nunca tive duas versões para o mesmo fato; é sempre a única. Desse modo, pode fazer a pergunta.

ENTREVISTADORA– Não é inconveniente...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, mas se... Eu não considero nenhum inconveniente.

ENTREVISTADORA– Que histórias daquele momento o senhor contará para os seus netos como "a coisa melhor que eu já vivi na vida" ou "a coisa pior que eu já vivi na vida"?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, eu não posso dizer que a melhor coisa não tenha sido o nascimento do meu filho, dos meus netos – essa foi a melhor coisa.

A pior coisa foi... Vou dar dois exemplos, sem dar os nomes.

Eu peguei, uma vez, uma emenda de um Constituinte que dizia assim: "Art. Todos os carros oficiais são pintados da mesma cor. Parágrafo único. O ministério competente dirá qual será a cor." Eu chamei o colega e disse: "Não faça isso. Isso não tem nada de Direito Constitucional. Isso não pode entrar numa Constituinte. Isso é matéria de portaria de um ministério competente. Tire a sua emenda." "Eu tenho que dar uma resposta ao meu eleitorado." "Arranje outra resposta. Você vai ficar mal." "Por que eu vou ficar mal?" "Porque eu vou derrubar isso no Plenário. E, ao derrubar no Plenário, você vai ficar muito mal situado." Eu sei que ele não gostou da coisa. Eu sei que ele se sentiu – só estávamos nós dois – inferiorizado, mas eu fiz tudo para não inferiorizá-lo; quis só demonstrar que ele retirasse, porque, se ele fosse ao Plenário, seria um desastre, ia ser motivo de chacota.

E, quanto à outra emenda – esta foi muito pior; o cara ficou meu inimigo pelo resto da minha vida, ou adversário –, parte dela eu aceitei. Estava lá no fim e, hoje, é a primeira do art. 5º, no inciso I, que começava assim: "Todos os homens e mulheres são iguais em direitos..." Pode anotar. Vou ler para vocês verem como isto é uma coisa fantástica: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei..." E o inciso I diz assim: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Morreu ali. Por quê? Porque eu havia sido, além de professor... Eu disse para ele: "O Código Civil é de 1916. O Código Civil diz que o marido é o chefe da sociedade conjugal. O marido escolhe, se tiver uma briga contra a mulher, onde ele reside." Fiquei mostrando para ele tudo que havia. "Agora, você não pode colocar que os direitos são iguais, vírgula, à exceção da época da menstruação." (Risos.)

Vocês estão rindo, mas isso me causou dor. Causou dor explicar a um cara desses... Eu havia dito para ele ir ao Direito Civil e que eu ia aproveitar isso para botar no Texto Constitucional que a mulher não era mais objeto. E eu nunca fiz propaganda disso. Nunca! Hoje, quando essas grandes mulheres lutam... Eu já havia posto isso lá em 1987 – foi criação minha –, por causa do Direito Civil.

Eu tinha sido aluno de um professor catedrático de Direito Civil que era o cara mais completo que eu vi, um catedrático brilhante. Na primeira prova mensal dele, eu tirei dez. E tirei dez durante todo o curso, do segundo ao quinto.

Quando eu terminei o Direito Civil, ele me convidou para ser assistente dele e eu disse: "Não, sou muito novo, não tenho..." E foi sempre assim, uma admiração enorme. Então, eu sabia o que estava dizendo. Eu disse: "Nessa parte final, você vai cair num ridículo atroz." "Por quê?" Porque todo mundo sabe que você não precisa fazer essa situação, doutor! Era para ser direito e obrigações. A mulher não tem a obrigação da menstruação, assim como tu não tens – eu tinha que dizer. "Eu não vou tirar isso!" Então, você se prepare que vai ser um espetáculo ridículo no Plenário. Agora se você perguntar: "Ele retirou?" Retirou! Ele retirou, mas nunca mais falou comigo, porque ele disse que tinha obrigação com o pessoal dele lá – a mesma coisa.

ENTREVISTADORA– Ministro, continuando. As pessoas diziam sobre a sua habilidade de negociador. O senhor ouvia a esquerda, ouvia a direita, ouvia todos os grupos, mas que, ao final, o senhor fazia o que o senhor queria. É verdade isso?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, eu não diria "o que eu queria", o que eu pude foi ouvir um lado e o outro e colocar o que era mais sensato na minha opinião; mas não me impor, senão eu não ouviria ninguém. Se eu quisesse impor na redação... Eu tinha esse direito, como Relator, e nunca o fiz. Sempre ouvi. Quem melhor define isso a meu respeito é o Ives Gandra Martins.

O Ives disse: "Se não houvesse a habilidade de negociação do Bernardo em conciliar o que era melhor para o texto, não teríamos essa Constituição." Falou assim mesmo. E, realmente, eu nunca impus, eu apenas fazia isso que ele dizia, eu conversava com a pessoa. Não ponha isso, porque você... E, quando não havia necessidade de conversar, eu conversei muito. Olha, não é brincadeira examinar 52 mil emendas.

Vejam como acontece hoje. Vai à Câmara uma emenda, discutem a vida inteira, não saem nunca disso. Eu tive na minha mão, nesta mão aqui. Agora, se não existisse o Prodasen para eu cruzar, não haveria como. Foi o computador que ajudou muito, porque havia coisas que eram superpostas, outras que diziam a mesma coisa, então era difícil, mas você tinha que peneirar isso. Geralmente, eu era sempre contrário quando queriam pôr direitos que não poderiam estar na Constituição, mas nunca impus a minha vontade, não. Eu fiz tudo para ser um colaborador, um contribuidor, retirando o melhor.

Agora, não é fácil ser conciliador. Não é fácil, porque, quando cada pessoa tem na sua mente a determinação de que aquilo é que é o certo, você não consegue tirar, isso é do ser humano.

ENTREVISTADORA– Ministro.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Quer ver? Deixa eu só contar... Depois eu conto essa história tirando daqui.

ENTREVISTADORA– Desculpe interrompê-lo.

Conte a sua história.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Então, vou contar essa história.

O meu pai tinha um sitiozinho, em 1950, num lugar chamado Careiro. Eram duas horas de Manaus, tinha que ser de barco, não havia luz elétrica, àquela altura não havia rádio nem televisão. Meu irmão nasceu em 1949, então foi nos anos 50 mais ou menos. E apareceram, naquela região, para pesquisar a vida dos pescadores, do ribeirinho, pois a Amazônia estava tendo um nome internacional, três caras que compunham isso. Eu não sei de onde eram, se eram da Organização Mundial de Saúde, de educação. Não sei o que era, mas era coisa mundial.

Chegaram ao primeiro ribeirinho, que estava lá, sentadinho na sua rede. O chefe deles disse: "Nós estamos aqui fazendo uma pesquisa [mas um pouco arrogante, não sabem tratar com pessoa humilde], vamos fazer um teste aqui, vamos fazer três perguntas." "Pois não, doutor, diga lá." Ele disse: "O senhor sabe como é o nome do Ministro da Guerra?" Àquela altura, o nome... Aí, o ribeirinho: "Não, senhor. Eu sou um simples pescador, só entendo da minha pesca e tal, vivo dela." Ele disse: "O senhor é ignorante. Não saber o nome do cara que cuida da segurança do País..."

E foi fazer outra pergunta, a segunda. "O senhor tem direito a mais duas, senão o senhor vai ser reprovado. Qual é o nome do Ministro da Fazenda?" Coitado: "Não sei, não, senhor. O senhor me desculpe. Olhe, eu sou um pobre ignorante." Coitado, ficou todo... Aí, o cara passou-lhe uma assim: "O senhor é um ignorante mesmo. Vou lhe fazer a última pergunta e vou-me embora: como é o nome do Ministro da Educação? Essa o senhor tem que saber." "Ah, doutor, não sei, não. Aqui não tem nada, não falo com ninguém, fico com minha mulher, meus filhos, vou fazer a minha pescaria. Sou realmente um homem sem nenhuma cultura." "O senhor não é sem cultura, não. O senhor é um grande ignorante." E foi saindo.

Foi saindo, aí o pobre do pescador, coitado: "Doutor, doutor..." Essa é uma história verídica, meu pai me contava. "Doutor, desculpe eu lhe fazer... Mas o senhor me fez três perguntas, eu estou tão acanhado. Eu posso lhe fazer três perguntas também?" "Pois não." "O senhor sabe o que é um acari-bodó?" Acari-bodó é um peixe da região. O cara é um pescador, não é? "Não sei." "O senhor sabe o que é uma pirapitinga?" "Não, não me interessa saber. Então, faça a última pergunta para eu ficar com a minha consciência em paz." "O senhor deve conhecer o curimatã..." É outro peixe que é cheio de espinhos. "Não sei, não quero saber." Quando ele falou isso: "Pois é, doutor, cada um com a sua ignorância."

Eu não posso responder tudo aqui para você porque cada um com a sua ignorância. Então, esses caras, quando dizem que eu era um ditador, não é, não... Não é nada que entrar, não. Eu botei só para vocês ouvirem. Não, porque senão muita gente vai botar a carapuça, tem gente que vai botar a carapuça.

Por exemplo, você quer ver? Eu não entendo nada disso que ele faz, mas ele faz muito bem. Mas algumas coisas eu posso fazer e que ele não faz. Então, por que eu não vou reconhecer o mérito dele? Porque cada um com a sua ignorância.

ENTREVISTADORA– Ministro, nós não falamos das questões...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu pensei que ela fosse acabar... Cada vez é a última, é a última... Não, não chegamos à última, não...

ENTREVISTADORA– Já, já a gente termina. É porque nós não falamos das questões de economia e temos uma curiosidade. Nós temos aqui a missão de fazer com que o senhor conte para a história, para as pessoas que vão assistir o senhor pela internet, pesquisadores, os brasileiros de um modo geral: quem foi, ou que setores da área econômica mais lhe pressionaram? Dá para contar?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Olha, é interessante, essa pergunta é boa e se ajusta à história que eu acabei de lhe contar.

Eu tinha alguns economistas que tomavam conta da sua área. Na área econômica eram dois constituintes, duas pessoas renomadas: uma era o Dornelles, que foi Ministro da Fazenda, e o outra era o José Serra. A esses dois se deve o que há na Constituinte. Se ruim ou mal, a eles se deve. Eu apenas aproveitei o trabalho que eles fizeram – cada um com a sua ignorância, não é –, e coloquei lá. Mas eu não fui pressionado. Se eles foram, eu não sei, aí vocês têm que perguntar a eles, mas a mim não chegou nenhum tipo de pressão.

ENTREVISTADORA– Está certo.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Você imagina...

ENTREVISTADORA– Há alguma coisa que o senhor acha que foi marcante naquele período que a gente não tenha tratado aqui e que o senhor gostaria de falar?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, não. Acho que vocês... E é verdade, estou dizendo isso porque o que vocês fizeram é só para quem tem muita experiência. É claro que a Tânia e você viveram isso, sentiram isso, vocês sabem como foi. Você imagine, Virgínia, se você pegasse duas moças que saíram agora da faculdade de jornalismo e viessem aqui me entrevistar. Não teriam como, não teriam experiência. Vocês perguntaram o que queriam, o que não queriam, o que não deveriam, o que deveriam, o que poderiam. Quer dizer, porque têm experiência daquilo, uma resposta puxa a outra. A moça hoje que vem – não comigo, porque eu estou fora disso, não recebo –, ela vem com um papel já pronto, direitinho. Ela não sabe sair daquela pergunta. Você me perguntou, ela me perguntou, porque vocês viveram isso, viveram aquilo.

A experiência é uma coisa que você só adquire com a idade. Com o tempo, a idade te ajuda, com a tua experiência, a ter sabedoria. Quando você é moço,18 anos, 20 anos, é a mocidade. À mocidade, a ela cabe o direito de enamorar – vou fazer aqui um paradoxo –, mas só a idade madura lhe dá o privilégio de saber amar as coisas, dentre isso a profissão de vocês. É isso. Então, é com isso que eu tenho que contribuir para que vocês tenham tido a sua missão cumprida.

ENTREVISTADORA– Eu só quero agradecer.

ENTREVISTADORA– Não, antes de você agradecer, ele contou para a gente, mas a gente não gravou. Com uma carreira tão brilhante no cenário político nacional, por que o senhor abandonou a vida pública?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, eu respondi sim. Pode não ter sido gravado.

ENTREVISTADORA– Pois é. Eu estou pedindo para o senhor falar para a gente gravar.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Mas se vocês dissessem que eu tinha dito, eu respeitaria, é claro. Eu já lhe disse: eu não tinha mais condições de poder acompanhar o que eu notei que ia se tornando a política. Estou fora da política há 16 anos, e, onde você está, já vieram outras pessoas da minha terra dizendo que o Amazonas não tem, hoje nós não temos nenhum amazonense na representação política; todos são de fora do Estado. E eu disse que não voltaria mais à política porque hoje a política tomou outro rumo, e eu disse a vocês qual é o rumo.

Hoje você tem que ter aquelas três coisas que são muito fortes para vencer uma batalha política, que são: dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. E isso eu não tenho. Se eu tivesse, eu não estaria aqui.

Outro dia um amigo meu chegou aqui e disse: "Poxa, Bernardo, mas que coisa bonita a tua vida pública, eu gostaria de ter tudo isso." Ele é um homem sério, mas é muito rico. E eu disse a ele: "Tu não tens isso, mas isso é a herança que eu vou deixar para os meus netos e netas, e tu vais deixar uma herança de milhões e milhões." Eu não sei o que vale mais, só isso.

ENTREVISTADORA– Ministro, a gente queria agradecer, e eu queria lhe dizer que foi um privilégio, como profissional, ter acompanhado o seu trabalho em 1987 e em 1988, um privilégio mesmo.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Muito obrigado, Virgínia.

ENTREVISTADORA– E um privilégio hoje ouvir a sua avaliação e ouvir o senhor rememorar isso tudo.

Muito obrigada de coração.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Obrigado. Ainda bem que a idade não excluiu alguma coisa que eu guardei, as lembranças, porque, com o tempo, as coisas vão ficando esmaecidas. Não só os papéis, não só a escrita, você também esmaece, a não ser quando você tem pessoas que, no convívio, também não esmaeceram.