Entrevista com Senadora Lídice da Mata - Bloco 1


ENTREVISTADORA – Em 9 de julho de 2018, registramos o depoimento da Senadora Lídice da Mata sobre a sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, parte do projeto História Oral, comemorativo dos 30 anos da Constituição.

Participam da gravação os servidores Virginia Malheiros, Tânia Fusco, Ricardo Movits, Rafael Silva e Amaral Neto.

Senadora, até a Constituinte de 1987/1988, só uma mulher havia participado da elaboração de um Texto Constitucional, a Carlota Pereira de Queiroz, em 1934. Em 1987, entre 166 candidatas, 26 foram as eleitas Deputadas Federais, representando 16 Estados. No seu caso, como foi abrir esse caminho na política até chegar à Constituinte?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Eu diria que foi um caminho até rápido, mas essa foi a característica de quase todas aquelas que foram eleitas naquele período. Nós saímos de uma ditadura militar. Então, os movimentos que integraram a luta contra a ditadura militar eram compostos de pessoas da sociedade civil como nós, como eu, que fui estudante, líder estudantil, eleita Vereadora em Salvador. No meu mandato de seis anos, no quarto ano, eu fui eleita Deputada Federal constituinte. Outras nunca tinham sido sequer candidatas a qualquer cargo público, não tinham sido vereadoras, não tinham sido deputadas. Elas vieram diretamente, se candidataram através do desejo de participar daquele momento, representando também o desejo das mulheres de ter a sua presença. Nós fizemos uma campanha intensa, uma campanha que foi marcada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no Brasil inteiro, que convocava: "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher." Assim, foram mobilizadas as forças nos Estados, e nós elegemos mulheres de 16 Estados com perfis diferenciados, com ideologias diversas, principalmente, eu diria, com uma busca única de representação da mulher.

ENTREVISTADORA – Senadora, com esse mix de várias ideologias, várias posições, como é que vocês conseguiram criar a Bancada do batom? E como é que vocês atuaram como Bancada do batom?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – A Bancada do batom surgiu como decorrência de duas coisas. O movimento de mulheres já existia antes da Constituinte, na luta contra a ditadura, e houve a nossa conquista, já realizada durante a campanha de Tancredo, que foi a conquista do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. O conselho foi para nós a união de todos os movimentos e a concentração de esforços. Algumas entidades feministas que foram responsáveis por esse processo de luta também conosco, com os partidos políticos, com os movimentos independentes chamados autônomos de mulheres, que se articulavam em torno do Conselho da Mulher, tiveram uma participação destacada na formação daquilo que se chamou a Bancada do batom. Foi a partir do conselho, com duas ou três entidades, que já foram organizadas para fomentar e para subsidiar a participação das mulheres na Constituinte, é que nós constituímos essa Bancada do batom.

ENTREVISTADORA – De muito sucesso, porque, segundo levantamento do próprio Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 80% das reivindicações das mulheres foram aprovadas, resultando em conquistas fundamentais. Eu posso citar algumas delas para a senhora lembrar?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Sim, claro.

ENTREVISTADORA – Igualdade jurídica; ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos; igualdade de direitos e responsabilidades na família; definição do princípio de não discriminação por sexo e raça, raça ou etnia; proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho; definição dos direitos no campo da reprodução. O que faltou ou, especificamente, o que a Bancada do batom não conseguiu assentar na Constituição?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Algumas coisas faltaram, é natural. A própria Bancada chamada Bancada do batom disse que 80% ou 90% do que nós trouxemos foram atendidos. Então, ficou uma parte que não foi atendida, é óbvio que ficaria. Nós consideramos que nós fomos plenamente vitoriosas e tivemos uma organização das mais destacadas dos movimentos sociais no Brasil. Por isso, celebram-se tanto a participação na Constituinte e as conquistas da Constituinte.

A própria ideia de uma Bancada do batom já foi uma reposta ao tom jocoso como nós fomos tratadas no processo eleitoral e no momento em que nós constituímos 26 Deputadas Federais constituintes. Foi a imprensa que nos caracterizou como Bancada do batom. E nós tomamos para nós, achamos bom e transformamos isso numa coisa positiva.

Eu cito, por exemplo, algo que nós não conquistamos e que só conquistamos muito recentemente: o direito dos empregados domésticos ou das empregadas domésticas, já que 90% dos empregados domésticos no Brasil são mulheres. Essa foi uma reivindicação desde o processo constituinte. E nós não conseguimos avançar. Conseguimos estabelecer apenas uma parte dos direitos, mas não o conjunto dos direitos que todos os trabalhadores têm no nosso País e que consolidaram através da Constituição de 1988. Então, nós consolidamos, só muito recentemente, a ideia de uma jornada de trabalho da empregada doméstica. Eu pessoalmente fui relatora da PEC do emprego doméstico aqui, no Senado Federal, quando consolidamos essa ideia – e foi uma votação muito rápida e vitoriosa no Senado Federal, que demonstrou a sua adesão ao progresso trabalhista do emprego doméstico no Brasil, quando nós votamos a isonomia de todos os direitos dos trabalhadores brasileiros, também estendendo-a às empregadas domésticas ou ao emprego doméstico no Brasil.

ENTREVISTADORA – A senhora citou um caso em que o direito da mulher está relacionado a uma questão econômica, que veio a se resolver agora, definitivamente, mas, naturalmente, grande parte dessas questões estava mais relacionada a uma questão cultural.

A senhora diria que as maiores dificuldades, as maiores negociações – o que demandou mais negociação durante a Constituinte, até na sensibilização da Bancada masculina, os colegas constituintes homens – estavam mais relacionadas a questões culturais, econômicas. Em que âmbito foi a maior luta, Senadora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Olha, eu não saberia dizer em qual especificamente, porque as questões da economia decorrem do racismo, ou, melhor dizendo, do machismo institucional no Brasil e do machismo que culturalmente nós carregamos.

Eu falei em racismo porque eu me lembrei da questão do emprego doméstico. O emprego doméstico não está vinculado apenas a uma questão cultural, ele está vinculado a uma questão racial. O emprego doméstico no Brasil dá continuidade a uma situação praticamente da escravidão da mulher negra no Brasil. E por isso nós tivemos tantas dificuldades para conseguir garantir a efetivação de direitos para essa categoria, que ainda hoje luta muito para efetivar aquilo que a lei já lhe deu.

No que diz respeito às mulheres no geral, as dificuldades foram de todas as ordens, desde o machismo que aparecia quando nós mulheres viemos para cá, e a imprensa começou a nos tratar de maneira singular, de maneira a destacar aspectos das características de cada uma. Então, uma era a musa da Constituinte; a outra usava um enfeite regional que a caracterizasse; a outra é porque tirava o sapato e, no momento de uma votação, mostravam uma Deputada que estivesse com um pé fora do sapato descansando, como dezenas de homens fazem, mas não sai no jornal, e aparecia foto no jornal.

Então, nós começamos a ser tratadas pela superfície. A presença da mulher era como se nós fôssemos...

ENTREVISTADORA – As esposas e ex-esposas...

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – ... como se nós fôssemos o enfeite da mesa da Constituinte. Existiam muitos casais constituintes, é verdade, Senadores constituintes com mulheres constituintes. Havia até um caso de dois Deputados, um casal de Deputados de Rondônia, se não me engano, os dois Deputados, ex-governador e sua esposa, os dois foram Deputados Federais constituintes.

Então, houve diversos arranjos familiares, digamos assim, mas principalmente a presença da mulher era exótica naquele momento constituinte. Nós não tínhamos banheiro no plenário, não tínhamos gabinetes com banheiros... Então, a nossa luta, a primeira luta da nossa presença feminina na Constituinte foi por coisas muito preliminares ao debate político.

Depois, nós nos reunimos para compor a nossa agenda. E, a partir daí, nós demos uma lição de competência, mas primeiro de assiduidade. A presença das mulheres nos debates constituintes é muito alta. A participação nos debates também é muito intensa, de maneira que o nosso resultado não foi consequência de uma concessão dos homens, mas foi uma conquista real da participação das mulheres Deputadas naquele momento histórico, no Brasil.

Naquele ato, nós participamos de todos os debates; dos debates que diziam respeito à organização familiar, que todos consideravam que eram "questões das mulheres" – entre aspas; ou da reprodução, os direitos reprodutivos; da saúde, da educação. Nós participamos também da discussão sobre reforma tributária, da discussão sobre economia, da discussão sobre propriedade da terra, da discussão sobre propriedade privada, da discussão da segurança nacional, do sistema político, eleitoral.

Então, nós não aceitamos que nos restringissem àquele ambiente que uma parte dos homens queriam, ou mesmo da sociedade conservadora queria, que era nos limitarmos a tratar do que os homens consideram que sejam as nossas questões.