Entrevista com Ministro Nelson Jobim - Bloco 2


ENTREVISTADORA – Mas a essa sistemática – pelo menos à sistemática da sistematização, da Comissão de Sistematização – reagiu justamente o Centrão, que acabou redundando na grande virada da reforma do Regimento. E a crítica que se fazia era que justamente muita gente ficou alijada do processo, não da fase inicial – como o senhor falou, houve uma boa distribuição na fase inicial das oito comissões , mas da fase da sistematização. Então, a crítica do Fernando Lyra foi procedente?

MINISTRO NELSON JOBIM– Não, não, não. Foi outro problema.

ENTREVISTADORA – Não?

MINISTRO NELSON JOBIM– O problema foi outro. Não foi bem essa. Ocorreu um fato também de natureza política. O PMDB era o partido majoritário na Assembleia Constituinte. Então, cabia a ele o comando do processo todo – junto com os outros Líderes, mas com uma voz bem mais forte. E aí houve uma disputa de quem seria o Líder. Nós tivemos dois candidatos à Liderança: o Senador Mário Covas e o Deputado Luiz Henrique da Silveira, que depois veio a ser Senador e Governador de Santa Catarina – já falecidos os dois. E houve essa disputa entre os dois. O Luiz Henrique era muito ligado ao Dr. Ulysses; o Mário Covas era mais distante do Dr. Ulysses – embora paulista, havia disputas aqui em São Paulo etc. E aí o que ocorria? O Dr. Ulysses era Presidente do PMDB, era Presidente da Câmara, era Presidente da Constituinte e, com isso, tinha muita força. Havia uma espécie de fricção entre o Dr. Ulysses de um lado e o Presidente Sarney do outro. O Líder do Governo era o Carlos Santana, que era um extraordinário Deputado médico da Bahia. O Carlos Santana, como Líder do Governo, começou a operar para que o Governo votasse, os membros do PMDB ligados ao governo Sarney votassem em Mário Covas. Termina a eleição e o Mário ganha, eleição para Liderança na Bancada; o Luiz Henrique perde. Aquilo era visto como uma derrota do Dr. Ulysses e uma vitória do Sarney. Evidente que, na eleição, o Mário não podia deixar de aceitar os votos do governo, porque era uma disputa eleitoral. Aí, o que aconteceu? Começaram a acusar, começaram os discursos: "O PMDB se entregou para o Sarney", etc.

Na designação dos relatores das subcomissões, que eram 21, se não me engano – cada subcomissão tinha um relator e um presidente, depois cada comissão tinha 8 relatores e 8 presidentes, depois esses relatores etc. integrariam a Comissão de Sistematização –, o Mário Covas, que tinha poder de designar tudo, porque éramos maioria absoluta, preencheu essas vagas de presidentes das comissões, de relatores das comissões, de relatores das subcomissões com a esquerda do PMDB. Com isso, a Comissão de Sistematização, esse grupo todo, que eram 21 sub-relatores, 8 relatores e 8 presidentes, foi integrar a Comissão de Sistematização, que era uma maioria sólida, para se juntar àqueles outros que não eram membros de nada – que eram quarenta e poucos, não recordo os números, mas eram em torno de quarenta e poucos – para completar o número. Aí, a Comissão de Sistematização ficou à esquerda do Plenário, ou seja, a posição política da Comissão de Sistematização ficou à esquerda do Plenário.

Quando terminou, no final do processo, já próximo ao fim dos trabalhos da Comissão de Sistematização, começou-se a organizar o chamado na época de Centrão. O Centrão era integrado pelo PMDB, por vários partidos. O PMDB tinha de tudo, tinha liberais de direita, liberais de esquerda, comunistas, etc.

No final, surgiu a crise do Regimento. No que consistia a crise do Regimento, ao fim e ao cabo? Era o seguinte: quando nós elaboramos o Regimento Interno, o Regimento Interno, que foi aprovado lá atrás para a Constituinte, proibia a oferta de emendas substitutivas globais. Você podia emendar um texto, mas nunca uma emenda substitutiva de todo um texto, primeiro. Segundo, os mecanismos de votação previam os destaques. Então, você tinha destaques para suprimir textos, destaques para substituir um texto por uma emenda, destaques para modificar e destaques inclusive para aprovar um texto que não estava naquele outro. Acontecia o seguinte, veja bem o fenômeno: alguém aprovou um texto x na subcomissão.  Esse texto x aprovado na subcomissão precisava, para ser aprovado, da maioria absoluta da comissão, 11 votos. Com 11 votos, você aprovava um texto na subcomissão. O texto aprovado na subcomissão acabava participando do texto da comissão, juntava com as outras duas subcomissões e você teria um texto na comissão. Lá estava aquele artigo, aquela regra aprovada por 11 votos. Aí, esse texto que estava na comissão, se alguém da comissão não quisesse saber daquele texto, teria que suprimir o texto. Então, faria um destaque supressivo do texto - porque precisava destaque para suprimir e tinha que ser aprovado por maioria absoluta. A comissão tinha sessenta e uns quebrados, precisava de trinta e poucos votos para conseguir derrubar. Então, começou a acontecer o seguinte fenômeno: o sujeito tentava derrubar o texto que vinha da subcomissão e não conseguia os trinta e tantos votos, o que significava que 11 era maior do que trinta e poucos. Bom, até então, ninguém havia percebido muito bem isso. Foi depois que a gente viu.

Quando chegou à Comissão de Sistematização, aconteceu o fenômeno. Quando o Bernardo Cabral, que era o Relator, juntou oito textos das comissões e fez o primeiro texto, que ia ser submetido à Comissão de Sistematização, foi uma gritaria. Deu quinhentos e tantos artigos, nós chamamos aquilo de Frankenstein, porque tinha artigos demais, tinha coisas contraditórias que iam ser corrigidas na Comissão de Sistematização. Quando chegou à Comissão de Sistematização, aconteceu a mesma coisa. Corrigimos aquelas coisas e tal, mas, o texto que estamos dando como exemplo, que foi aprovado por onze que derrotaram trinta e poucos, quando chegou à Comissão, a Comissão de Sistematização – quanto é que você disse, 86? – Precisava de maioria absoluta, que dá 44, precisava ter 44 votos para derrubar. Então, acontecia o seguinte: um texto aprovado por 11, se fosse feito um destaque supressivo a ele, esse destaque, para ser aprovado, precisava de 44 votos; se tivesse 43, ficava um texto aprovado por 11. Aí, o Centrão gritou.

Quem verbalizou mais isso foi um Deputado de Santos, o Gastone Righi, que conhecia o Regimento. Pouca gente conhecia o Regimento; eu conhecia porque estudei muito aquilo. Conheci mais por estudo, depois aprendi durante toda essa coisa. Surgiu o impasse: o Centrão se negava a votar no Plenário o texto que tinha sido aprovado na Comissão de Sistematização. Aí propôs uma alteração no Regimento, que basicamente eram duas, além de outras coisas, mas o fundamental era isso: um, a possibilidade de que, no Plenário, pudessem ser apresentadas emendas substitutivas globais, o que era proibido no Regimento; dois, que se introduzisse dentro dos destaques – no Senado, havia no Regimento Interno do Senado; a Câmara não tinha o que se chamava Destaque para Votar em Separado (DVS). A diferença entre um e outro era o seguinte: se você fizesse o destaque supressivo, o destaque supressivo aprovado retirava o texto destacado fora; no DVS, o mecanismo é outro: quando você começava a sessão, você tem um texto básico composto de 15 ou 20 artigos - um texto básico. Esse texto básico é votado inicialmente, tem que ser aprovado inicialmente, ressalvados os destaques. Se você tem um destaque supressivo, e esse artigo não foi votado no primeiro momento, ele está fora. Ele vai ser votado em separado. Isso significa que esse artigo, para voltar para o lugar, precisa ter maioria absoluta. Invertia o quórum. Nós não tínhamos, no Plenário, condições de resistir a essa pretensão, que era, ao final, ao fim, ao cabo, a correta. As pretensões do Centrão estavam corretas.

Fez-se uma longa discussão, e, ao final, tivemos que ceder e se fez a reforma do Regimento. Alterou-se o Regimento da Constituinte, introduzindo as emendas substitutivas e o destaque para votar em separado.

ENTREVISTADORA – O senhor cita uma frase do Deputado Ulysses Guimarães – há algumas historinhas que eu li que gostaria que o senhor contasse, mas uma especificamente tem a ver com isso –, é sobre uma frase dele que diz: "Em política até a raiva é combinada." Isso se aplica a essa situação? Houve uma combinação para acertar as coisas?

MINISTRO NELSON JOBIM– Primeiro, você, no processo legislativo, enfim, no Senado, na Câmara, para superar governo, tem de partir do diálogo; não só do diálogo, como também de você medir as forças.

A Bancada do PMDB era majoritária, mas acontece que havia grande parte do Centrão que era composta pelo PMDB. Eu me lembro de que estava lá o José Richa integrando o Centrão, era o Hércules como se chamava na época, e também o Luís Roberto Pontes, que era do Rio Grande do Sul e que havia sido Ministro no final do governo Sarney. E aí foram medidas forças e se verificou que você, para continuar o processo, tinha que negociar com o Centrão e aceitar as exigências do Centrão. Aceitamos as exigências do Centrão, fez-se um acordo, porque essa expressão que você usou e era usada muito pelo Dr. Ulysses, que dizia "em política até a raiva é combinada", é exatamente o problema que nós estamos vivendo hoje, em que há uma variável nova dentro do processo político, que é o ódio, e o ódio fez com que os adversários políticos passassem a ser tratados como inimigos, objeto de: "vamos querer matá-los." Então, com essa situação, tem que abrir o diálogo. É o que nós temos hoje? O diálogo completamente obstruído. Naquela época, se fazia esse diálogo, acertava-se.

O PMDB avaliou a sua capacidade de tentar manter o Regimento, verificou que não tinha capacidade para isso, quer dizer, o PMDB e o grupo que defendia o texto da sistematização, então nós tivemos que ceder. E aí deu origem a uma mudança completa no processo constituinte, por quê? Porque o Centrão, no Plenário, apresentou várias emendas substitutivas globais, por títulos e capítulos – por títulos. Acho que era tudo título.

Aí surgiu uma dúvida dentro do PMDB que era: "Vamos brigar para tentar manter o texto da sistematização, ou seja, vamos rejeitar as emendas do Centrão?" Porque as emendas do Centrão oferecidas tinham preferência em relação ao texto do Centrão; as que tinham preferência entravam. Votavam, primeiro, o texto do Centrão, as emendas do Centrão e depois, se as emendas do Centrão não fossem aprovadas inicialmente, ressalvados os destaques, nós tínhamos que votar o texto da sistematização. E aí nós avaliamos e vimos que íamos perder; e nós íamos perder, porque houve um trabalho muito eficaz do pessoal do Centrão na negociação das emendas substitutivas; vários interesses de alguns Deputados individualizados.

Há um caso típico que era, se me recordo, uma história de direito autoral. Havia um Deputado que tinha lá uma gravadora de música evangélica e, então, pediu, para garantir os direitos autorais salvo para as músicas religiosas. E, com isso aí, ele não precisava pagar os direitos autorais na sua gravadora.

E isso está lá. Então, você tinha satisfações de um para outro e, com isso, havia votos. E aí o que fizemos? Qual foi a opção? Vamos brigar, enfrentar o Centrão ou vamos tentar votar os textos do Centrão e, depois, através de complicado mecanismo de destaques, de emendas, o diabo a quatro, tentar recompor, em cima do texto do Centrão e dentro do texto do Centrão, o texto da sistematização? E foi isso que a gente fez.