Entrevista com Senadora Lídice da Mata - Bloco 2


ENTREVISTADORA – Vou lhe fazer mais uma pergunta a respeito de uma posição que a senhora teve na Constituinte: a senhora votou a favor do aborto. Por que, Senadora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Porque naquele momento histórico, eu acho que era um importante debate a ser assumido pela sociedade brasileira. Aliás, debate que ainda não se resolveu. Recentemente, na Argentina, o Congresso votou pela liberação do aborto. Mas é principalmente pela discussão do direito de a mulher analisar as condições de ter um filho. Ninguém defende aborto como contraceptivo. O que se tem que analisar, nas condições do Brasil, é: quantas mulheres morrem de aborto, por ano, neste País? Em que condições elas praticam aborto? De que maneira o Estado pode interferir para que isso não mais se realize?

Na verdade, eu atuei como negociadora para que nós mantivéssemos, no texto constituinte, aquilo que já era previsto antes, porque o que existiu foi um movimento pela liberação, onde nós analisamos, na nossa Bancada, que não tinha... Inclusive com muitos homens à frente desse movimento, homens constituintes. E nós analisamos, na nossa Bancada de mulheres, que deveríamos tomar a frente da negociação, porque achávamos que efetivamente seria derrotada esta bandeira na Constituinte, e eu fui uma daquelas que defendeu em plenário o acordo feito para que não mudássemos apenas os três casos de acordo que já eram permitidos na Constituição e que continuaram a sê-lo: no caso do risco da vida da mulher, no caso do risco da vida do nascituro e no caso de estupro.

Esses são três casos para os quais o debate constituinte foi muito rico. É uma pena... Talvez vocês possam retomar as imagens daquele momento, porque pessoas de diversas origens político-partidárias foram convalidar esse acordo e defendê-lo, para que nós mantivéssemos uma legislação que minimamente permitisse que as mulheres que estão nessa situação tivessem direito à interrupção da gravidez.

ENTREVISTADORA – Senadora, ela falou dos votos que a senhora deu. São muitos os que a senhora deu a favor e os que a senhora deu contra. Algum deles a senhora repetiria, tanto a favor como contra?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Ah, certamente.

ENTREVISTADORA – Por exemplo.

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Eu continuo votando contra a pena de morte, em qualquer circunstância que ela aparecer aqui. Eu votei a favor, por exemplo, da lei que impedia que o Brasil mantivesse relações internacionais com países que praticam apartheid, portanto, com países que claramente têm posição racista. Eu votei a favor de que o Brasil não mantivesse relações diplomáticas com esses países.

Então, eu manteria muitos votos meus da Constituinte e outros que eventualmente hoje já não se adequam à realidade. Eu teria que modificar.

ENTREVISTADORA – Estatização do sistema financeiro, por exemplo. Caberia hoje pensar nisso?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Se fosse outro sistema político, sim. No atual momento me parece bastante distante da nossa possibilidade de conquistar. Mas eu continuo, por exemplo, defendendo que o subsolo brasileiro é da Nação brasileira. O petróleo, todas as riquezas minerais deste País pertencem ao País e por ele devem ser exploradas, por ele devem ser controladas.

ENTREVISTADORA – A senhora votou pela limitação ao direito de propriedade. Como se aplicaria isso? E a senhora manteria essa posição hoje?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – A limitação do direito à propriedade já existe hoje na própria Constituição. A lei, a Constituição diz que a propriedade deve ter também uma função social. Então, na medida em que obrigatoriamente tenha uma função social, ela é tolerada, defendida. Na medida em que se afaste de qualquer função social, seja uma propriedade rural ou urbana improdutiva, sem nenhum tipo de uso, na necessidade, que o Estado possa requerer aquela terra para o uso coletivo, seja no campo, com assentamentos para trabalhadores, seja nas cidades, numa reforma urbana, para servir à sociedade e à comunidade.

ENTREVISTADORA – Vou entrar na medida provisória. Ela é apontada por muitos como um dos grandes traumas armados pela Constituição. Ela reduz a importância do Congresso ou torna o Presidente refém dos humores do Congresso. E a senhora tem uma história particular em relação à medida provisória.

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – A nossa Bancada, a Bancada do PCdoB à época, colocou uma emenda, na verdade um destaque para que nós retirássemos a expressão da medida provisória da Constituição brasileira. Por quê? Porque ela era uma figura típica, uma ferramenta típica do regime parlamentarista.

Nós votamos pelo parlamentarismo, mas à medida em que o parlamentarismo perdeu, quando era versus presidencialismo, eu apresentei um destaque para que ela fosse retirada. E o Ministro Jobim, à época Constituinte, que era o Relator da matéria, venceu. Nós tivemos pouquíssimos votos. Mas hoje eu tenho cada dia mais a certeza de que nós estávamos corretos porque a medida provisória hoje é um grande instrumento de diminuição do protagonismo do Poder Legislativo em nosso País.

ENTREVISTADORA – A Carta de 88 facilita ou dificulta e relação entre os três Poderes da República?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Olha, ela não foi feita para dificultar, ela foi feita para equilibrar. Agora, ela não pode ser responsável por tudo. Nós temos um sistema político complexo e muito próprio. Então, num parlamentarismo, está muito clara a função do parlamento, o exercício do poder pelo parlamento; no presidencialismo, essa relação entre o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário parece clara na lei, mas é difícil o equilíbrio no exercício do cotidiano. Um exemplo, no presidencialismo no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, o presidente não é eleito necessariamente tendo a bancada do seu partido como majoritária, é o que se costuma hoje chamar aqui de presidencialismo de coalizão. Então, ele é resultante de uma eleição onde o centro do voto está no presidente da República ou na presidente, na figura do Poder Executivo, e ele até transfere esses votos para o Poder Legislativo no período eleitoral, mas não necessariamente garante uma maioria imediata do seu partido naquela formação parlamentar.

Então, ele vai ser resultado de coligação que se faça no processo eleitoral ou, como tem sido a prática, posteriormente ao processo eleitoral. E aí, fala-se: "Então, em muitos momentos, o Poder Executivo fica refém do Poder Legislativo." Não fica refém, é que o Poder Executivo necessariamente não é um poder autoritário, muitas das questões têm que passar pelo poder do Congresso Nacional, é para isso que se elege. Em outros países, o Congresso Nacional exerce diretamente o poder do Executivo, ele dá o primeiro-ministro que governa o país e ele constitui os Ministérios. No presidencialismo, ele tem tarefas também muito importantes. É que, no fundo, o Brasil herdou uma herança de poderes autoritários, tem uma experiência muito grande de poderes autoritários. Nós temos pouco período de democracia.

Então, o Executivo senta na cadeira e começa a ter – digamos assim – saudade do tempo que não viveu, do tempo do autoritarismo, do tempo ditatorial nas diversas fases do Poder Executivo no Brasil e fica achando que o Poder Legislativo lhe dificulta. O poder é isso, não é que ele dificulte, o poder é essa integração de relações do Poder Legislativo com o Poder Executivo mais intensa e Poder Judiciário também num grau um pouco menor, mas também muito intensamente articulada.

ENTREVISTADORA – A senhora foi prefeita, está há muitos anos na política acompanhando o exercício do poder nos três âmbitos, naturalmente, e diria que existe um desequilíbrio na aplicação da verba da arrecadação tributária? Ou seja, na implementação das políticas de Estado, no atendimento das necessidades da sociedade, na questão tributária, na questão da distribuição da verba, existe um desequilíbrio, existe uma permanente demanda de reforma tributária, Senadora.

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Claro.

ENTREVISTADORA – Esse foi um problema criado pela Constituinte?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Eu não diria que foi criado pela Constituinte.

A Constituinte até avançou, porque deu poder aos Municípios brasileiros, deu novas atribuições, devolveu antigas atribuições aos Municípios brasileiros que passaram a ser sujeitos de direito como entes federativos, mas não lhes deu recursos.

Já existia esse problema? Já existia. Há muitos anos o poder arrecadatório do Brasil é concentrado em Brasília ou no Poder federal. Nos últimos anos, da Constituinte para cá, a Constituição, digamos assim, em relação aos Municípios, talvez tenha consolidado isso. É verdade que a Constituição brasileira não se dedicou a fazer uma ampla reforma tributária, ela fez uma média, pequena reforma tributária. Essa é uma necessidade dos dias atuais. E nós não podíamos fazer tudo, até porque algumas leis necessitam de uma participação maior dos Estados federados, de um debate mais profundo com os Estados federados. Há uma grande desigualdade econômica de desenvolvimento entre os Estados do Sul, Sudeste e os Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste no Brasil. Há vinte anos, isso decorria de uma história determinada, e esperávamos que a Constituição pudesse fazer com que as forças da economia rearrumassem isso. E isso não foi possível.

Então, é preciso fazer, sim, uma reforma tributária que possa dar mais capacidade de o Estado brasileiro distribuir a riqueza para os Estados e Municípios e para as regiões de maneira mais justa.

ENTREVISTADORA – Como prefeita, depois da Constituinte, foi especialmente difícil para a senhora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Não necessariamente por conta da Constituinte. Talvez a Constituinte tenha consolidado algumas questões na área administrativa. Eu tive a experiência, como prefeita, que nunca havia sido, de experimentar seus limites.

Por exemplo, a exigência de contratação por concurso público para todas as funções do Poder Executivo ao longo do tempo vem-se mostrando limitada. Não quer dizer que eu defenda que não haja concurso público para as contratações, mas é muito difícil você fazer concurso público para gari, por exemplo. O que difere? É uma função muito prática para o exercício de um concurso teórico. A partir daí se passou a exigir que o gari tivesse nível médio de ensino, de estudo.

Quando eu fui prefeita, por exemplo, nós descobrimos – e denunciamos – um número grande de falsos atestados de segundo grau dentro da prefeitura, justamente na limpeza urbana, na empresa de limpeza urbana. Ora, isso demonstrava duas coisas: que a lei não estava muito adequada à realidade social até do País e à realidade social daquela função.

Mas é claro que eu sou uma defensora dos concursos públicos, inclusive fiz concursos públicos para todas as funções quando fui prefeita, principalmente para aquelas que considero carreiras bem típicas do Estado, como Procuradoria do Município, médicos, educadores, auditores fiscais, enfim, para todos esses eu pude fazer concursos públicos.

ENTREVISTADORA – Senadora, a senhora abordou uma dificuldade advinda da lei na questão dos concursos públicos em relação à sua administração como prefeita. A senhora tem outros pontos que poderia destacar onde a lei mais atrapalhou do que ajudou, ou não?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Não; eu não acho que a lei mais atrapalhou do que ajudou. Eu acho que o Brasil precisava, naquele momento, de uma Constituição que desse o rumo de um Estado organizado, de um Estado profissionalizado. O grande problema é que nós ainda não conseguimos a profissionalização necessária e desejada para o Estado brasileiro. Esse é um ponto.

O outro diz respeito, digamos assim, a culturas que o Estado brasileiro sempre teve e que a Constituição, ao consolidar, por exemplo, a obrigatoriedade dos concursos públicos... Isso foi extraordinário no País, isso deu oportunidades a muita gente que não tinha a indicação dos políticos.

Foi duro você... Eu me lembro de que lá no Estado, na Bahia, num determinado momento, houve um escândalo porque, feito um concurso público, saiu no Diário Oficial, por descuido, a lista de indicações para contratação. Então, havia uma burla. Chegava-se a falar de burla em concursos como o exame vestibular à época. É possível hoje ainda existir? Talvez seja possível, mas é muito mais difícil, pois se consolidou uma ideia, uma cultura de que o servidor público entra através do concurso público.

Agora, há também, com 30 anos de Estado pós–Constituinte, momentos em que você vê a necessidade de contratações para determinadas funções que não estavam previstas ou que não existiam. Eu posso dizer uma: quando fui prefeita, inovei com um programa de assistência a crianças e adolescentes na minha cidade, onde criei a chamada Fundação Cidade Mãe, que atendia, de um lado, propiciando qualificação profissional e assistência, no contraturno da escola, a crianças de 7 a 17 anos de idade nos bairros populares; e, de outro, atendia meninos que estavam nas ruas. Assim, nós tínhamos, para atuar com esses meninos que estavam nas ruas, a necessidade de um profissional que não existia na carreira da prefeitura, que era o que nós chamávamos de "educadores de rua". Esses educadores eram um misto de assistentes sociais, ou não, de pessoas que foram preparadas especialmente para isso e de militantes da luta dos direitos da criança que se qualificaram para isso.

Ou seja, o Estado foi chamado a novas tarefas pós Constituinte, com os direitos que se abriram na Constituinte, foi chamado a ter ações outras que não necessariamente aquele velho Estado tinha condição de atender. Então, novas profissões vieram dali, e foi necessário fazer novos tipos de contratos que pudessem fazer com que isso existisse, com que esse funcionário existisse na prefeitura, e assim por diante. Como hoje também nós temos muita coisa com as novas tecnologias que não estão previstas qualificadamente nas carreiras pensadas antes.