Entrevista com Ministro Bernardo Cabral - Bloco 2


ENTREVISTADORA – Ministro, nós agradecemos essa deferência.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu não quero atrapalhar você, mas já respondi muitas perguntas já que você ia fazer, sem que chegasse naquela... Vem para cá, vem para acolá... Aí se perde um pouco.

ENTREVISTADORA – Não, mas foi ótimo. Foi muito bom.

A gente vai voltar um pouco na retrospectiva do seu trabalho.

O senhor enfrentou um trabalho árduo. O senhor realmente, como profissional, lutou pela Assembleia Constituinte como político, como os Presidentes da Ordem todos fizeram, e o senhor fez, e finalmente o senhor chegou à Constituinte como Parlamentar e recebeu essa tarefa de orquestrar e organizar...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Agora eu lhe faço uma pergunta para melhorar: de quem eu recebi a tarefa? Vamos ver se você sabe.

ENTREVISTADORA – O senhor recebeu dos Constituintes.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Porque foram eles que me elegeram Relator. Muita gente pensa que eu fui nomeado Relator pelo Ulysses, por não sei mais quem, outras pessoas. Houve um que uma vez escreveu um livro dizendo que tinha nomeado um relator e tinha me demitido. Eu disputei a relatoria com o Fernando Henrique, que era Líder no Senado, e com o Pimenta da Veiga, que era Líder na Câmara. Eu não digo que eu derrotei os dois, eu tive a sorte de ser eleito pelos meus colegas. Então, a representação foi deles. Por isso, eu disse, no meu discurso, que eu era Relator sem compromisso com ninguém, nem com militar, nem com o Presidente da República. Eu tinha sido cassado, perdi os meus direitos políticos. Eu estava ali para fazer essa missão, só para lhe dizer isso antes de você me perguntar.

ENTREVISTADORA – Então, conte primeiro como foi essa escolha e, por favor, diga-nos se o senhor acha que teria sido mais fácil começar com aquele projeto do grupo dos notáveis, que era a ideia do Dr. Ulysses, porque foram dois anos de muita luta, não foi, Ministro?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu acho que essa talvez seja uma das melhores perguntas que poderiam ser feitas sobre a Constituinte. Veja, o Brasil, nesta existência toda, só teve cinco Assembleias Constituintes – cinco. O resto foram Constituições outorgadas por ditadores ou pelos militares. Sabe quais foram as que deram? A primeira deu a Constituição do Império, 1824; depois, foi a Constituição de 1891; depois, a Constituição de 1934, essa foi um pouco dura porque houve a Revolução Constitucionalista de 1932, porque o Getúlio, apesar de ter dado o golpe de 1930, prometeu que faria a convocação e não a fez, então, essa Revolução Constitucionalista não saiu vencedora, mas houve essa vitória, porque o Getúlio foi obrigado, e deu a de 1934; e a última e quarta foi a de 1946. Vejam, em todas essas Constituintes houve uma coisa chamada ruptura política institucional. Como? Quando o Brasil declarou a independência com o D. Pedro I, ele rompeu com Portugal. Toda vez que você faz essa ruptura, é importante, se não necessário, convocar uma assembleia constituinte.

Em 1889, a Assembleia Constituinte foi em função de uma ruptura. Qual foi a ruptura? Derrubaram a Monarquia. Em 1930, houve a ruptura que resultou na Constituição de 1934. E, em 1945, Getúlio foi derrubado, houve a Constituinte que deu a Constituição de 1946. A quinta ruptura institucional foi quando, no governo militar, o golpe ou a revolução, o que quiserem dizer, derrubou um Presidente da República eleito, que era o Jango. Ruptura. E aí houve essa convocação.

Agora, a sua pergunta é muito pertinente, porque, assim, todas as quatro Constituições anteriores – todas, sem exceção – tinham um esboço prévio. O esboço da Constituinte da Monarquia para D. Pedro I foi feito por cinco pessoas que se juntaram, José Bonifácio... Depois, em 1891, tinham feito um esboço, e deu até aquela chamada Réplica, do nosso Rui Barbosa com o Carneiro Ribeiro, que havia sido seu professor de português. Depois, a de 1934 também. E a de 1946, a mesma coisa. O que o Tancredo fez? Prometeu convocar uma assembleia constituinte, sabia que todas as demais tinham um esboço, criou a comissão de notáveis.

Essa comissão de notáveis, que era presidida pelo Afonso Arinos e composta pelos melhores nomes, fez um trabalho magnífico, mas concluiu o trabalho pelo sistema parlamentarista de governo. Era isso. Tancredo morre. O esboço desse trabalho dos notáveis foi enviado para o Planalto. Acontece que o Sarney era o Presidente da República – Tancredo tinha morrido – e ele era presidencialista – é até hoje. Ele simplesmente mandou publicar no Diário do Congresso e jogou na gaveta.

Então, nós começamos os trabalhos na Constituinte sem nada, tijolo por tijolo. Não havia nada, absolutamente nada. O Ulysses, que tinha a visão panorâmica das coisas, um dia chegou e disse: "Eu vou chamar e criar uma comissão de oitenta Parlamentares Constituintes, entre engenheiros e advogados, para fazer um esboço." Olhem, vocês não têm ideia da repulsa que isso causou, porque alguns Constituintes se insurgiram e disseram: "Ah, então, vamos ter Constituintes de primeira e Constituintes de segunda classe." Sim, porque os que não fossem escolhidos estariam fora.

Acabou-se a ideia. O que é que se fez? Foram criadas oito comissões temáticas. Se você pegar os títulos da Constituição, você vai ver o título dessas oito comissões temáticas. Cada uma delas se subdividia em três subcomissões e havia uma no topo que se chamava de Comissão de Sistematização. Como eram incluídas as principais figuras? As principais figuras das comissões técnicas eram o Presidente e o Relator. O líder do partido maior, do PMDB de então, que já não era mais MDB, era o Mário Covas, meu velho colega, e o Relator se dava ao PFL, que era o segundo, mas da seguinte forma. Quem primeiro escolhia era o Mário Covas, como partido majoritário. Se o Mário escolhesse a presidência, a relatoria caberia ao PFL. Houve isso até o final em todas as comissões temáticas e nas subcomissões, e não houve nenhuma, nenhuma discordância.

Mas, quando chegou na Comissão de Sistematização... Vejam o que é a história. O Afonso Arinos tinha sido presidente da comissão de notáveis. A Comissão de Sistematização, como o nome está dizendo, ia sistematizar o trabalho das comissões temáticas e das subcomissões. Daí é que ia resultar o esboço da Constituição final, aquele esboço que não tinha havido.

O PFL vai ao Mário Covas e vai ao Ulysses e diz: "Olha, o Afonso Arinos foi o presidente da comissão de notáveis. O Afonso Arinos é do PFL. Deem a ele." Não houve nenhuma discordância. Mas a relatoria, e aqui é o lado histórico; queira ou não queira, é a verdade... O Tancredo tinha um compromisso absolutamente válido com o Pimenta da Veiga, que era o Líder da Câmara e de Minas. Mas o Afonso Arinos, que não tinha nada e já estava na presidência, não estava nem se metendo nisso, também soube que o Ulysses tinha um compromisso com o Fernando Henrique, que era de São Paulo. Então, ficou uma situação delicada, os dois...

Aí eu soube dessa história. Soube dessa história e fui ao Ulysses e disse: "Olha, Ulysses, eu tenho um bom relacionamento com o Fernando Henrique, mas ele não é advogado. O Fernando Henrique, o lado que ele tem, altamente intelectual, é de outra linha. Ele é um filósofo. E o Pimenta da Veiga só tem quatro anos. Eu fui presidente da Ordem, fui cassado. Eu não posso aceitar" – isso foi mais ou menos o que eu disse, por isso estou repetindo – "que isso se resolva no compadrio."  Ulysses era um cara brilhante, sem dúvida nenhuma. Ele reuniu as lideranças principais, que eram as lideranças que representavam os respectivos Estados. Por exemplo, quem era do Ceará, escolhido pelos colegas, para representar o nome dos colegas?

E fomos para uma reunião. Nessa reunião, o Ulysses vira e diz assim: "Eu estou aqui pensando em escolher um relator e dois correlatores." E riu. Aí foi até uma brincadeira. Eu disse: "Muito obrigado, Ulysses" – eu tinha muita intimidade, porque nós tínhamos sido Deputados juntos, quando eu fui cassado, lá em sessenta e poucos. Aí eu disse: "Não" – ele viu a minha reação –, "não, não é bem isso." Porque eu disse "obrigado" porque eu iria ter dois correlatores.

Aí salta um Deputado do Maranhão, que representava o Maranhão – eu não me lembro, realmente eu não me lembro do nome dele agora; daqui a pouco, talvez –, e fez um discurso brilhante e oportuno, realmente. "Como? Então isso está sendo escolhido assim? Quem tem que escolher é a bancada. Nós temos trezentos e tantos Parlamentares. O PMDB sozinho fazer e aprovar o que quiser? E estamos aqui submetendo que A ou B... Não, quem tem que escolher é a bancada. A bancada, o PMDB lutou pela Assembleia Nacional Constituinte..." E terminou o discurso corretíssimo.

Só que o Amazonas tinha oito Deputados e, do PMDB, só tínhamos dois. Quem votava comigo... Quem votava era só quem era do PMDB, para a relatoria. Os outros Constituintes não se meteram nisso. A liderança... Pertencia ao PMDB a relatoria, porque a presidência já estava com Afonso Arinos.

O que é que me competiu, quando Ulysses me deu a palavra? Eu disse: "Olha, eu fui presidente da OAB e briguei por uma Assembleia Nacional Constituinte. Então eu sei que São Paulo tem trinta e tantos Deputados do PMDB, Minas tem, mas eu concordo com a tese. Eu não posso discordar, apesar de eu ser minoria. Vamos para a bancada."

Ulysses sorteou. Fernando Henrique falou em primeiro lugar, eu falei em segundo, e o Pimenta, por último. É evidente que, quando eu fui falar, destruí o discurso – ou tentei destruir – do Fernando Henrique e dei-lhes por antecipação, falando da história, que tinha sido a OAB que, na repressão aguda, tinha se manifestado, que eu tinha sido seu presidente.

E havia uma turma nova de Deputados Federais que não sabiam disso, alguns tinham trinta anos – de 1967 para 1986, eram vinte e poucos anos e, de 1964, muito mais, não conheciam isso. Aí um ou dois: "O senhor foi cassado pela revolução?" "Fui." Quer dizer, isso ficou um pouco na memória deles. Aí, quando eu terminei, dizendo da minha independência, que seria... Resultado da primeira votação: o Fernando Henrique teve 80 e eu e o Pimenta tivemos 84 votos juntos. Nessa altura, empatamos. Vamos para o segundo turno.

E aqui vem um parêntese que eu vou fazer que pode ficar gravado.

Mário Covas... Eu tinha sido vice-líder do Mário Covas em 1967, em 1968. Fomos cassados no mesmo dia. Depois ele foi ser governador, muito tempo depois. Nunca perguntei dele, nem ele nunca me disse nada. Começou a história da relatoria. Eu disse: "Mário, eu não sei como está o Senado. Eu sei que você é colega do Fernando Henrique. E eu gostaria..." E, antes de eu ir adiante, ele disse: "Bernardo, o meu voto é do Fernando Henrique, não tenho como... Sou Senador por São Paulo. Lamento. Você é um cara brilhante, mas tenho um compromisso." Parou aí.

Com a saída do Fernando Henrique – vejam como são as coisas –, o Senado votou maciçamente em mim; e eu botei na frente do Pimenta da Veiga 20 e tantos votos. Ele teve pouco mais de dois votos, e eu tive disparado. Nunca soube se ele, se esse rapaz que hoje é Governador do Paraná, o Richa... O Richa era muito meu amigo também, fomos Deputados juntos, e o Richa liderava uma turma de 22, que era conhecida. Deve ter trabalhado por mim. Nunca perguntei dele, nem nunca me disseram, mas o Mário teve essa correção...

(Intervenção fora do microfone.)

MINISTRO BERNARDO CABRAL – ...o que era de se esperar.

De modo que, veja bem, essa é um pouco da história da eleição que... Eu acho que só há um livro, que foi feito por um rapaz brilhante... Eu até o tenho aí. Vou dar um exemplar para o trabalho de vocês, porque foi o melhor trabalho que foi feito. Mas não se conta isso porque isso é um negócio particular.

ENTREVISTADORA – O senhor teve 111 votos, e o Pimenta, 90.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Foram 21 votos, isso depois de termos empatado no primeiro turno. Quer dizer, não seria de se... Se fosse uma vitória mais ou menos, pau a pau, eu teria mais um voto ou mais dois, mas foram mais 20 e poucos votos.

ENTREVISTADORA – Foi uma diferença...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Isso eu atribuo ao Senado, porque o Senado é que tinha, àquela altura... O PMDB deveria ter 20 e poucos Senadores. Não foi o Senado inteiro, foram os Senadores do PMDB, mas foi realmente uma vitória... De modo que foi assim que eu cheguei, pelas bençãos de Deus.