Entrevista com Senadora Rose de Freitas - Bloco 2


ENTREVISTADORA – Senadora, a senhora se recorda de algum momento de negociação em que houve vitórias importantes na consagração desses direitos que estavam nessa Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que foi, mais ou menos, a Bíblia para o grupo das mulheres que trabalhou na Constituinte? Há alguma liderança, alguma ajuda especial, algum momento importante nessa luta de que a senhora se lembre de uma história muito emocionante e importante nessa luta?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS - ES) – Não, eu não me lembro de nenhuma história emocionante, mas reconheço que toda história é importante. Primeiro, não havia Bíblia, desculpe-me dizer. Nós estávamos escrevendo uma Carta Magna. Nós estávamos começando uma história para ser escrita.... Quer dizer, começando uma carta que regrava direitos individuais e coletivos para ser escrita toda ela com aquela síntese da sociedade brasileira que era o Congresso Constituinte. Ali tinha vários segmentos políticos.

Então, eles se agruparam num momento em que nós, a esquerda, nós agrupamos dentro da sistematização. Logo em seguida, veio a reação e criaram o Centrão. Nada foi objeto de negociação. As duras e verdadeiras batalhas que nós travamos dentro do Congresso foram a voto. Não havia negociação. Quem defendia a reforma agrária não encontrava campo, meio de campo, um local em que se pudesse acordar. Quem era contra a reforma era contra a reforma; quem era a favor da reforma era a favor.

Evidentemente que nós, na nossa posição de defendermos o direito social da terra, encontramos ali uma maneira de escrever isso, cedendo alguns espaços, sempre cedendo, porque eles tinham uma reação fortíssima a essas questões sociais, como o direito das mulheres e por aí afora, a igualdade, a tudo isso de que nós tratávamos, nós encontramos uma reação muito forte.

Então, ali não teve campo de negociação, não teve em momento nenhum. Sempre foi no voto. Os debates eram intensos, calorosos, cada um com o seu ponto de vista, entendendo que historicamente nós, da esquerda, tínhamos que avançar e saber até encontrar uma linguagem nesse avanço suficiente para dizer que a nossa Constituinte realmente era a concretização do processo democrático e um avanço na questão dos direitos individuais e coletivos.

ENTREVISTADORA – Eu queria que a senhora falasse agora um pouco da importância da Tribuna Livre aqui dentro.

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS - ES) – Nós chegamos num Congresso Constituinte. O que eu pensava sobre isso eu até já explicitei muito, falei muito. Eu me surpreendi ao ser candidata a Deputada Federal tendo que ser Parlamentar Constituinte. Então, a sociedade estava de fora disso. "Ah, eu vou votar no Antonio para ser Deputado Federal." "Mas ele vai escrever a Constituição?" "Mas como? Eu não autorizei isso!"

Então, a Tribuna Livre, depois de eleito o Congresso Constituinte, que foi essa mesclagem de Parlamentar e Parlamentar Constituinte, porque acabou a Constituição, a Carta foi escrita, foi sancionada, foi publicada. E o que aconteceu? O Parlamentar continuou no seu exercício do cotidiano da vida congressual. Poderia ter sido muito mais rica a nossa Carta se houvesse a representação orgânica da sociedade.

Então, criamos a Tribuna Livre, um projeto que nós fizemos e contra o qual tivemos muita resistência, porque a pergunta era: "Por que precisa de uma tribuna para o povo falar, se o povo está representado pelo seu Parlamentar?" Porque essa é o aperfeiçoamento da democracia. Nada mais nobre, mais rico e mais democrático do que ter uma tribuna. Para quem? Para que os segmentos da sociedade que não puderam estar representados no processo pudessem propor ao Congresso Constituinte. Foi o momento, eu diria, que foi mais emocionante, quando nós vimos professor, padre, economista, latifundiário, proprietário rural, todos que estavam ali dizendo: "Olha o que nós queremos, as nossas propostas são essas." Houve um momento até que um indígena, pela primeira vez, veio ao Congresso, assumiu e falou o que era a vida das tribos indígenas no País e o que se esperava que pudesse conter naquela Texto Constitucional.

Aí vieram as mulheres negras, como a Benedita, que veio para cá como a mulher da favela, a mulher negra, a mulher que encarnou o direito de todas as mulheres discriminadas na sociedade. E a outra parte, das mulheres pelos seus direitos.

Então, eu falo muito em mulher – vocês podem estar observando isso –, mas estou sempre colocando que a sociedade... O princípio resguardado... Escrever uma Constituição é que você possa promover, no âmbito da lei e da Carta Magna, a justiça. A justiça para todos os passos que um Texto Constitucional possa dirigir. Tratar do problema da terra, como tratar do problema da saúde, da aposentadoria, das relações conjugais, tudo isso...

O direito à propriedade foi um embate nesta Casa monstruoso. As pessoas diziam: "Olha, eles vão invadir a sua casa, quando pedirem que um pedaço de terra deva ser distribuído para que outros, aqueles que são da terra, possam construir o seu dia a dia, o seu ganha-pão".

Então, eu digo assim: já estamos em um momento de fazer uma revisão desta Carta ou uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Mas digo que agora temos que nos preparar para que a sociedade, representativamente, esteja aqui dentro, para que haja um equilíbrio de forças a favor de um Brasil mais justo e mais igualitário.

ENTREVISTADORA – Senadora, entrando nesse assunto das outras emendas que a senhora aprovou integralmente ou em parte, algumas são muito importantes. A proposta de anistia com todos os direitos para os afastados de cargos públicos por motivação política desde 46 foi aprovada integralmente?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS - ES) – Integralmente.

ENTREVISTADORA – A contribuição sindical descontada em folha; a manutenção do imposto sobre prestação de serviço nos Municípios.... Qual delas teve especial carinho da senhora? Ou foi tudo igual?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS - ES) – Foi mais ou menos igual, porque a questão da anistia aos servidores com participação política, que eram execrados da vida profissional ou administrativa do País em qualquer setor que estivesse, nesse momento se nós estávamos escrevendo uma Carta Magna, era necessário que a anistia fosse um instrumento legítimo da reintegração dessas pessoas à vida política e pública do País.

Você tirar de um cidadão completo o direito de ele ter as suas opiniões, então, a democracia estava ferida. Então, ela estava, como se diz, esquartejada, porque esse funcionário foi expurgado sem direito nenhum. Era como se ele fosse uma excrecência da sociedade.

Então, esse momento para mim foi importante quando a gente conseguiu abrir espaço para essa discussão e aprovação desse texto.

ENTREVISTADORA – A senhora conhece de orçamento muito bem, Senadora.

Existe uma análise de que o capítulo da ordem tributária ficou extenso, inclusive o Senador Serra, que foi constituinte com a senhora e foi Relator, tem essa visão; outras pessoas também.

Existe também uma permanente demanda por uma reforma tributária. A senhora acredita que esse seria um dos temas a serem tratados nesta revisão constitucional? A senhora acha necessário revisar os tributos; revisar a partilha de recursos entre União, Estados e Municípios e a correspondente responsabilidade nas despesas a serem assumidas?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS - ES) – Com certeza!

O Brasil tem um cacoete ou uma mania de fazer de conta que está fazendo aquilo que não está fazendo.

Esse modelo de economia do Governo é centralizador. Quase 70% do que se arrecada no Brasil ficam nas mãos do Governo Federal. E, na ponta, você vai ver, tanto na saúde quanto na educação e até na infraestrutura urbana, como é difícil a distribuição desses recursos. Se não fosse pela Lei Calmon, que estipulou um percentual obrigatório, não haveria nem essa quantidade de escolas que há. Ainda assim, é mal distribuído o recurso.

Então, a reforma tributária, todos aqueles que estão nos Governos estaduais lutam contra ela. Nós elegemos um governador de quatro em quatro anos, ou ele se reelege. E o que ele faz no primeiro momento, quando ele chega, é agir como o Governo Federal, que ele tanto contesta, na concentração de recurso. Ele faz a mesma coisa. Quando se repassa o dinheiro, uma parte desses percentuais da educação, da saúde, da infraestrutura e de tudo mais, para o Governo do Estado, o governador retém esse recurso, e isso não chega aos Municípios de jeito nenhum, haja vista o percentual que se aplica no Fundo de Participação dos Municípios e haja vista também, ainda se resguardando o direito dos governadores, o que se aplica nos Governos dos Estados.

Então, esse modelo centralizador não faz em nada a tal justiça social, tão importante. Há Municípios inteiros que ainda não têm água, que não têm estrada, que não têm escola. Isso é o rescaldo desse modelo centralizador de renda, em que todos pagam seus impostos, e tudo vem para o caixa da União, em que fica tudo ali, na mão da União. Então, na hora de repassar, há essa dificuldade.

Portanto, reforma tributária é palavra de ordem extremamente importante para o Brasil de hoje, como era há 30 anos.

ENTREVISTADORA – Quando a senhora acha que seria conveniente começar a falar, de verdade, em realizar essa revisão constitucional e a reforma tributária?

SENADORA ROSE DE FREITAS (PODEMOS - ES) – Eu não vou mais chamar de revisão constitucional. Acho que tem de haver uma nova Carta Magna. A nossa foi extremamente detalhada, e tem de haver uma compreensão disso, porque nós vínhamos de um regime de ditadura, com supressão de direitos. O governo ditatorial sequestra a participação da sociedade organizada em todos os níveis.

Eu acho que está na hora de fazer uma nova Carta constitucional. Isto acontece em muitos países: de 30 em 30 anos, de 20 em 20 anos, se revê o Texto Constitucional. O mundo muda, e a participação da sociedade aumenta. E a questão da distribuição de renda é fundamental. Tudo isso está amparado nos Textos Constitucionais.

Neste momento em que estamos falando, há intervenção em determinado Estado, o que suprime do Congresso o direito de fazer qualquer emenda à Constituição. E há várias a serem feitas. Ainda temos um texto de 30 anos atrás, que não está regulamentado. Isso prova que o Brasil precisa ser repassado a limpo com relação à Constituição, precisa ser atualizado também.

Eu acho que reforma tributária.... Você sempre deve ter ouvido falar – vocês todos – sobre reforma política. Há 20 anos, estávamos no meio da rua, dizendo: qual o principal modelo? Reforma política. Esse modelo político também não presta. É um modelo, inclusive, que traz algumas coisas que são armadilhas para o processo democrático, que contaminam o processo democrático.

Você vê a questão do segundo turno de uma eleição: todos saem para uma eleição, e, quando chega o segundo turno, começam as negociações. E aquele que está na frente e que negocia melhor a partilha do poder é quem tem mais chance de ganhar. Mas essa partilha de poder nem sempre é feita com os parâmetros da moralidade e da ética e, muitas vezes, compromete o governo que vai tomar posse, pois ele fica amarrado.

Então, o aperfeiçoamento desses mecanismos é fundamental até para que alguém que chegue lá na frente com uma proposta de reforma tributária possa efetivamente cumpri-la. Se ele adota outros compromissos, ele restringe o importante exercício da liberdade democrática no sentido da execução de um plano e de um projeto que a sociedade adotou através do voto expressivo e da aprovação daquele candidato.