Entrevista completa Senadora Rose de Freitas


ROSE DE FREITAS

Texto do depoimento gravado pela senadora Rose de Freitas no gabinete parlamentar no Senado Federal pela equipe do Serviço de Arquivo Histórico – SEAHIS da Coordenação de Arquivo – COARQ.

Degravado e revisado pelos analistas de Registro e Redação Parlamentar (taquígrafos) da Secretaria de Registro e Redação Parlamentar -SERERP da Secretaria Geral da Mesa – SGM.

 

ENTREVISTADORA - Em 6 de abril de 2018, registramos o depoimento da senadora Rose de Freitas, sobre a sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988, parte do projeto de História Oral comemorativo dos 30 Anos da Constituição. Participam da gravação os servidores, Virginia Malheiros Galvez, Tania Fusco e Ricardo Movits, Chico Boneta.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) -  - Primeiro, eu acho importante registrar que para nós, mulheres, fazer parte de uma Assembleia Nacional Constituinte é parte de uma história que eu acho que é um legado importante para a luta das mulheres e para o Brasil no processo democrático.

Eu fui para a política como uma militante de causas sociais, como uma militante resistente contra a ditadura, pelas liberdades democráticas e, assim, eu fui caminhando nos movimentos populares até chegar a ser uma Deputada Estadual no meu Estado, Espírito Santo e; em seguida, eleita para o Congresso Constituinte.

A importância que isso tem é que, na verdade, eu resisti muito a ir pelo dado histórico da minha própria vida, que a Assembleia Nacional Constituinte não fosse exclusiva. Quer dizer, qualquer pessoa da sociedade pudesse, você, índio, professora, gerente, médico, estar presente no Congresso escrevendo o novo Texto Constitucional – o que não foi possível. Então, nós viramos Parlamentares constituintes. Cada um trouxe o seu contencioso de vida para cá, as suas experiências. E eu vinha exatamente como militante das causas sociais pelos direitos humanos, pela questão de anistia, que foi a maior luta que o Brasil travou pela redemocratização. Então, nós chegamos aqui com esse papel no processo constituinte.

ENTREVISTADORA– Senadora, a senhora já nos contou que tem muito orgulho de ter sido Vice-Líder do Senador Mário Covas, no caso, acho que foi a primeira mulher Vice-Líder. Eu pergunto como é que a senhora conseguiu abrir esse espaço se entre 559 Constituintes, as mulheres eram 5,3%. Como é que a senhora conseguiu esse espaço tão importante?

SENADORA ROSE DE FREITAS – Esse número está errado.

ENTREVISTADORA– São 26 de 559, o que representava 5,3%.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Não eram 559, eram 513 mais 81.

O SR. ENTREVISTADOR – Isso é hoje, naquela época era menos.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Não, só houve dois Estados a mais.

O SR. ENTREVISTADOR – Não, houve Estados do Norte que tinham um só e passaram para oito. Lembra naquele acordo...

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Ah, desculpa. É mesmo. E nasceu Tocantins também.

Vamos lá.

ENTREVISTADORA– E, aí, como é que foi chegar, abrir esse espaço e conseguir ser Vice-Líder...

ORADORA NÃO IDENTIFICADA – Por favor, repete a pergunta? Desculpa.

ENTREVISTADORA– A senhora já nos contou que tem muito orgulho de ter sido Vice-Líder do Senador Mário Covas. Eu queria saber como é que a senhora abriu esse espaço num universo tão masculino, ter uma posição tão importante que lhe permitiu crescer muito no processo constituinte.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODE/ES) - Na verdade, era um clube essencialmente masculino. Nós tínhamos poucas mulheres, mas mulheres combativas. Eu acho que nós incorporamos decisivamente o papel que nós historicamente teríamos que desempenhar no Congresso constituinte. Por quê? Porque sendo tão poucas e tendo que representar a maioria da sociedade brasileira – as mulheres eram cinquenta vírgula alguma coisa da população brasileira –, nós sentíamos a responsabilidade de levar a termo, de nos colocarmos em todas as Comissões. E como as Comissões eram decididas pelos Líderes, todos eles homens, a dificuldade de estar em Comissões importantes era muito grande.

Eu quero até ressaltar que a Comissão de Sistematização, da qual eu fiz parte, que era a Comissão, vamos dizer, mais progressista, mais para o campo democrático, provocou uma reação de outra parte do Congresso que era exatamente a parte mais reacionária, que não queria reforma agrária, que não entendia igualdade de direitos, direitos de trabalhadores e por aí afora. Muito menos – muito menos – aumentar e dar visibilidade à representação da mulher.

Então, nesse momento em que nós brigávamos, nos organizamos não em grupo de todas, mas de uma maioria, e começamos a ir para as comissões disputar, com a nossa voz, a nossa participação.

Acabei sendo escolhida para ser Vice-Líder de um dos homens mais brilhantes da política brasileira que era Mário Covas, que acabou sendo Líder da Constituinte. Eu ocupei o cargo de Vice-Líder.

Aí, sim, com esses passos, por isso é estratégico o crescimento da mulher na política, nós tivemos capacidade de nos organizar mais, inclusive em relação aos temas do nosso gênero.

ENTREVISTADORA– A senhora aprovou coisas superimportantes. Eu posso ler algumas? E a senhora daria uma explicadinha se foi integral, se foi parte, se houve dificuldade ou facilidade para se aprovar. A aposentadoria voluntária distinta para homens e mulheres; a união estável e o casamento religioso com efeito civil; a prisão civil para devedores de pensão alimentícia; o controle da natalidade como opção individual. Isso só na causa das mulheres. Há outras coisas que a senhora aprovou de outros assuntos. Mas eu queria que a senhora falasse exatamente dessa questão da Bancada do Batom, sobre a força que vocês tiveram. Por que vocês conseguiram aprovar 80% das reivindicações das mulheres?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Exatamente por essa capacidade de mobilização, de estrategicamente haver Vice-Líder, de haver mulheres estrategicamente em comissões importantes.

Exatamente por termos essas posições estratégicas de haver uma Vice-Líder num colegiado essencialmente masculino, de estarmos posicionadas nas comissões estratégicas que abordavam os assuntos de direitos humanos, os assuntos de cuja discussão, de forma geral, mulher não tinha a condição de participar, como a Comissão da Reforma Agrária e tudo o mais.

Nesse específico tema que você abordou, sobre reconhecer o direito de a mulher de ter alguns mecanismos de defesa acerca do papel dela dentro da sociedade, sobre a importância que ela tinha, mulher tinha de ter efetivamente diferenciada a sua aposentadoria. Por quê? Porque nós mulheres temos uma tripla, quádrupla jornada de trabalho, e isso nunca foi reconhecido no escopo da lei.

Então, quando você fala que a mulher vai se aposentar, você tem de olhar não para uma mulher que cumpre o horário como um homem cumpre, pois, muitas vezes, chega em casa e cobra a sistemática da estruturação da família, do trabalho, da alimentação, com que ela em tudo compartilha. A mulher educa, a mulher trabalha, a mulher administra, a mulher contribui com o orçamento de casa.

Naquela época, falar sobre este assunto era como se nós estivéssemos cometendo um sacrilégio, como se estivéssemos falando em privilégios. E não era privilégio. Era direito. Até hoje ainda há um pouco dessa cultura que nós estamos aos poucos rompendo.

Então, quando falamos que a mulher fica sozinha com a família é porque, numa separação, geralmente é a mulher que fica com os filhos, com raras exceções. E não haver para ela um tratamento diferenciado em relação à pensão, em relação aos seus direitos, ao tempo de aposentadoria era um absurdo. Não há igualdade, não há desenvolvimento no País se você não tratar as pessoas de forma igualitária. Então, na Constituinte nós tivemos a oportunidade de dar visibilidade a esses temas.

Já que você falou sobre essa questão de aposentadoria, de tempo, de pensão e tudo o mais e da questão da união estável, havia um conceito, naquela época, de que o casamento só era reconhecido... O direito de uma mulher dentro de uma relação matrimonial só tinha reconhecimento se ela fosse, no processo inteiro, legítima. Quer dizer, estou falando em legitimidade, mas entre aspas. Você casava no cartório, na igreja, onde você quisesse, e aí começava a ter seus direitos como cônjuge real. Na verdade, às vezes um homem tinha duas famílias, e a mulher que estava naquele relacionamento à parte era tratada como uma amante, desrespeitada pela sociedade e sem nenhum reconhecimento, embora ela pudesse ter, como fruto desse relacionamento, filhos. Então, nós fomos construindo dentro da lei o quadro do papel da mulher onde ela estivesse, fazendo o que ela estivesse fazendo, mas como um ser que, dentro da sociedade, tinha que ter um tratamento adequado no âmbito da lei. A Constituição serviu para isso. Nós éramos poucas, mas éramos todas combativas e falávamos, com raríssimas exceções, a linguagem das mulheres no que tange àquilo que foi... Nós tínhamos o crime de honra, né? A coisa mais hedionda do mundo. A mulher traía, aí ele matava e era absolvido porque estava defendendo sua honra. Mas ninguém lhe subtraía a imagem da dignidade humana a honra da mulher.

ENTREVISTADORA– Senadora, a senhora se recorda de algum momento de negociação em que houve vitórias importantes na consagração desses direitos que estavam nessa Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que foi, mais ou menos, a Bíblia para o grupo das mulheres que trabalhou na Constituinte? Há alguma liderança, alguma ajuda especial, algum momento importante nessa luta de que a senhora se lembre de uma história muito emocionante e importante nessa luta?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) -  Não, eu não me lembro de nenhuma história emocionante, mas reconheço que toda história é importante. Primeiro, não havia Bíblia, desculpe-me dizer. Nós estávamos escrevendo uma Carta Magna. Nós estávamos começando uma história para ser escrita.... Quer dizer, começando uma carta que regrava direitos individuais e coletivos para ser escrita toda ela com aquela síntese da sociedade brasileira que era o Congresso Constituinte. Ali tinha vários segmentos políticos.

Então, eles se agruparam num momento em que nós, a esquerda, nos agrupamos dentro da sistematização. Logo em seguida, veio a reação e criaram o Centrão. Nada foi objeto de negociação. As duras e verdadeiras batalhas que nós travamos dentro do Congresso foram a voto. Não havia negociação. Quem defendia a reforma agrária não encontrava campo, meio de campo, um local em que se pudesse acordar. Quem era contra a reforma era contra a reforma; quem era a favor da reforma era a favor.

Evidentemente que nós, na nossa posição de defendermos o direito social da terra, encontramos ali uma maneira de escrever isso, cedendo alguns espaços, sempre cedendo, porque eles tinham uma reação fortíssima a essas questões sociais, como o direito das mulheres e por aí afora, a igualdade, a tudo isso de que nós tratávamos, nós encontramos uma reação muito forte.

Então, ali não teve campo de negociação, não teve em momento nenhum. Sempre foi no voto. Os debates eram intensos, calorosos, cada um com o seu ponto de vista, entendendo que historicamente nós, da esquerda, tínhamos que avançar e saber até encontrar uma linguagem nesse avanço suficiente para dizer que a nossa Constituinte realmente era a concretização do processo democrático e um avanço na questão dos direitos individuais e coletivos.

ENTREVISTADORA– Eu queria que a senhora falasse agora um pouco da importância da Tribuna Livre aqui dentro.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Nós chegamos num Congresso Constituinte. O que eu pensava sobre isso eu até já explicitei muito, falei muito. Eu me surpreendi ao ser candidata a Deputada Federal tendo que ser Parlamentar Constituinte. Então, a sociedade estava de fora disso. "Ah, eu vou votar no Antonio para ser Deputado Federal." "Mas ele vai escrever a Constituição?" "Mas como? Eu não autorizei isso!"

Então, a Tribuna Livre, depois de eleito o Congresso Constituinte, que foi essa mesclagem de Parlamentar e Parlamentar Constituinte, porque acabou a Constituição, a Carta foi escrita, foi sancionada, foi publicada. E o que aconteceu? O Parlamentar continuou no seu exercício do cotidiano da vida congressual. Poderia ter sido muito mais rica a nossa Carta se houvesse a representação orgânica da sociedade.

Então, criamos a Tribuna Livre, um projeto que nós fizemos e contra o qual tivemos muita resistência, porque a pergunta era: "Por que precisa de uma tribuna para o povo falar, se o povo está representado pelo seu Parlamentar?" Porque essa é o aperfeiçoamento da democracia. Nada mais nobre, mais rico e mais democrático do que ter uma tribuna. Para quem? Para que os segmentos da sociedade que não puderam estar representados no processo pudessem propor ao Congresso Constituinte. Foi o momento, eu diria, que foi mais emocionante, quando nós vimos professor, padre, economista, latifundiário, proprietário rural, todos que estavam ali dizendo: "Olha o que nós queremos, as nossas propostas são essas." Houve um momento até que um indígena, pela primeira vez, veio ao Congresso, assumiu e falou o que era a vida das tribos indígenas no País e o que se esperava que pudesse conter naquela Texto Constitucional.

Aí vieram as mulheres negras, como a Benedita, que veio para cá como a mulher da favela, a mulher negra, a mulher que encarnou o direito de todas as mulheres discriminadas na sociedade. E a outra parte, das mulheres pelos seus direitos.

Então, eu falo muito em mulher – vocês podem estar observando isso –, mas estou sempre colocando que a sociedade... O princípio resguardado... Escrever uma Constituição é que você possa promover, no âmbito da lei e da Carta Magna, a justiça. A justiça para todos os passos que um Texto Constitucional possa dirigir. Tratar do problema da terra, como tratar do problema da saúde, da aposentadoria, das relações conjugais, tudo isso...

O direito à propriedade foi um embate nesta Casa monstruoso. As pessoas diziam: "Olha, eles vão invadir a sua casa, quando pedirem que um pedaço de terra deva ser distribuído para que outros, aqueles que são da terra, possam construir o seu dia a dia, o seu ganha-pão".

Então, eu digo assim: já estamos em um momento de fazer uma revisão desta Carta ou uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Mas digo que agora temos que nos preparar para que a sociedade, representativamente, esteja aqui dentro, para que haja um equilíbrio de forças a favor de um Brasil mais justo e mais igualitário.

ENTREVISTADORA– Senadora, entrando nesse assunto das outras emendas que a senhora aprovou integralmente ou em parte, algumas são muito importantes. A proposta de anistia com todos os direitos para os afastados de cargos públicos por motivação política desde 46 foi aprovada integralmente?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) -  Integralmente.

ENTREVISTADORA– A contribuição sindical descontada em folha; a manutenção do imposto sobre prestação de serviço nos Municípios.... Qual delas teve especial carinho da senhora? Ou foi tudo igual?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Foi mais ou menos igual, porque a questão da anistia aos servidores com participação política, que eram execrados da vida profissional ou administrativa do País em qualquer setor que estivesse, nesse momento se nós estávamos escrevendo uma Carta Magna, era necessário que a anistia fosse um instrumento legítimo da reintegração dessas pessoas à vida política e pública do País.

Você tirar de um cidadão completo o direito de ele ter as suas opiniões, então, a democracia estava ferida. Então, ela estava, como se diz, esquartejada, porque esse funcionário foi expurgado sem direito nenhum. Era como se ele fosse uma excrecência da sociedade.

Então, esse momento para mim foi importante quando a gente conseguiu abrir espaço para essa discussão e aprovação desse texto.

ENTREVISTADORA– A senhora conhece de orçamento muito bem, Senadora.

Existe uma análise de que o capítulo da ordem tributária ficou extenso, inclusive o Senador Serra, que foi constituinte com a senhora e foi Relator, tem essa visão; outras pessoas também.

Existe também uma permanente demanda por uma reforma tributária. A senhora acredita que esse seria um dos temas a serem tratados nesta revisão constitucional? A senhora acha necessário revisar os tributos; revisar a partilha de recursos entre União, Estados e Municípios e a correspondente responsabilidade nas despesas a serem assumidas?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) -  Com certeza!

O Brasil tem um cacoete ou uma mania de fazer de conta que está fazendo aquilo que não está fazendo.

Esse modelo de economia do Governo é centralizador. Quase 70% do que se arrecada no Brasil ficam nas mãos do Governo Federal. E, na ponta, você vai ver, tanto na saúde quanto na educação e até na infraestrutura urbana, como é difícil a distribuição desses recursos. Se não fosse pela Lei Calmon, que estipulou um percentual obrigatório, não haveria nem essa quantidade de escolas que há. Ainda assim, é mal distribuído o recurso.

Então, a reforma tributária, todos aqueles que estão nos Governos estaduais lutam contra ela. Nós elegemos um governador de quatro em quatro anos, ou ele se reelege. E o que ele faz no primeiro momento, quando ele chega, é agir como o Governo Federal, que ele tanto contesta, na concentração de recurso. Ele faz a mesma coisa. Quando se repassa o dinheiro, uma parte desses percentuais da educação, da saúde, da infraestrutura e de tudo mais, para o Governo do Estado, o governador retém esse recurso, e isso não chega aos Municípios de jeito nenhum, haja vista o percentual que se aplica no Fundo de Participação dos Municípios e haja vista também, ainda se resguardando o direito dos governadores, o que se aplica nos Governos dos Estados.

Então, esse modelo centralizador não faz em nada a tal justiça social, tão importante. Há Municípios inteiros que ainda não têm água, que não têm estrada, que não têm escola. Isso é o rescaldo desse modelo centralizador de renda, em que todos pagam seus impostos, e tudo vem para o caixa da União, em que fica tudo ali, na mão da União. Então, na hora de repassar, há essa dificuldade.

Portanto, reforma tributária é palavra de ordem extremamente importante para o Brasil de hoje, como era há 30 anos.

ENTREVISTADORA– Quando a senhora acha que seria conveniente começar a falar, de verdade, em realizar essa revisão constitucional e a reforma tributária?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Eu não vou mais chamar de revisão constitucional. Acho que tem de haver uma nova Carta Magna. A nossa foi extremamente detalhada, e tem de haver uma compreensão disso, porque nós vínhamos de um regime de ditadura, com supressão de direitos. O governo ditatorial sequestra a participação da sociedade organizada em todos os níveis.

Eu acho que está na hora de fazer uma nova Carta constitucional. Isto acontece em muitos países: de 30 em 30 anos, de 20 em 20 anos, se revê o Texto Constitucional. O mundo muda, e a participação da sociedade aumenta. E a questão da distribuição de renda é fundamental. Tudo isso está amparado nos Textos Constitucionais.

Neste momento em que estamos falando, há intervenção em determinado Estado, o que suprime do Congresso o direito de fazer qualquer emenda à Constituição. E há várias a serem feitas. Ainda temos um texto de 30 anos atrás, que não está regulamentado. Isso prova que o Brasil precisa ser repassado a limpo com relação à Constituição, precisa ser atualizado também.

Eu acho que reforma tributária.... Você sempre deve ter ouvido falar – vocês todos – sobre reforma política. Há 20 anos, estávamos no meio da rua, dizendo: qual o principal modelo? Reforma política. Esse modelo político também não presta. É um modelo, inclusive, que traz algumas coisas que são armadilhas para o processo democrático, que contaminam o processo democrático.

Você vê a questão do segundo turno de uma eleição: todos saem para uma eleição, e, quando chega o segundo turno, começam as negociações. E aquele que está na frente e que negocia melhor a partilha do poder é quem tem mais chance de ganhar. Mas essa partilha de poder nem sempre é feita com os parâmetros da moralidade e da ética e, muitas vezes, compromete o governo que vai tomar posse, pois ele fica amarrado.

Então, o aperfeiçoamento desses mecanismos é fundamental até para que alguém que chegue lá na frente com uma proposta de reforma tributária possa efetivamente cumpri-la. Se ele adota outros compromissos, ele restringe o importante exercício da liberdade democrática no sentido da execução de um plano e de um projeto que a sociedade adotou através do voto expressivo e da aprovação daquele candidato.

ENTREVISTADORA– A senhora votou contra a pena de morte, a pluralidade sindical, o presidencialismo, por exemplo. Passados 30 anos, a senhora repetiria esses votos?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Eu repetiria. Até no que se refere à questão da pluralidade sindical, nós temos no Brasil 21 mil ou 12 mil sindicatos, sei lá. Isso é uma coisa absurda. O imposto sindical tem de ser para o sindicato se estruturar para ser mais representativo daquela categoria dentro do processo de direitos trabalhistas, de representatividade.

Com relação à questão da anistia aos microempresários, num País que tinha mil por cento de juros ao ano, com um processo inflacionário louco, aqueles que recorriam aos empréstimos para sedimentar o seu negócio acabavam ficando presos nas engrenagens de um regime capitalista como aquele que o Brasil tinha e que ainda hoje tem, só que hoje é mais democratizado. Então, eu votaria...

No que se refere ao sistema de governo, eu acho que o presidencialismo faliu. Um homem ou uma mulher, com uma caneta nas mãos, determinando o destino de uma nação não é possível mais. Não há nenhum ingrediente democrático nesse processo que diga que o Presidente não pode fazer aquilo se ele desejar fazer. Se ele desejou fazer, ele faz, e as consequências disso se desdobram todos os dias nos ombros da sociedade brasileira.

Então, qual é o mecanismo que a sociedade tem para tirar um Presidente, para tirar um Ministro, para dar um veto ou colocar aquele voto de desconfiança, que é tão salutar nas sociedades democráticas? Nós não temos nenhum desses instrumentos. Elegemos o Presidente, e o Presidente manda. A concentração de poder é enorme. Então, daí para frente, ele escolhe os Ministros, e os Ministros vão para lá; quando ele quiser, ele muda. E nós, quando estamos diante de um quadro, de uma representação, de uma escolha ministerial que não condiz com os conceitos éticos e morais da sociedade e muito menos com os critérios administrativos para ajudar o País a se desenvolver, temos de sucumbir a isso, porque isso é o presidencialismo, um regime concentrador de poder.

Não há mais justificativa para o presidencialismo e muito menos para um presidencialismo em que depende o Presidente, na eleição, no segundo turno, dessas correntes que fazem essa grande negociação e que sempre comprometeram o País como um todo.

ENTREVISTADORA– A senhora era parlamentarista e segue parlamentarista?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Sigo, com convicção, parlamentarista.

ENTREVISTADORA– Inclusive, uma análise que se faz é a de que, no Texto Constitucional que foi construído, as regras de governos, as ferramentas são típicas de um governo parlamentarista. Um bom exemplo é a medida provisória, que é usada amplamente pelos governos, que foi usada e continua sendo usada até excessivamente, não é, Senadora?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Eu acho. Eu acho que as medidas provisórias têm de acabar, como temos de aperfeiçoar o sistema democrático com o processo parlamentarista. Na hora em que o Primeiro-Ministro não for aceito, tira-se o Primeiro-Ministro, coloca-se outro. Se ele descumpriu o programa que ele propôs... Ele tem de registrar em cartório. Algumas pessoas dizem que registram, mas, depois, vão a público e dizem: "Olha, não é bem assim. Eu quero alterar aquilo que eu propus." Mas ele foi eleito exatamente porque ele escreveu, porque o povo aceitou, porque a maioria estava de acordo. Só que essa maioria, depois, não tem nenhum instrumento para se opor a qualquer desvio de conduta ou a qualquer descumprimento da palavra, do programa.

Então, eu acho isso fundamental.

É verdade que o corpo da Constituição é parlamentarista e que a cabeça é presidencialista. Mas, já que nós estamos no caminho, vamos decepar essa cabeça e colocar uma nova, para que o Brasil tenha mais democracia e mais representatividade, para que o povo tenha mais instrumentos, inclusive, para mudar aquilo que, no andar, no decorrer do caminho, não condiz com os compromissos que foram colocados para o País como um todo.

ENTREVISTADORA– A senhora diria que a Constituição mudou a sua vida como política, como pessoa que trabalha e exerce a política por tantos anos e como cidadã, Senadora? Ou foi mais uma atividade importante, mais uma experiência?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - A Constituição foi um ponto histórico com que nós tentamos argamassar uma política que pudesse, conceitualmente, fazer um Brasil melhor, mais bem administrado e concebido. É evidente que eu tenho toda a honra histórica de dizer que eu estava lá. Eu estava lá, cumprindo um papel importante.

O que muda a vida da gente, na verdade, é a gente saber que cada passo dado foi edificante. Eu me defino como uma construtora, não sou demolidora. Se eu estivesse ali só para ser contra alguma coisa, eu diria: "Marquei minha posição." Mas marcar posição no Brasil... Nós precisamos é de nos unir para construir novos momentos, novas conquistas, de preferência equilibrando essa balança, porque ela só pende para um lado. A do povo é sempre a balança mais prejudicada, mais vazia.

Eu quero dizer assim: a Constituinte, historicamente, foi importante, mas está na época de avançarmos. Que isso seja feito comigo ou com outra pessoa no meu lugar, mas que ela possa conceber o momento de luta que eu vivi. Entendeu?

Meu pai dizia que viver é lutar, que a vida acaba abatendo aqueles que não têm capacidade de fazer isso, e eu não me senti abatida, eu me senti fortalecida. Mas, a cada dia, eu penso que há algo a fazer em relação àquilo que nós já fizemos há 30 anos.

ENTREVISTADORA– Muito obrigada, Senadora.

ENTREVISTADORA– A senhora quer falar mais alguma coisa?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Ah, quero!

ENTREVISTADORA– Então, vamos lá! Continue.

ENTREVISTADORA– Muito bem, Senadora. Pode falar, Senadora.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Que nós tenhamos uma nova Assembleia Nacional Constituinte! E que, desta vez, venha o povo, aquele que tem algo a propor, aquele que tem algo a dizer, aquele que se sentiu excluído do processo, aquele que acha que efetivamente a Carta Magna, aquela que é usada e interpretada dentro do STF, é um mecanismo da sociedade em defesa de seus direitos em qualquer repartição jurídica. Que venha, o povo, sobretudo, para dizer à classe política aquilo que a classe política deixa de dizer quando está no exercício do seu mandato!

Então, acho que o Brasil vai ganhar muito se nós tivermos uma nova Assembleia Nacional Constituinte exclusiva. Esse é um novo capítulo a ser escrito, desta vez com o povo brasileiro presente para escrever, do princípio ao fim, a Carta que vai dizer o Brasil que realmente nós precisamos ter.

ENTREVISTADORA– Apesar de ser chamada de Constituição cidadã, a senhora, então, não a vê assim? Ao longo desses 30 anos, a senhora acha que os direitos conseguidos foram diminuídos?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Não, eu quero dizer o seguinte: a Constituição cidadã existe. Ela é pormenorizada. A Constituição brasileira é uma Constituição cidadã. Ela existe, ela entra em detalhes dos direitos individuais, mas se esquecendo de muitas outras coisas. E não especificamos aquilo que nós escrevemos na Constituição. Ela não foi sequer regulamentada em muitos dos seus capítulos.

Digo que ela precisa avançar porque eu acho.... Por exemplo, eu entrei no processo constituinte com uma mentalidade profundamente estatizante. Hoje, eu vejo que o Brasil não pode ser assim. Então, é importante que a gente entenda que os direitos de cada um também estão incluídos dentro de uma plataforma de construção de um Brasil mais desenvolvido, para que todos possam usufruir da renda e do trabalho com toda a dignidade pessoal.

Então, garantir que cada um tenha seu direito respeitado é muito certo; nisso não temos de mexer. Nós temos até de avançar na questão do gênero da mulher. Mas, em relação ao capital e ao trabalho, por exemplo, nós temos de melhorar bastante. O Brasil pretende evoluir e se desenvolver. Que esse desenvolvimento possa estar ao alcance de todos os brasileiros. Nós vimos recentemente que cinco grandes empresários brasileiros detêm uma fortuna que corresponde àquilo que têm milhões de brasileiros.

Então, é preciso uma Constituição que resguarde direitos, qualidade de vida, direitos do cidadão e desenvolvimento, para se promover a democracia da renda no País.

ENTREVISTADORA– Senadora, como foi a história da sua disputa? E como foi que a senhora tratou dela com o Dr. Ulysses?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Na verdade, nós fomos eleitos e entramos, no dia 1º de fevereiro, dentro de um plenário totalmente desconhecido para mim. Eu vinha do Espírito Santo e tinha sido Deputada Estadual. Chegamos lá e encontramos todas as chapas prontas para compor a Mesa Diretora da Câmara e a Mesa Diretora do Congresso Constituinte. Eu não conhecia ninguém. Conhecia o Ulysses, conhecia Covas de nome, Richa e tal.

Chegamos lá, eu indaguei sobre a chapa. Ele disse que não restava nenhum instrumento de alteração, porque a chapa já tinha sido composta durante o período entre a eleição e a votação. Eu disse: "Nós somos novos, não conhecemos ninguém nesta Casa, não sabemos quais são as propostas." E ele disse: "Infelizmente, assim é o Regimento Interno. Ele poderá ser alterado para a próxima votação, não para essa. Agora, nós temos de votar." Eu pedi educadamente a ele, ao Presidente, que suspendesse a sessão por 15 minutos, para que nós pudéssemos confeccionar uma chapa. Houve um rebuliço danado em plenário. Como é que, começando o ano legislativo, com a votação pronta, com todo mundo pronto para votar, chega uma índia tupiniquim lá para falar sobre uma coisa tão consolidada? Aí confeccionamos uma chapa, disputamos com Heráclito Fortes e com Roberto Jefferson a 3ª Secretaria e perdemos por sete votos.

O que quero dizer com isso é que é capaz qualquer pessoa que tenha a capacidade de ousar com propostas novas – eu queria apresentar propostas – de conseguir rasgar um espaço, ainda que derrotado. Até ganhei uma manchete no Jornal do Brasil: "Deputada se rebela e ganha fama." Não era a fama que interessava, mas subverter a ordem consolidada de coisas tão antigas, tão conservadoras, como era o fato. E houve o fato de termos ido para a Constituinte, para o Congresso. Imaginem quanta coisa tinha de ser refeita!

Eu fui Deputada Estadual em 1982. Em 1983, eu estava grávida, sem ter direito à licença-maternidade. A Constituição, a que nós tínhamos até então, dizia que a licença parlamentar foi feita para não haver mulheres na política. A licença que era prevista para qualquer Parlamentar, fosse ele federal ou estadual, era licença para missão oficial, licença para doença e licença para tratar de assuntos particulares. E, quando engravidei, quando se aproximou a época da minha maternidade, apresentei-me ao Presidente da Assembleia do meu Estado e perguntei: "Presidente, estou próxima de dar à luz. Eu queria usufruir da licença-maternidade." Ele disse assim: "E qual é o problema?" Eu falei: "É que a Constituição não me dá esse direito, não dá esse direito à mulher política, dentro do Legislativo." Só nós podemos ficar grávidas; o homem não fica grávido. Então, a Constituição era masculina. Ela falava de alguns direitos, falava dos direitos dos homens, e não dos direitos das mulheres. Eu me lembro de que o Presidente, na época – declino o seu nome, porque ele já faleceu –, disse assim: "Arranje um atestado médico. Está resolvido o problema. E não arranje mais problema para mim." Quer dizer, eu tinha de dar um atestado ideologicamente falso, para que eu tivesse direito a sair de licença-maternidade.

Veja bem: a Júlia, minha filha, que nasceu nesse período, cismou de nascer no dia 28 de fevereiro. No dia 1º de março, recomeçavam os trabalhos legislativos, o que equivale dizer que tive a Júlia e tive de ir com ela nos braços para a Assembleia. Eu fui a primeira mulher a engravidar durante o mandato. Quantas mulheres deixaram seus planos frustrados, seus direitos de lado, por não terem na Constituição o direito à licença-maternidade garantido! Isso se deu em 1982. Imaginem que a mulher teve o direito ao voto em 1932 e foi ter o direito à licença-maternidade reconhecido quando nós fomos Constituintes em 1988.

Então, é muito importante dizer que essa Carta Magna teve a sua grande importância. E ela deve ter uma importância maior ainda se nós convocarmos uma nova Assembleia Nacional Constituinte.

ENTREVISTADORA– Há mais alguma história?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Outra coisa é você chegar ao Congresso constituinte e ter de ficar numa fila para ir ao banheiro dos homens. Tínhamos de esperar que os homens entrassem e saíssem. As mulheres entravam depois. Levo em conta até a questão da privacidade que a mulher deveria ter. Nós somos iguais nos nossos direitos e diferentes fisicamente. Então, era muito constrangedor. Então, houve a reivindicação de se construir um banheiro. E aí fomos chamadas. A manchete era muito ridícula: "Mulheres pedem privilégio. A Bancada do Batom pede o privilégio de um banheiro exclusivo." Em qualquer lugar do mundo, há um banheiro feminino e masculino há anos, se não forem mais de cem anos! E nós aqui tínhamos de passar por esse constrangimento. Parecia que nós éramos princesinhas, pessoas que queriam um privilégio. Aí criaram a Bancada do Batom, que, na época, era um deboche e que, hoje, na verdade, ficou uma caricatura muito interessante. Nós usávamos batom, sim, mas nós reconhecíamos que éramos iguais perante a lei e diferentes nas nossas necessidades físicas.

ENTREVISTADORA– Nesse caso, só para esclarecer, era o banheiro que atendia ao plenário, onde aconteciam as reuniões.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Um banheiro que não era só...

ENTREVISTADORA– Só havia um banheiro para homens no plenário.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - Só havia um banheiro para homens e mulheres. E não eram só Parlamentares; tem de se dizer que assessores, secretários, jornalistas, todo mundo frequentava o banheiro. Era uma fila muito interessante. Imagina se eu estivesse grávida na Constituinte e tivesse de esperar 400 Parlamentares irem à toalete! Mas, de deboche em deboche, de caricatura em caricatura, as mulheres foram mostrando que elas sabem lutar, até mesmo por um banheiro reservado.

ENTREVISTADORA– E sabem dar a volta por cima, porque o deboche da Bancada do Batom virou uma marca das mulheres, uma marca positiva durante a Constituinte.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS/ES) - No encontro agora que nós tivemos, o das mulheres Constituintes, as poucas que ainda estão no exercício da política, quando olhamos para trás – a Anna Maria Rattes, a Benedita –, nós vimos o quanto nós ficávamos inibidas de falar sobre certos assuntos, como se aquilo fosse um privilégio, e não era. Então, de batom em batom, de conversa em conversa, de posição em posição, de banheiro em banheiro...

Quanto à titularidade da terra, quando o homem morria na terra, a esposa e os filhos tinham de ir embora. Ela não tinha direito, como o homem tinha, àquela terra em que trabalhou durante anos. É o usucapião. Ela não tinha direito. A mulher perdia o marido e perdia também o local de trabalho, depois de 20 anos convivendo naquela terra e já com idade avançada.Então, na titularidade da terra, no uso do banheiro e em tudo o mais, as mulheres foram avançando. Agora é hora de avançar mais ainda.