Entrevista com Ministro Bernardo Cabral - Bloco 3


ENTREVISTADORA – Em 87, um dos argumentos que o senhor usava para defender a nova Carta era assegurar "um futuro sem golpes" – a expressão é sua – "de Estado periódicos para o Brasil".

MINISTRO BERNARDO CABRAL – E até recidivos. Eu dizia "periódicos" e "recidivos" às vezes.

ENTREVISTADORA – Periódicos e recidivos. Na matéria que eu li, não aparecia o "recidivos".

Mas, depois da Constituinte já pronta, nós tivemos dois impeachments, o do Collor e o da Dilma. Com trinta anos de vigência da Carta, como político, jurista e Relator da Constituinte, como o senhor vê isso? O Brasil gosta de derrubar Presidentes? Ou a gente escolhe mal, e a tradição dos golpes é mantida?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Um pouco de história antes. Você não pode chegar a uma conclusão sem partir de uma premissa. A premissa tem que ser verdadeira para que a conclusão seja verdadeira, porque, se a premissa não o for, a conclusão vai ser falsa. Qual é a premissa? A premissa é que, em 64, em 68, muitos fomos cassados, banidos, guerrilheiros, houve os que foram presos, os que morreram. Os que sobreviveram tiveram uma diáspora muito grande. Muitos foram para outros lugares, outros ficaram. O reencontro desse pessoal que motivou a diáspora foi na Assembleia Constituinte. Onde é que nós nos encontramos, os guerrilheiros, os banidos, os cassados? Foi na Assembleia Nacional Constituinte. E aí vem a primeira premissa: "Mas isso é uma Constituição enorme! Tem artigos que não acabam mais, 245 artigos!" É verdade. Ela não deveria ter muita coisa – coisas que não são, inclusive, do texto constitucional. É aquilo: infraconstitucional, portaria, decreto.

Mas você precisa entender, aquilo que o povo não entende... Aqueles que criticam – não é o povo em si –, aqueles que são os grandes analistas da Constituição... "Que essa Constituição é isso, é aquilo, é aquilo outro". Em 1987, quando começou, ali estavam os banidos, os guerrilheiros, ali estava uma dicotomia mundial em dois planos. Primeiro plano: o regime comunista; segundo plano: o regime capitalista. No regime comunista você tinha o Leste Europeu todo, era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. Deste lado daqui, era o sistema capitalista dominando a América Latina toda, quisesse ou não quisesse, e nós aí incluídos.

Muito bem. Quando essa Constituinte está sendo criada, com essa dicotomia, ninguém imaginava que, dois anos depois, cairia o Muro de Berlim – exatamente em dois anos ele foi abaixo. E abaixo, com o Muro de Berlim, foi todo o Leste Europeu, que era do regime comunista. Sobrou a Rússia. E do lado daqui você teve todas essas revoluções que foram ocorrendo: Nicarágua, todos; foram mudando, mudando, mudando. E a nossa Assembleia Constituinte, sem nenhum esboço anterior, estava sendo caminhada, estava sendo caminhada.

Vem a história do impeachment. Sabe por que houve o impeachment? Porque essa Constituição de 88, com todos os seus defeitos – tem muitos, é obra de um ser humano –, foi reduzida de dois mil e tantos artigos só para duzentos e quarenta e poucos. O pobre do Relator teve muita antipatia de muita gente, porque eu cortei o que era de pior que havia.

Mas o que não se podia deixar de entrever era o seguinte: esta Constituição teve o condão – e está tendo; tanto assim está tendo que está completando 30 anos – de impedir que uma simples confusão política desse, como deu... Quando? Na hora em que o Sr. Costa e Silva teve o seu acidente vascular cerebral, o Vice-Presidente da República era um homem da maior seriedade, era um brasileiro respeitado, professor catedrático, tinha sido Presidente da Câmara, um mineiro ilustre chamado Pedro Aleixo. A crise política – só a crise política, da doença – não permitiu que o Sr. Pedro Aleixo assumisse; quem assumiu foi o Ministro da Marinha, o Ministro do Exército e o Ministro da Aeronáutica.  Ou seja, esse trio impediu que o Pedro Aleixo assumisse, numa simples doença.

Com a Constituição de 1988, o Sr. Collor foi impedido. Aconteceu. Foi posto para fora do poder. E não foi por doença, foi por impeachment. Qual foi a junta militar que assumiu? Estou perguntando: qual foi a junta militar? Nenhuma. Quem assumiu foi o Sr. Itamar Franco. Sabem por que o Itamar Franco assumiu? Por esta Constituição de que a turma reclama. Ah, gosto muito de impeachment. Não! Gosto de impedir crises.

Só que, na atual crise, a crise foi moral, foi política, foi de desonestidade, foram todas as crises ao mesmo tempo. Muita gente foi bater à porta dos militares para intervir. E eles disseram o quê? Respeitamos a Constituição. Quem assumiu? O Vice-Presidente da República. Não foi uma junta militar.

Então, dever-se-ia agradecer o fato de nós termos uma Constituição que previu o que havia no passado e impediu que se repetissem as ditaduras que eram comuns. Houve a ditadura de 1930, a ditadura de 1937. Houve um golpe em 1930 e outro em 1937. Getúlio assumiu com muito menos. E esta Constituição impediu.

Então, o que eu lhe digo? Infelizmente, sou levado a dizer isto: tenho dois, só dois, não digo muitos, dois acontecimentos, duas circunstâncias que me deixaram muito, eu não diria, decepcionado. Foi o fato de não termos aprovado o sistema parlamentarista de governo e um instituto de desapropriação para fins de reforma agrária, porque, quando saiu da Comissão de Sistematização, a reforma agrária saiu perfeita. Foi derrubada por interessados e ficou pior do que o Estatuto dos Militares, muito pior.

O sistema parlamentarista de governo, quando foi derrubado no plenário, aqui do meu lado, vocês conhecem, porque está vivo até hoje, estava o Senador José Fogaça, que era o meu relator auxiliar. Está vivo. Foi prefeito. Do lado daqui, Adolfo Oliveira, que era Deputado aqui pelo Rio de Janeiro. À minha frente, estava Humberto Lucena, Senador, que era um líder dos presidencialistas. Isso não se conta e precisa ser contado.

Fogaça contou isto há uns meses: "Humberto, vai correndo e diz aos seus amigos presidencialistas que tirem urgente o instituto da medida provisória do texto constitucional, porque medida provisória só convive com o sistema parlamentarista de governo. Vocês vão dar a um Presidente da República poderes que nenhum ditador militar teve no País. Por quê? Porque ele vai substituir o Congresso. Sabe por que ele vai substituir? Porque ele começa a editar." Ouvi ele dizendo isso. E não tiraram a medida provisória. Mas, ainda assim, o que havia no texto original era que, em 30 dias, ela tinha de ser convertida em lei, porque, senão, perderia... Todos os Presidentes usaram medida provisória. Nenhum deixou de usar. Claro, se aproveitaram.

No sistema parlamentarista, o Primeiro Ministro, antes de assumir o governo, mostra o seu plano de governo: vou fazer isso e isso, e lhe dão uma moção de confiança. Se não derem, ele edita uma medida provisória. Só no Parlamento pode-se fazer isso, porque o Parlamento derruba.

O que fizeram depois? Foram ao Supremo e o Supremo permitiu, não sei por que, que fossem reeditadas as medidas provisórias. E o que é mais grave: na reedição embutiram ou embutiam coisas que não tinham nada com a medida principal. E a bandalheira está aí, arrebentou agora, o fulano de tal ganhou tanto da empresa tal, tanto da empresa tal, ganhou tanto. Só que essa medida provisória não é culpa do nosso trabalho constituinte. Foi culpa daqueles que estavam interessados, que tinham recebido trocas, trocas de editoras de televisão, de rádio. Houve um troca-troca danado.

De modo que quero dizer que a minha grande decepção é não termos apresentado o sistema parlamentarista, porque o impeachment, no sistema presidencialista, é muito doloroso. Você derruba, você tem que negociar. No parlamentarista, não. Basta uma moção e cai o chefe de governo, muda-se.

Vou lhe dizer, só para incluir essa parte e excluir pouca gente não atenta: a Segunda Guerra Mundial, quando terminou – eu só vou citar cinco –, deixou um rastro de destruição em muitos países: Alemanha, Itália, Japão, Inglaterra. Eu vou até poder citar mais outro. Muito bem, todos eles – todos – adotaram o sistema parlamentarista. A Inglaterra manteve o sistema parlamentarista monárquico, com uma diferença. A Espanha adotou o sistema parlamentarista monárquico. O franco teve pelo menos a visão, fizeram o pacto de Moncloa, o pacto adotou o sistema parlamentarista hoje. Veja a Itália. A Itália está agora mesmo em uma crise enorme, mas tira o Primeiro Ministro, substitui, porque a burocracia continua a mesma. Não é o cara que vai contratar mais milhões de pessoas que está aí.

Então, quero dizer o seguinte: essa é uma das minhas grandes decepções no trabalho em que eu ajudei, porque isso foi redigido por mim, pelo Fogaça, pelo Afonso Arinos. E esse trabalho nosso dava ao País mais outra evidência do impeachment sobre o qual você acaba de me perguntar.

ENTREVISTADORA – Não é um golpe então. Cumpre um rito constitucional. É isso?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Aliás, vou dizer mais: cumprindo um rito constitucional, com uma centena de emendas que já fizeram aí, emendas que transformaram essa Constituição – eu vou fazer aqui uma espécie de analogia com o que o povo pode entender – num canteiro de obras, um canteiro de obras cheio de buracos. Fizeram emendas que apenas atendem a interesses, não sei quais, de ocasião. O que deveriam ter feito era corrigir o texto, mandar para a paralisação ordinária, o que não fizeram. O texto constitucional – vou dizer mais –, para os grandes constitucionalistas mundiais e nós, não há nenhuma constituição do mundo que tenha as garantias individuais tão perfeitas quanto a nossa.

ENTREVISTADORA – A nossa Constituição garante o equilíbrio dos Poderes? Essa Constituição? Garante o equilíbrio de Poderes?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – A Constituição garante o equilíbrio de Poderes, só não garante a honestidade entre os que integram o poder. Tanto assim que, isso não veio da gente, todo mundo cita o Montesquieu.

Montesquieu fez um livro. O título, na verdade, é De l'esprit des loisO Espírito das Leis, no qual ele criou a separação, mas tornando independentes o Legislativo, o Judiciário e, evidentemente, sem dúvida nenhuma, o Executivo.

Dos três Poderes, o mais autêntico é o Legislativo. Vou dizer o porquê: é o único Poder que funciona de portas abertas. O cara entra, vaia o cara, faz o que quer, mas para a gente falar com o Presidente da República tem de marcar uma audiência, para falar com os Ministros do Supremo, os advogados têm de marcar audiência. Então, é o mais autêntico. Quando o Poder Legislativo está fechado, a democracia está fora, é ditadura.

Agora, eu não tenho a mínima culpa se os que estão nos Poderes lá não deveriam estar. E nós sabemos que há pessoas que estão nos três Poderes que não têm a compostura necessária para lá estar.

Então, a Constituição não tem nenhuma culpa porque previu isto: o equilíbrio.