Entrevista com Ministro Nelson Jobim - Bloco 3


ENTREVISTADORA – Então, Ministro, o senhor esteve na linha de frente dessa organização dos trabalhos desde o início. O senhor participou como Sub-Relator e braço direito do Ministro Bernardo Cabral, então Relator-Geral, desde aquela organização dos textos que vieram das oito comissões; depois, na sistematização daquelas primeiras propostas; e o senhor foi até o final, até o último projeto e até o texto final votado pela comissão.

MINISTRO NELSON JOBIM– No Plenário, havia quatro Sub-Relatores. Eram o Fernando Henrique, eu, o que foi Governador de Mato Grosso...

ENTREVISTADORA – Wilson Martins.

MINISTRO NELSON JOBIM– ... Wilson Martins, e aquele do Espírito Santo.

ENTREVISTADORA – José Ignácio Ferreira.

MINISTRO NELSON JOBIM– Esses quatro, digamos, eram os Sub-Relatores, porque houve também – eu me esqueci de lhe contar – uma disputa no PMDB, porque a relatoria cabia ao PMDB. O Ulysses pretendia que o Fernando Henrique fosse o Relator, e aí tivemos três candidatos dentro da Bancada: o Bernardo Cabral era um, o Fernando Henrique era outro e o Pimenta da Veiga era o outro candidato – o Pimenta era Líder do Partido na Câmara. E, nessa disputa, ganhou o Fernando Henrique, aliás, ganhou o Bernardo em segundo turno, porque, no primeiro turno, os dois mais votados foram o Bernardo e o Pimenta, e o Fernando saiu fora. Quando o Fernando saiu fora, não foi eleito, o PMDB do Senado despejou seus votos no Bernardo Cabral e elegeu o Bernardo. E aí o Bernardo, dentro da composição política daquele momento, convidou nós quatro para sermos, digamos, os assessores.

Na verdade, a minha posição lá não era uma posição com poder decisório político. Eu era mais um operacional, eu era um amanuense, eu escrevia. Eu não tinha força política, eu não tinha história política no Partido para ter uma voz aqui. Participava-se muito na casa do Dr. Ulysses, mas sempre era mais não para ser ouvido no sentido político, mas para ser ouvido como escrever, como redigir, aquela coisa. E aí ficamos os quatro até o momento em que nós fomos trabalhar no Banco do Brasil. O Bernardo resolveu sair porque, no início, trabalhava-se no Senado, junto ao Prodasen, porque, na época, havia aquele monstro, que era um computador de um tamanho...  O que hoje (caberia) num laptop... Mas o fato é que não havia cópia nem nada.  Então, você trabalhava lá com aquelas folhas de papel, aquelas impressoras de gráfica.

Depois o Bernardo resolveu ir para o Banco do Brasil, e a coisa mudou. Mudou, nós acabamos saindo dessa sub-relatora com o Bernardo. O Bernardo chamou então.... Naquele momento entrou o Fogaça e o ex-Governador de Santa Catarina, acho que o....   Não me lembro do nome. O Governador de Santa Catarina era um sujeito extraordinário. Ah, era o Antônio Carlos Konder Reis. Era o Antônio Carlos Konder Reis, e não lembro mais quem eram os outros, mas principalmente eram os dois. Então, o Antônio Carlos e os dois viraram. Aí, naquele momento, eu fui convidado pelo Euclides Scalco, que era o 1º Vice-Líder do PMDB, para ir para a Liderança do PMDB.

Aí eu participava, trabalhava como Vice-Líder do PMDB. E aí, dentro da Vice-Liderança, quando o Mário saiu do PMDB e entrou no PSDB, o Britto seria naturalmente o Líder para substituir o Mário, mas o Britto resolver ser candidato a Prefeito de Porto Alegre, isso em 1988. O Britto saiu e foi candidato a prefeito, e aí sobrou para mim. Eu virei Líder do PMDB.

ENTREVISTADORA – Mas o senhor foi o substituto na elaboração do Regimento Interno, o senhor foi o suplente da Subcomissão do Poder Legislativo, o senhor foi suplente da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo, o senhor foi titular da Comissão de Sistematização, o senhor foi Relator Adjunto da Comissão de Sistematização e o senhor foi Relator da Reforma Constitucional, depois, em 1993. Mas, com isso, eu quero dizer o seguinte: o senhor esteve sempre no centro, ali, das decisões...

MINISTRO NELSON JOBIM– Mas não significava que a minha voz fosse uma voz que pudesse induzir decisões.

ENTREVISTADORA – O senhor está sendo modesto. (Risos.)

MINISTRO NELSON JOBIM– Eu sempre disse que eu fui um amanuense: eles resolviam lá e eu, então, redigia.

ENTREVISTADORA – Bom, vamos considerar que o senhor está sendo modesto.

Eu estou colocando essa questão pelo seguinte: o que eu estou querendo colocar? Que o senhor sempre esteve no centro das decisões. O senhor também participava de todos cafés da manhã do Dr. Ulysses. A gente sabia que o Dr. Ulysses não fazia café da manhã sem a sua presença.

ENTREVISTADORA – Mas o senhor sempre estava lá.

O que eu estou querendo colocar para o senhor? O senhor conviveu muito de perto, sabendo dos principais assuntos em discussão; o senhor sabia das principais pressões que estavam em questão, dos principais interesses e das principais soluções que se encontraram. Eu sei que eu estou colocando uma questão muito geral, mas eu queria lhe perguntar: naquele momento, como foi lidar e conviver, primeiro, na parte da consolidação? E efetivamente trabalhando com o Relator, com os diferentes Parlamentares de outros partidos na hora de consolidar texto, como foi conviver com os colegas de outros partidos para chegar ali ao consenso do texto? O senhor já comentou um pouquinho quando respondeu à pergunta da Tânia.

E como foi, depois, conseguir construir esse grande pacto que foi o texto da Constituição? Eu coloquei de uma forma geral, mas, se o senhor puder comentar isso aí, porque o senhor realmente esteve nessa linha de frente, Ministro.

MINISTRO NELSON JOBIM– Havia uma força... não é jurídica, uma força que puxava a gente. Qual era a força? Nós tínhamos que terminar uma Constituinte, uma Constituição; tínhamos que aprovar uma Constituição; não podia ficar esse assunto parado. Então, a grande habilidade – isso eu aprendi lá, naquela época – aprendi fazendo. Não tínhamos teoria; depois é que a gente faz e começa a usar. Normalmente a gente faz as coisas, e depois alguém chega e começa a dizer: "Olha, vocês fizeram algo articulado, da seguinte forma, etc." – o que não é verdade. Mas, no final, a gente ouve aquilo e fica tão encantado por ter feito aquilo, que acaba aceitando que tenha feito mesmo. Mas não era: as coisas iam se ajustando, as conversações iam criando soluções sob a perspectiva de que nós precisávamos criar maioria.

Nós precisávamos ter maioria absoluta para aprovar o texto: logo, tínhamos que criar. E aí, se criou uma série de fórmulas para se chegar a isso. Por exemplo, nós tínhamos algumas técnicas que foram utilizadas, digamos, não previamente pensadas, mas criadas dentro do impasse – porque é o impasse que produz o mecanismo de solução, a solução do próprio impasse. Então, você tinha o impasse em que você não tinha maioria para aprovar texto. Vou dar um exemplo de um caso que eu repito muito, que é um que me vem à cabeça sempre. Tínhamos uma forma de linguagem para trabalhar com isso. Quando você tinha um texto X, e esse texto X não fazia maioria porque ele continha soluções que não satisfaziam um setor, aí você tentava fazer com que aquela parte do texto, que não satisfazia o setor, fosse discutida em legislação complementar à Constituição, em legislação ordinária; ou seja, mandava-se para a lei. Então, você pegava o texto, e, se havia aquele pedaço que não tinha jeito, então: "Não, não dá. Então tira fora e escreve aqui 'na forma da lei'." Então, era aquilo que nós chamávamos na época de um acordo dilatório: iríamos discutir esse texto, esse assunto depois, quando da lei ordinária.

Quando o assunto era muito, digamos, agudo, ele não ia para a lei ordinária; mandava-se para a lei complementar. Por exemplo, na ordem dos trabalhadores, há aquele problema da despedida imotivada, que é o art. 7º, inciso I. Esse foi o único daquele art. 7º que mandamos para a lei complementar, porque era uma coisa mais robusta, uma discussão mais robusta. Encontrou-se uma fórmula, uma composição para o texto principal, e aquilo que era divergência, em que não conseguíamos fazer um entendimento, se jogava para adiante.

Outra forma que se usava era tornar impreciso o texto, quando não se conseguia... por exemplo, um exemplo clássico disso era o assunto do repouso semanal remunerado. Havia uma linha que vinha da esquerda, do PT principalmente... O PT não tinha grande expressão naquele momento, mas o PT liderava os outros partidos; o PT tinha lá, não me lembro mais, uns sete ou oito Deputados.

ENTREVISTADORA – Sete.

MINISTRO NELSON JOBIM– O Líder era o Plínio de Arruda Sampaio. Naquela época, o Plínio não era um radical, ficou depois; ele era mais ligado ao Partido Democrata Cristão – a origem do Plínio era de democrata cristão –, e ele tinha também uma capacidade de negociação.

E aí, nesse repouso semanal remunerado, os sindicalistas queriam um texto mais ou menos assim: "repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos". Acontece que a esquerda e o próprio PMDB, enfim, não tinham votos para conseguir aprovar aquela matéria. Da outra parte, que vinha do lado do Centrão, o texto era: "repouso semanal remunerado na forma de acordo coletivo de trabalho ou de contrato coletivo de trabalho". Também não tinha. Aí surgiu um problema: esse negócio do repouso semanal remunerado é algo que vem da primeira CLT. Como nós tínhamos decidido colocar direitos dos trabalhadores dentro da Constituição, gerais, tinha que apontar uma saída. Aí o Dr. Ulysses encomendou ao Antônio Britto e a mim que tentássemos a negociação. Saímos os dois lá para tentar fazer um entendimento.

Em conversa com o Plínio Sampaio, o Plínio disse o seguinte: "Olha, topo; mas há uma coisa que eu não aceito, não posso aceitar em hipótese alguma, porque eu não tenho como convencer a minha base, que é a expressão domingo." Aí fomos lá falar do outro: "De jeito nenhum, domingo, não." Aí puxa para cá, puxa para lá, conversa, e aí nós criamos o texto chamado de "repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos". Não ficou obrigatório. E o advérbio de modo ajuda muito nisso, porque o advérbio de modo é transeunte. Uma coisa é "preferencialmente"; não era obrigatório, mas dava um espaço para você discutir esse assunto. Aí ficou o domingo, que interessava, porque era algo de que não se podia abrir mão do lado da esquerda, naquilo que a gente chamava de esquerda, e não ficou obrigatório, que era o problema do outro lado. Ficou preferencialmente e acabamos aprovando.

Então, havia uma negociação desse tipo. Mas por que a gente fazia isso? Porque nós tínhamos a clareza – tanto um grupo, como o outro, como nós tínhamos a clareza – de que nós tínhamos que terminar o trabalho. Nós tínhamos que dar uma solução ao impasse. Não adianta você se fechar no impasse, porque você paralisa todo trabalho. E aí se criavam mecanismos.

Foram criados mecanismos intermediários, inclusive regimentais. Algumas vezes se criou lá...

ENTREVISTADORA – Conte uns para a gente.

MINISTRO NELSON JOBIM– No Plenário, você criava um problema. Havia algo que não tinha solução. E, aí, passava uma sessão, e não se conseguia votar nada. Aí criamos uma expressão que se chamava "buraco negro", porque tinha aparecido a teoria dos buracos negros na astronomia, então nós associamos. "Está um buraco negro, não consigo aprovar nada." E aí, na segunda sessão, o que significava o buraco negro? Buraco negro significava que o texto da emenda substitutiva do Centrão não fazia maioria; que todas as emendas e destaques apresentados não faziam maioria; que o texto da sistematização, que tinha sido destacado para substituir aquele, também não fazia maioria. E aí, como é que faz?

E aí, tive uma longa conversa com o Paulo Afonso. Eu aprendi tudo que eu sei de regimento interno com o Paulo Afonso, que era um sujeito extraordinário e muito respeitado. Aí, puxa para cá, puxa para lá, eu descobri isto no regimento interno – porque eu tinha essa coletânea toda – das cortes espanholas: o regimento interno previa um negócio chamado emenda de transação. Aí eu inventei essa tal emenda de transação. No início, Paulo Afonso disse que aquilo não tinha história no Brasil, mas eu disse: "Olha, está aqui; os espanhóis usam isso lá. Nós não estamos inventando nada de novo. Os espanhóis usam isso para resolver os impasses, porque o regimento interno é um mecanismo para dar solução, não para criar dificuldade e não dar solução." Então, inventamos a tal emenda de transação.

Como era a emenda de transação? Você podia fazer uma negociação política na hora da votação e criar um texto todo baseado em vários outros textos. Mas aí, no início, quando isso começou a funcionar, o Dr. Ulysses, rigorosamente, sugerido pelo Paulo Afonso, exigia que as palavras que tivessem nesse texto da transação tivessem origem nas emendas que davam base. Então, não podia se criar palavra nova. Eles criavam uma amarração. Mas aí aquilo começou a funcionar, no início com a gente fazendo aquele esforço imenso, porque aí a gente botava meio torto o texto, porque a gente dizia: "Bom, vamos corrigir isso na Comissão de Redação." Depois acabaram as emendas de transação se transformando em emenda nova, porque era a emenda que conseguia fazer a maioria. E aí se fez a maioria.

ENTREVISTADORA – Ela está aqui me cutucando para o senhor qualificar o Paulo Afonso, que era o Secretário-Geral da Mesa.

MINISTRO NELSON JOBIM– Paulo Afonso era um sujeito extraordinário. E o Paulo Afonso tinha uma coisa curiosa, que eu aprendi logo, eu vi isso quando eu assumi, quando eu entrei na Câmara: ele ia muito cedo para a Câmara. Quando o Dr. Ulysses o chamava, ele ia 7h; 6h30 ele estava na Câmara. E ele formava uma espécie de cafezinho. Então, aí é que se faziam as relações entre os Parlamentares de todos os partidos. E ele tinha muita autoridade.

O Dr. Ulysses, inclusive, me contou que quando ele – Ulysses – foi eleito Presidente da Câmara, que foi o primeiro Presidente da Câmara depois do PDS, que era do PMDB, a primeira coisa que os Deputados do PMDB queriam era que ele botasse um Secretário-Geral da Mesa que não fosse o Paulo Afonso. O Paulo Afonso já estava há 20 anos, vinha lá de trás. Aí, o Dr. Ulysses disse que começou a pensar, como faria, etc., e começou o trabalho para depois escolher o novo Diretor-Geral. Aí ele disse o seguinte: que ele assistiu a um troço que chamou a atenção dele. Os Deputados subiam à Mesa e iam falar com o Paulo Afonso e o chamavam de Dr. Paulo Afonso. Ai o Dr. Paulo Afonso é que dizia o que eles tinham que fazer. E eles, então, só vinham para falar com o Dr. Ulysses depois de o Paulo Afonso ter concordado. Aí ele: "Mas, ah, é assim, é?" Aí ele disse: "Não. Vou manter o Paulo Afonso." E manteve o Paulo Afonso.

O Dr. Paulo Afonso queria se aposentar, inclusive, mas o Dr. Ulysses insistiu, aí o Paulo foi lá e ele disse: "Olha, você fica na Constituinte, depois se aposenta." E o cara ficou e depois ainda entrou para o TCU, acabou indo para uma vaga no TCU.