Entrevista com Senador Edison Lobão - Bloco 2


ENTREVISTADORA – Senador, nós vamos voltar no tempo um pouco, mas a gente vai querer mais histórias; o senhor tem muitas histórias.

Como Vice-Líder do PDS, Líder do Governo, lá atrás, em 81, essa questão da Constituinte estava muito atrelada ao processo da redemocratização. Quando começou... Em seguida, começou a discussão e a demanda da esquerda por uma Constituinte.

À época, existia essa discussão, e o senhor, em 81, teve que liderar a derrota de uma emenda constitucional já convocando uma Assembleia Constituinte. Em 87 e em 88, foi diferente e houve a convocação.

Só para as pessoas entenderem a evolução do cenário político brasileiro e a evolução do processo da redemocratização, o que mudou de 81 para 87 e 88? Isso porque o senhor viveu muito intensamente, inclusive, o processo e criação do PFL e a união do PFL com o PMDB, formando a Aliança D.emocrática.

O que mudou de 81 para 87?

SENADOR EDISON LOBÃO (MDB - MA) – Em 79, tomou posse na Presidência da República o General Figueiredo, substituindo o Presidente Geisel. O Presidente Geisel era um democrata, ele queria a todo custo retomar o processo democrático no Brasil.

Teve dificuldades, mas ele começou e fez muitas coisas, entre as quais suspendeu a censura à imprensa que havia. Em vez de o Governo censurar de forma total, ele suspendeu a censura à imprensa.

Eu tive uma participação nisso. Representando os jornalistas, fui a ele – eu me tornara amigo dele – e pedi que ele suspendesse a censura. Ele dialogou bastante, ouviu os líderes, ouviu Petrônio Portella, ouviu Francelino Pereira. Enfim, chegou a essa conclusão e suspendeu a censura. Indicou Petrônio para ser Presidente do Senado e nomeou-o gestor do processo de distensão política a partir daquele momento.

Em seguida, o Presidente Geisel tomou uma decisão de extrema coragem, porque os militares que o levaram ao poder não queriam.

Ele revogou o Ato Institucional nº 5, que era exatamente aquele que tornava o regime quase que ditatorial. Naquela época, o País convivia com duas bases legislativas: uma, a Constituição e as leis, chamadas democráticas; e a outra, os atos institucionais, atos adicionais e decretos revolucionários que suplantavam a ordem democrática legal.

O Geisel entendeu que não poderia ir adiante se não revogasse, portanto, a espinha dorsal do regime revolucionário, que eram os atos de força, os atos de arbítrio do poder. Ao escolher o Figueiredo seu sucessor, fez com que Figueiredo assumisse o compromisso de manter o que havia sido feito por ele em matéria de abertura democrática e avançar bastante a partir daí. Figueiredo assumiu esse compromisso e manteve a posição.

Com um ponto inicial até acertado com Geisel, Figueiredo nomeou Petrônio Portella, que havia sido, portanto, como disse, o coordenador da distensão, Ministro da Justiça, para que elaborasse as demais leis, a fim de compor um quadro de suplantação do regime revolucionário. A primeira coisa que Petrônio fez foi elaborar a Lei da Anistia política: anistiou todo mundo. Figueiredo assinou e todos foram anistiados. Aí, Brizola pôde voltar ao Brasil e todos aqueles que haviam feito..., que estavam em posição oposta à revolução.

Bem, combinado com Petrônio, eu apresentei um projeto de emenda constitucional que teve grande repercussão. A imprensa falava todo dia desse projeto, que era o de restauração das eleições diretas de Governadores e Senadores da República. Era um passo inicial para que se chegasse às eleições gerais, diretas, pelo povo. Começava, portanto, com Governador e com Senador, que eram então eleitos indiretamente pelas assembleias legislativas e indicados autonomamente pelo Presidente da República, mais ou menos uma cópia melhorada do regime de Getúlio Vargas. O Getúlio nomeava interventores em todos os Estados, que, por sua vez, nomeavam interventores nos Municípios. Ou seja, ditadura total.

A revolução fez diferente: submeteu os Governadores a uma eleição indireta pela Assembleia, e o Presidente da República a uma eleição também indireta através de Senadores e Deputados, e, mais tarde, foi ampliado esse colégio eleitoral para incluir representações nas assembleias legislativas e até nas câmaras de vereadores.

Bem, a sucessão do Figueiredo se deu através da eleição do Presidente Tancredo Neves, com o Sarney Vice. Tancredo morre, Sarney assume e propõe, aí, sim, uma Assembleia Nacional Constituinte para que, através dela, fosse construída uma nova Constituição, que seria a sétima Constituição.

O Brasil tem sete Constituições, além de, diria, Constituições intermediárias. (1824, 1891,1934,1946,1967,1988). A primeira delas foi a Constituição de 1824, ainda no Império, que substituiu as ordenações portuguesas e outros éditos imperiais. A Constituição de 1824 foi a primeira. Portanto, ela substituiu essas ordenações portuguesas e passou a ter vida própria, do ponto de vista da estrutura legal brasileira. A Constituição de 1946 foi aquela que veio para vencer, para substituir o Estado Novo de Getúlio Vargas que, como disse, era uma ditadura total.

Mas as Constituições do Brasil têm esse vezo, que não é bom, de serem o contraponto, o oposto, daquele Estado em que se estava vivendo. Não se fazia um meio termo, nenhuma adaptação. Saímos, portanto, de uma ditadura total, de Getúlio Vargas, para a Constituição de 1946, que era violentamente liberal, excessivamente liberal.

Bem, assim se deu também com a Constituição de 1987/1988. Ela veio para substituir os atos institucionais e seus efeitos. A Constituição de 1988 foi submetida a pressões populares e violentas. Os Constituintes não conseguiam dar um passo, no prédio do Congresso Nacional, porque esbarravam em comissões e comissões de sindicatos, de associações, de pessoas que tinham interesses. Essas pessoas foram tendo seus interesses catalogados, que foram sendo incluídos na Constituição ao longo do tempo.

Eu me recordo de que era Deputado Constituinte – esse é um episódio interessante – o Dr. Roberto Campos. Roberto Campos, que foi um dos maiores economistas que o Brasil já conheceu, diplomata ilustre, embaixador em vários países, na Inglaterra, nos Estados Unidos, homem de grande cultura, de grandes conhecimentos. Quando veio a Revolução de 1964, o Brasil era um país artesanal: um território grande, uma população que não era tão grande, mas a economia destroçada. Roberto Campos assumiu o Ministério do Planejamento com Otávio Gouveia de Bulhões, no Ministério da Fazenda. Isso no Governo do Presidente Castello Branco. Em pouquíssimo tempo, os dois, grandes economistas, corrigiram a economia brasileira e colocaram o Brasil no caminho do progresso e de uma expansão econômica vigorosa. Foi graças a esse período que o Brasil passou a ter um crescimento de 12% ao ano, crescimento econômico poucas vezes visto no mundo, a não ser recentemente, na China. Só o Brasil alcançou esse nível de crescimento, graças à política implantada pelo Presidente Castello Branco através de seus Ministros do Planejamento e da Economia.

Para fazer um parêntese, nós falamos, ainda há pouco, sobre reforma agrária. A reforma agrária foi uma reivindicação da Constituição de 1946. Porém, ela exigia que uma lei a ser depois votada pelo Congresso Nacional, uma lei complementar, traçasse os parâmetros dessa reforma agrária.

E nenhum Presidente conseguiu fazê-la, nem o Presidente Getúlio Vargas, quando voltou já eleito no outro sistema de governo, em outro regime de governo, nem o Presidente Juscelino Kubitschek, nem o Presidente Jânio Quadros, nem o Presidente João Goulart, período no qual se falou abusivamente em reforma de base, tendo a reforma agrária como a principal delas. Foi preciso chegar a revolução, para que o Presidente Castello Branco, de novo com Roberto Campos, fizesse a lei da reforma agrária.

Pareceu um contrassenso a revolução fazendo uma lei de reforma agrária, que foi boa. Boa lei, funcionou muito bem. E muito do que foi feito naquela época ainda está no corpo legal desse diploma brasileiro.

Pois bem, aí, então, começamos os trabalhos da Constituinte, liderados pelo Dr. Ulysses Guimarães, que era, a um só tempo, Presidente do PMDB, Presidente da Câmara, Presidente da Constituinte e frequentemente Presidente do Brasil também, porque, como Presidente da Câmara, ele se tornou Vice do Presidente Sarney. Quando Sarney viajava para o exterior, ele assumia a Presidência da República.

Ulysses Guimarães foi tomado de uma paixão santa pela Constituição que haveria de ser feita. E ele levou a cabo a sua empreitada. Ele criou uma expressão para a Constituição que haveria de chegar, que é a Constituição Cidadã. Ali deveriam estar os principais desejos e aspirações do povo brasileiro.

Mas Ulysses não imaginava que essa Constituição pudesse de tal modo ser o resultado das pressões populares, ao ponto de deformá-la, de desfazer aquilo que fora o seu pensamento inicial, que era fazer uma Constituição liberal, democrática, mas não sem as amarras que uma Constituição duradoura deve ter.

Nesse período, Roberto Campos, que tinha sido Senador por Mato Grosso, já se tornara Deputado Federal constituinte pelo Rio de Janeiro. Ele assistia perplexo às votações que fazíamos na Assembleia Nacional Constituinte, horrorizado com o que se fazia ali, porque a Constituição acabaria por resultar, segundo ele, num calendário de direitos sem deveres.

O que ele falou aconteceu, basta que se leia o preâmbulo da Constituição, que se pode verificar, é curto, o quanto se fala em direitos sem obrigações. Diz aqui o preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Não há uma palavra sobre deveres, e, sim, sobre direitos de toda natureza.

E o Roberto Campos tinha tremores de raiva quando via essas coisas por julgá-las inúteis. Certa vez, ele chegou para mim e disse assim: "Lobão, eu já me cansei de advertir os constituintes dos equívocos que eles estão cometendo. Então, vamos deixar fazerem o pior possível porque será o caminho mais curto para, em seguida, se promover a reforma dessa Constituição."

Em dado momento ele dizia para mim: "Opa, Lobão, surgiu uma coisa nova. Há um artigo da Constituição que compensa tudo. Eu estou inteiramente de acordo com ele." E eu disse: "Qual é?" Ele disse: "São tantos os direitos que os constituintes estão pondo na Constituição, que, afinal, apareceu um que é bom." Eu disse: "Qual é?" Ele disse: "É um que diz assim: 'Todos têm o direito à vida'". Isso quer dizer que eu não vou morrer mais, nunca mais. Eu tenho o direito à vida.

Ele queria com isso dizer, quase que anarquizar, o calendário de direitos que se pôs na Constituição. E foi uma Constituição muito longa, com 245 artigos no seu corpo, chamado definitivo, e mais cem artigos no capítulo das disposições transitórias, além de centenas, milhares de parágrafos e incisos amarrando tudo.

A Constituição americana foi elaborada com nove ou dez artigos, recebeu umas poucas emendas e tem duzentos anos. A nossa mais parece um calendário de legislação ordinária.

Tanto foi assim que ao final da Constituinte, o Constituinte tomou um choque e resolveu incluir um artigo no capítulo das disposições transitórias, dizendo que dentro de cinco anos a Constituição deveria começar a ser reformulada, revista, para tirar os excessos e acrescentar alguma coisa útil e nova.

Como resultado dessa possibilidade é que ao longo desse tempo, ou seja, 25 anos, a Constituição já recebeu cem emendas, cada qual com seus artigos, parágrafos e incisos, algumas das emendas acrescentando mais direitos à sociedade brasileira. Ninguém é contra direitos, ninguém é contra defender o direito social, mas nada funciona assim. É preciso ter o direito e o dever. Só o direito, ele se torna inútil por impraticável.

ENTREVISTADORA – O senhor defende, então, uma revisão constitucional completa da Constituição ou o senhor acha que é mais seguro fazer alterações pontuais naqueles artigos que causam mais prejuízo ao País, naquelas questões tributárias, por exemplo, que fazem com que os Estados e Municípios demandem tanto a reforma tributária, questões mais prementes?

SENADOR EDISON LOBÃO (MDB - MA) – Eu acho que teria que haver soluções pontuais a serem adotadas porque fazer uma nova Constituinte significaria repetir todo o drama da Constituição anterior.

Veja, o Presidente Michel Temer propôs duas reformas: a reforma trabalhista e a reforma da Previdência. A trabalhista foi feita pela metade, não foi a que ele propôs, mas já se constituiu em um avanço grande a reforma trabalhista. Chegamos a um ponto, sem ela, em que o País estava ficando inviável. A relação entre capital e trabalho estava se tornando gravemente inviável. Muitos empresários do exterior alegavam que não podiam vir para o Brasil investir seus recursos em razão de uma legislação trabalhista que os impedia de administrar o seu capital.

A reforma da Previdência, que é também urgente e indispensável, não pôde ser feita até hoje em razão de quê? Das pressões populares e, toda vez que se tem que realizar uma obra sob pressão, ela não pode dar certo.

Como é que foi feita a Constituição americana? Os constituintes que eram poucos se reuniram em uma sala apenas eles – ninguém mais entrava ali –, eles estavam proibidos de dizer lá fora aquilo que faziam lá dentro e resolveram escrever uma Constituição que está, até hoje, como eu disse, vigendo, faz 200 anos. Essa é uma obra duradoura.

Mas ao longo desse tempo todo, de 1824 até aqui, além das emendas constitucionais que foram introduzidas nas diferentes Constituições, houve também a emenda constitucional que foi praticamente uma Constituição inteira e que não é contabilizada como uma Constituição. Foi aquela na qual se colocou um artigo permitindo ao presidente da República a revogação do AI-5 e dos demais atos institucionais que ainda estavam em vigor.

Essa emenda foi aprovada por uma comissão de juristas presidida pelo Presidente Costa e Silva com um debate amplo, pareceu bem ajustada. Mas o Presidente Costa e Silva não pôde editá-la porque adoeceu e morreu. Ela foi editada pelos ministros militares com alterações profundas que praticamente a tornaram inútil.