Entrevista com Senador Cássio Cunha Lima - Bloco 5


ENTREVISTADORA – Senador, o senhor disse que, por exemplo, o seu voto no presidencialismo o senhor repensaria. Disse que, por tudo o que o senhor viveu, o senhor o repensaria. Há algum voto que o senhor não repetiria? Pode lembrar a favor do quê?

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Não, eu acho o seguinte: a Constituição – o Dr. Ulysses dizia isto – não é perfeita. Por não se autointitular perfeita, ela se autopermite reformas. E já foram centenas de emendas reformadas. Eu acho que é preciso trazer a Constituição para os tempos atuais. É isto que a sociedade exige: você ter uma visão contemporânea, moderna, do que está acontecendo.

Dois textos da Constituição contaram com meu voto e não contariam com ele mais, como a prisão só com trânsito em julgado. Há hoje a discussão no Supremo. Eu colocaria na Constituição, para esclarecer isso, que é possível, sim, haver prisão com decisão em segunda instância. E, segundo, é o foro privilegiado. Inclusive, apresentei aqui, no Senado, uma proposta de emenda à Constituição. O meu pai, o Senador Ronaldo Cunha Lima, também tinha apresentado uma emenda à Constituição pondo fim ao foto privilegiado.

Naquele instante, a ideia do foro privilegiado era, de fato, para proteger as prerrogativas e as imunidades parlamentares quando o Parlamentar era vítima. Só que o tempo foi passando, e começamos a perceber que muitos Parlamentares, ao invés de serem vítimas, passaram a ser réus, e, na condição de réus, o foro privilegiado não pode protegê-los, não pode ser um manto que leve, inclusive, em alguns casos, à impunidade.

Então, se eu fosse rever alguns votos, trazendo para o momento atual, modernizando e fazendo uma contemporização da Constituição, em uma visão mais contemporânea, seria o fim do foro privilegiado e a possibilidade, sim, de prisão em segundo grau.

ENTREVISTADORA – Senador, o senhor mudaria, por exemplo, o seu voto pela jornada de seis horas ou das 40 horas semanais? O senhor votou a favor.

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – É, votei a favor, eu me lembro. Eu acho que, naquele instante, naquele momento, havia a necessidade de se resgatar uma série de direitos e de conquistas que estavam sendo almejados sobretudo pelos trabalhadores, e o mundo vem se transformando. Não há como você, de forma estanque e permanente, olhar a Constituição de 30 anos e tentar reproduzir suas posições nesse tempo depois, porque o mundo mudou, o Brasil se transformou, e é por isso que é possível rever a Constituição.

Nós temos uma Constituição tão detalhada, essa tal Constituição analítica, que ela precisa ser reformada! Eu acho que nós já estamos com mais de cem emendas. Eu não sei exatamente o número de memória, mas, salvo engano, recentemente, ultrapassamos 110 emendas à Constituição.

ENTREVISTADORA – Sem contar as que estão para ser votadas.

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Sem contar a quantidade de propostas de modificação que há.

Então, você tem de ser contemporâneo. É por isso que eu fiz referência à possibilidade de prisão em segundo grau e ao fim do foro privilegiado. Essa é uma postura contemporânea. Há 30 anos, isso não era uma demanda, porque geralmente esses institutos eram para proteger Parlamentares que eram vítimas de perseguição da ditadura militar, sobretudo. Era a salvaguarda das prerrogativas dos Parlamentares que eram vítimas de perseguição política. Daí por que esse instituto. Hoje, não. Hoje, infelizmente, na realidade que vivemos, ao invés de vítimas, muitos Parlamentares são réus e não podem ter essa distinção em relação ao cidadão comum.

Então, votei agora, recentemente, algumas mudanças na Constituição. Vou estar aberto para analisar várias delas, mas, em relação à jornada de trabalho especificamente, que você apresenta, confesso que eu não tenho uma visão firmada sobre isso, mas há uma tendência no mundo inteiro para que essas jornadas sejam reduzidas, para que você possa preservar emprego. Quem emprega não gosta muito da ideia, mas esse é o desafio do mundo na economia 4K, com as transformações tecnológicas que nós estamos vivendo. Como gerar empregos? Como permitir que as pessoas trabalhem? Com inteligência artificial, com automoção, com robótica, o grande desafio da humanidade será o emprego nos próximos tempos, e aí será, como já acontece em alguns países, uma discussão imprescindível a diminuição de jornada de trabalho, para que as pessoas possam continuar trabalhando.

ENTREVISTADORA – O senhor acha que, no próximo Congresso, seria possível ou conveniente politicamente começar a pensar em uma revisão constitucional, ou o senhor acha que é mais conveniente fazer reformas por meio de emendas pontuais?

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Eu acho o modelo das reformas pontuais ainda o melhor. Algumas pessoas fazem propostas de uma nova Constituinte – eu, a princípio, sou contra – ou, então, de uma Constituinte específica para determinados temas – aí se poderia pensar isso –, para que você possa reformar apenas determinados assuntos, sobretudo reforma tributária, reforma política. Essas duas reformas vêm sendo adiadas permanentemente por uma questão temporal. Toda vez que se tenta aplicar mudanças profundas no sistema tributário e no sistema político-eleitoral, você impacta com interesses que estão posicionados naquele instante. É por isso que tenho defendido sempre que qualquer reforma, tanto política, como tributária, tem de ter uma projeção de pelo menos 12 anos na frente. "Ah, mas é muito tempo!" Se tivéssemos feito isso lá atrás, nós já teríamos cumprido esse prazo com folga.

O que quero dizer é o seguinte: na reforma tributária, ninguém quer ganhar, ninguém quer perder. A sociedade não admite, com toda a razão, haver aumento de impostos. Então, há de se fazer uma nova pactuação, para ser aplicada daqui a 12 anos, quando não vai haver ninguém mais no exercício da Presidência, dos governos estaduais, das prefeituras, defendendo legitimamente em causa própria. É legítimo que isso aconteça. No sistema eleitoral, é a mesma coisa. Qualquer mudança que você faça, ou qualquer proposta que se apresenta ao Congresso, cada Parlamentar vai analisar sob a sua ótica, se é ou não interessante para a sua reeleição. É humano isso. E aí você não consegue criar um sistema ideal nunca.

Então, o sistema ideal é aquele que você possa fazer com que ele seja implementado daqui a 12 anos. Você tira o elemento de casuísmo, você tira o componente da sobrevivência política ou da sobrevivência financeira de Estados e de Municípios. Enquanto isso não for feito, nós vamos continuar, a meu ver, diante dessa impossibilidade prática de fazer essas reformas de que o País precisa.

ENTREVISTADORA – Eu queria apresentar só mais uma questão: tirando o monstrengo dos 12% de juros anuais, há algum outro monstrengo da Constituinte que precisa ser tirado ou mudado?

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Olha, sim! De pronto, o grande monstrengo é a fixação na Constituição da taxa de juros. Essa foi uma luta que foi discutida, travada. Havia a ilusão de que, pela Constituição, você poderia tabelar juros. Eu acho que isso terminou criando outro monstrengo: a contribuição. A contribuição se fez um monstrengo pela interpretação que foi dada. A contribuição não foi criada para que ela ficasse sob o controle exclusivo do Governo Federal, da União, como acontece hoje. Esse foi um drible que foi feito. É um verdadeiro truque contra o Pacto Federativo, porque, se há uma Federação, você tem de compartilhar tudo que é arrecadado. E aí se encontrou um mecanismo de dar uma interpretação em que as contribuições ficam exclusivamente com o Governo Federal, o que afronta o princípio federativo da nossa Constituição.

É isso que eu disse ao longo deste nosso depoimento. A Constituição tem um grande paradoxo: ela se apresenta como a Constituição de uma República federativa, mas funciona como um Estado unitário muitas vezes. O Estado é unitário em várias das suas ações. É aquilo que eu disse: nada mais unitário do que um Sistema Único de Saúde; nada mais unitário do que um Sistema Único de Assistência Social. Não estou criticando o modelo; estou criticando a incoerência. Podemos ser um Estado unitário, não há problema nenhum. Há grandes nações no mundo que são países unitários. Agora, se nos propomos a ser uma Federação, que sejamos uma Federação, onde os entes federados tenham autonomia. A gente reproduz um modelo, sobretudo americano, e a nossa trajetória de formação histórica é completamente diferente da dos Estados Unidos. A referência do povo americano se dá a partir dos seus próprios Estados. Aqui, tirando talvez Minas Gerais e Rio Grande do Sul, as pessoas se localizam como cidadãos pela sua cidade. Geralmente, a pessoa diz: "Eu sou de Salvador." O baiano também tem um pouco isso, o exemplo, talvez, não seja bom. Mas as pessoas do Brasil se referenciam pelas suas cidades, onde nasceram. Nos Estados Unidos, não, as pessoas se referenciam pelos seus Estados, porque os Estados são a origem da formação dos Estados Unidos e têm autonomia de fato, sob vários aspectos. No Brasil, o arranjo foi inverso, foi um arranjo federativo de cima para baixo. Enquanto, na trajetória americana, Estados que tinham autonomia de fato resolveram se congregar numa União, cada um cedendo pequenos espaços de poder, formando a União, aqui ocorre o contrário: aqui, a União se forma e transfere para o Estado alguns pequenos poderes. E aí se gera um modelo equivocado. O leiaute do Brasil está errado. Não é possível que um Brasil do nosso tamanho, com o nosso potencial, com a nossa grandeza, não consiga resolver problemas básicos como os que nós enfrentamos ainda hoje.

É claro que há o problema gravíssimo da corrupção. Essa corrupção tem de ser dura e severamente combatida. Mas não é só a corrupção única e exclusivamente a culpada pelo fracasso do Estado brasileiro. É porque é um Estado muito grande, um Estado que se apresenta como salvador da vida alheia. E Estado nenhum vai salvar a vida das pessoas. O que o Estado precisa é funcionar bem naquilo que é essencial, para dar oportunidades iguais às pessoas, para que, a partir dessas oportunidades iguais, sobretudo em educação, no sistema de saúde e na segurança coletiva, cada um possa tocar sua vida, cada um possa definir o seu destino, ser dono da sua própria existência.

Aqui, há a cultura, que é incutida desde cedo na cabeça das pessoas, de que é o Governo que vai resolver parte dos nossos problemas, que é o Estado que tem o poder de interferir nas nossas vidas. Esse modelo está errado, esse modelo não funciona, esse modelo custa caro, é um modelo ineficiente, é um modelo corrupto, é um modelo que precisa ser mudado. E parte dele está na nossa Constituição.

ENTREVISTADORA – Trinta anos se passaram, Senador. O senhor diria que ter participado da Constituinte foi uma experiência que marcou e mudou sua vida como Parlamentar, como político e como cidadão?

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Ah, sem dúvida! É uma honra enorme você ter essa oportunidade, ainda mais com a minha idade! Eu tinha apenas 24 anos de idade. Ser Constituinte é uma experiência fantástica. Eu era, talvez, se não o único, um dos poucos Constituintes que ainda era estudante universitário. Eu me lembro de que tive dificuldade de conciliar o trabalho da Constituinte com o curso de Direito que eu fazia na UnB. Houve um momento em que eu tive de trancar o curso, porque ou eu optava por frequentar as aulas ou por participar dos debates das comissões, que aconteciam pela manhã. As aulas na UnB eram no período diurno. Aí ou eu ia para a aula na universidade, para concluir meu curso de Direito, ou fazia meu trabalho de Deputado. Obviamente, chegou um momento em que ficou inconciliável. Optei pelo trabalho público, pela responsabilidade pública que era o meu mandato. Foi uma honra enorme, um aprendizado que não tem preço, vale mais que um doutorado, vale mais do que qualquer tipo de experiência.

Erros, houve muitos; acertos, outros. Havia uma perspectiva de esperança no Brasil. O Brasil, de fato, avançou em vários aspectos. Vivemos hoje uma quadra de muita dificuldade, muito mais por erros de condução política e governamental do que propriamente da Constituição. Pelo contrário, se tivéssemos observado os princípios que ali estão defendidos claramente, sobretudo os princípios da Administração Pública, da moralidade, da impessoalidade, do planejamento, nada do que aconteceu teria acontecido.

A Constituição prevê os princípios da Administração Pública. Um desses princípios é a moralidade, e o que fizeram com o Brasil nesses últimos anos é algo imoral, indecente. Assaltaram o povo brasileiro. Montaram uma organização criminosa para construir um projeto de poder que custou caríssimo à nossa sociedade e que levou a sociedade a um grau de confronto e de intolerância de que nós não tínhamos precedente em nossa história.

Então, se o "livrinho", como dizia o Dr. Ulysses, tivesse sido respeitado nesse princípio da Administração Pública e da moralidade, nós não estaríamos vivendo essa dificuldade.

Perdeu-se a oportunidade fantástica de um capital político poderosíssimo! Aí eu me refiro claramente ao capital político que nasceu das urnas com a eleição do Presidente Lula. E o Presidente Lula cometeu a falha de, em vez de usar esse capital político para criar uma nova base de relação com o Congresso, de relação política com o País, desperdiçar esse respaldo popular. E aprofundou, mergulhou ainda mais fundo na prática mais velha, clientelista, patrimonialista, do toma lá, dá cá, da corrupção, e, mais do que isso, tentou criar uma organização criminosa para perpetuar um projeto de poder.

O preço que o Brasil está pagando em torno disso é altíssimo, é muito alto. Mas o Brasil é maior do que tudo isso. Vai se recuperar, vai se recompor e vai compreender que Estado nenhum vai resolver a vida das pessoas. São as pessoas que resolvem as suas próprias vidas, desde que o Estado não atrapalhe muito. Esse Estado precisa ser mais eficiente, menos caro, sem corrupção, com um peso menor nas costas de quem paga imposto. Ninguém aguenta mais pagar essa máquina pública sobrecarregada de privilégios, de vantagens indevidas, de gastos exagerados. O Brasil botou a língua de fora, ninguém aguenta mais carregar esse peso. É essa transformação que o Brasil poderá ter para aprumar o passo e se encontrar com um futuro melhor, que é o que todos nós queremos.

ENTREVISTADORA – Muito bem! Muito obrigada, Senador.

ENTREVISTADORA – Obrigada, Senador.

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Eu é que agradeço.

Obrigado.