Entrevista com Ministro Bernardo Cabral - Bloco 1


ENTREVISTADORA – Em 23 de agosto (julho) de 2018, registramos o depoimento do Jurista Bernardo Cabral, ex-Deputado, ex-Ministro sobre a sua participação como Parlamentar e Relator-Geral da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988 como parte do projeto de história oral comemorativo dos 30 anos da Constituição.

Participam da gravação nós servidores, Virgínia Malheiros Galvez, Tânia Fusco, Ricardo Alagemovits e Elcio Patrocinio.

Ministro Cabral, vamos falar um pouco da sua história fora da Constituinte. Consta que o senhor se decidiu pela carreira do Direito aos 17 anos para atuar na acusação do julgado do assassinato do seu irmão, morto aos 27 anos.

Com apenas 22 anos o senhor se bacharelou e iniciou a sua carreira no tribunal do júri. A sua formação inclui ainda Psicologia, Serviço Social e outras tantas graduações. O senhor construiu uma carreira marcante e diversificada nas áreas do Direito, jornalismo e na política. Dentre os cargos executivos, o senhor foi chefe de polícia, secretário de governo do interior e da Justiça, procurador jurídico e fazendário do Amazonas, seu Estado, chegando mais tarde, já depois da Constituinte, a Ministro da Justiça.

Conte um pouco dessas experiências na vida pública, Ministro, por favor.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Bom, a primeira experiência é muito dolorosa. Eu ia estudar engenharia, já tinha obtido uma bolsa de estudos para os Estados Unidos e, no mês de janeiro de 1949, eu recebi essa notícia.

Eu estava me preparando para em julho fazer essa viagem quando, no dia 15 de maio de 1949, um domingo, uns amigos na parte da tarde convidaram meu irmão para irem a ir a um barzinho fazer a comemoração de um aniversário. Um policial chegou ao local e entendeu – não sei de que modo, eu não estava presente – que eles estavam fazendo muito barulho e que iria acabar com a festa.

O meu irmão caiu na imprudência – hoje eu digo imprudência, mas ele tinha razão – de perguntar por que e com que autoridade ele iria acabar com aquela festa. Meu irmão e outros tinham apenas vinte e poucos anos.

Ele puxou uma Parabellum, que era uma arma de guerra àquela altura, e disse "Acabo a festa porque eu quero." E deu o primeiro tiro na perna do meu irmão, que caiu ajoelhado. Ele deu outro tiro, de cima para baixo, que o transfixou, atingindo a artéria da coxa. Tendo perdido muito sangue, ele faleceu.

Com a morte do meu irmão nesse brutal assassinato, eu não fui mais viajar, porque éramos só nos dois e a minha mãe pediu, pelo amor de Deus, primeiro, que eu tirasse da cabeça a vingança, porque ela não queria chorar um filho morto e outro na cadeia, e que eu não viajasse mais, porque, senão, meus pais iriam ficar sozinhos. Eu não fui e fiz vestibular para Direito.

Como eu havia tirado primeiro lugar tanto no básico como no científico, porque tinha feito científico para me preparar para Engenharia, eu achava que era um aluno estudioso, e, como não havia, naquela altura, vestibular para que você se preparasse em cursinho – o que havia era apenas o vestibular de exame direto –, eu fiz e passei direto para a Faculdade de Direito, sempre com a ideia de que eu iria estudar Direito porque um dia acusaria o matador do meu irmão. E assim o fiz. Só que, como ele era policial, houve espirit de corps, e o inquérito não andava – durante quatro anos, ele não andou.

E tirei, àquela altura, uma Carta de Solicitador, que era um documento dado pelo Tribunal de Justiça, pela Presidência, para que você pudesse advogar acompanhado de um advogado. Chamava-se solicitador.

Eu fiz amizade, não no sentido da amizade de grande conhecimento, com um promotor de Justiça, que foi muito corajoso. Ele procurou de todo jeito esse inquérito; o inquérito veio, e ele denunciou o guarda quatro anos depois. E ainda um juiz mais corajoso acolheu a denúncia e mandou ao tribunal do júri.

O tribunal do júri, como todos sabemos, é uma coisa meio teatral. Como eu havia participado de vários concursos de oratória e havia sido vencedor, eu comecei levantando os autos, fazendo o célebre cumprimento ao presidente do tribunal do júri, ao promotor, aos colegas advogados – eram três que faziam a defesa do guarda, e um deles era meu professor na Faculdade de Direito –, e virei-me para o conselho de sentença com os autos e disse: "Senhores do Conselho de Sentença, eu me encontro neste Tribunal com a procuração dos meus pais para acusar o matador do meu irmão". Isso foi um pouco teatral, mas era o sentimento que eu tinha. Ele foi condenado pelo júri a 13 anos; apelou, houve um segundo júri. Eu já estava terminando a Faculdade de Direito e era assistente da Promotoria.

No segundo júri, o meu professor da faculdade cometeu um erro citando a página, que eu sabia de cor, pois só tinha aquilo. Eu disse a ele que ele estava faltando com a verdade. Isso criou um pouco de pânico no conselho de sentença, porque ele colocou o dedo em riste dizendo "você é muito moço para saber se um professor seu está faltando com a verdade". Disse: "Então, leia!" Ele não sabia que tinha sido mudado, porque ele tinha muito renome, e procurou e não encontrou. Eu sabia onde estava, mas não disse. Aí eu apelei para o conselho de sentença fazendo a alteração. Foi teatro? Foi.

O segundo dizia que ele tinha quatro filhos. "Ah, quatro filhos... Mandar esse homem..." Eu peguei a folha corrida, onde ele era dado como solteiro, onde dizia que ele não era casado, que não tinha nenhuma amante... Portanto, não existiam filhos. Tudo aquilo era o teatro da falta de verdade. E ele foi condenado a 20 anos.

O Código de Processo Penal dizia que quem fosse condenado a 20 anos poderia protestar por novo júri. Ele foi a novo júri, e o terceiro júri o condenou a 20 anos.

Quando ele foi para a penitenciária, anos depois, não sei de que modo – com o assassinato do meu irmão, a minha mãe passou um mês sem comer. Foi um choque danado. Vivia de choro –, ele, depois de muito tempo, procurou a minha mãe, através não sei de quem, para pedir perdão. A minha mãe disse que não o recebia, mas o perdoou. Ele cumpriu a pena.

Então, o começo da minha vida na advocacia me levou a fazer concurso para promotor – eram muitos candidatos, e eu passei em segundo lugar – porque eu queria um título para ser professor titular da faculdade, aquelas coisas todas, professor catedrático, que nunca cheguei a ser porque não abriram concurso, mas eu fiquei com esse título.

Mas eu vi que a minha vocação não era o Ministério Público. Eu tinha ido acusar o matador de um irmão meu, e eu não nasci para isso. E fui advogar. Fui advogado a minha vida inteira. Quando eu cheguei a completar seis anos... Na nossa turma na faculdade de Direito – nós éramos uma plêiade de garotos muito, muito danados; danados, estudiosos –, na nossa turma, todos disputavam o primeiro lugar; só um que não era. E, dentre esses todos, eu acabei tirando o primeiro lugar e fui o orador da minha turma. Então, nós fizemos um grupo para lutar contra o que havia de ruim na Assembleia Legislativa. Aí começa a minha carreira de político junto com advogado.

Nós éramos cinco apenas. Àquela altura, a Assembleia Legislativa do Amazonas tinha 30 Deputados. E nós cinco fazíamos, éramos muito aguerridos – muito! E nos pegou em plena revolução de 1964. O governador tinha sido eleito em 1962 – portanto, ele não tinha cumprido dois anos de mandato –, e o General Presidente da República, Castello Branco, mandou o Gen. Jurandir Bizarria Mamede para Manaus para fazer a eleição do candidato do governo militar.

O candidato era um homem muito sério, o Artur César Ferreira Reis, professor. Não havia nada contra ele, mas havia contra o Texto Constitucional, e eu declarei que não ia à reunião com o Gen. Mamede. A casa do general ficava bem ao lado da assembleia, porque lá não era o local para discutir o assunto. E não fiquei ou não fui bem visto por essa atitude independente. Imaginem, eu tinha 30 anos, cheio de vida e de...

No dia da votação dos 30 Deputados, eu disse que tinham criado um ato adicional reformando a Constituição Estadual e que era um verdadeiro estupro. Foi a primeira vez que se falou em estupro no Direito Constitucional. E eu votava contra. Eu era o quinto a votar. Quase que não me deixaram votar. E, dos 30, eu fui o único a votar contra.

No dia seguinte, os jornais colocaram: "Bernardo, único voto discordante da revolução". Com isso, acabei sendo candidato a Deputado Federal, e eu não queria mais ser político. Por este voto, que muitos tomaram como independente e corajoso e eu tomei apenas como coerente com o meu – eu tinha sido um bom aluno em Direito Constitucional –com os meus conhecimentos de Direito Constitucional. Nada de pegar em torno disso qualquer glória. Não. E dei essa declaração, mas acontece que extinguiram os partidos. O Ato Institucional nº 2 os extinguiu, e o Castello Branco criou a Arena e conseguiu que depois o MDB fosse criado.

Naquela altura, nós tínhamos duas pessoas que tinham muita liderança nessa área de oposição. Era o velho Arthur Virgílio, pai do Arthur Virgílio, que foi Senador e que hoje é Prefeito de Manaus. E ele, apesar de ser de mais idade que eu, tinha muito estima, muita admiração. Nós fundamos o MDB.

Quando nós fundamos o MDB, eu fui o mais votado na história política do Amazonas, porque era o líder. E, como fiz sozinho meu coeficiente eleitoral, chamei mais um comigo. Fomos os dois. Entre os oito, só nós dois do MDB fomos. E no MDB foi aquilo que todo mundo já sabe, respondendo à sua pergunta sobre por que eu fui político.

Aí chegamos lá cheios de novidade. Conseguimos todos nós, jovens, eleger Mário Covas, que era mais velho que eu três ou quatro anos, Líder da oposição. E eu fui o primeiro Vice-Líder. Daí foi muito difícil a gente, com dois anos de Deputado Federal, 1967, 1968... Em 1968 há até algumas publicações nos jornais da época: eu fui o primeiro a ir defender o voto do Márcio Moreira Alves, que estava sendo cassado. Foi pedida a cassação dele, do mandato dele pelo Poder Legislativo. O Governo militar teve esse cuidado, porque achava, como tinha a maioria, que ele seria cassado facilmente. O Mário estava em São Paulo e me pediu para fazer a defesa. Eu fui, cheio de livros de Direito Constitucional. Nós conseguimos derrubar, e ele não foi punido pelo Poder Legislativo. Isso foi no dia 12 de dezembro de 1968.

No dia seguinte, saiu o Ato Institucional nº 5. Eu e todos os demais ou todos os demais e eu fomos cassados. Eu perdi dez anos de direito político, perdi a minha carreira de professor universitário, fiquei sem nada.

Como eu não podia ir para Manaus, porque era longe e caro... Naquela altura, nós não tínhamos gabinete de Deputado Federal. Era um salão muito grande, com máquinas de escrever; só quem tinha o gabinete era o Líder da oposição, o Líder da situação e o presidente dos dois partidos. Nós todos, todos, fazíamos... Nós todos fazíamos nosso... Não havia nada de assessoria. Os nossos discursos eram cada vez mais duros, e o Ato Institucional baixado nos cassou.

Como eu tinha vindo no nosso Fusca para o Rio... O Estatuto do Cassado, que foi documento do governo militar, proibia que você saísse do local onde tinha acontecido a cassação. Eu estava aqui no Rio, quando o Repórter Esso anunciou: logo, primeiro, um rapaz que era do Espírito Santo, aí mais outro e Bernardo Cabral. Como meu nome é José Bernardo Cabral e como parlamentar eu só usava Bernardo Cabral, cassaram o Bernardo lá em cima, e o último, José Bernardo Cabral. Eu fui cassado duas vezes, como se fossem duas pessoas diferentes.

A partir da cassação, fiquei aqui no Rio, e a única coisa que eu sabia... Só isso mesmo eu sabia: ser advogado, porque eu não podia ter Carteira de Identidade, não podia fazer concurso público, não podia ser mais professor de faculdade, porque tinham tirado...  Enfim, eu fui advogar no canto de uma sala de um amigo meu que era pernambucano, chamado Haroldo de Melo. Durante uns 19 anos, eu fiz aquilo. Então, saí da política e continuei na advocacia. Em função de eu ter ficado no Rio, fui, primeiro, Conselheiro da Seccional da Guanabara, depois, Conselheiro Federal da OAB, Secretário e Presidente da Ordem. Então, começaram as duas coisas. Eu fui político por necessidade e por vocação sem nunca ter pensado ser advogado. Eu não seria. Eu acho que eu seria um péssimo engenheiro porque, quando fui Presidente da Ordem, cunhei uma frase de advogado, que era no Brasil inteiro. Eu acho que até já perdi a autoria. Alguns lembram. Em função de uma reunião que nós tivemos uma vez – eu, como Presidente da Ordem, com – eu vou dizer o nome dele, que era muito meu amigo, porque o advogado dele era muito ligado a mim – o Prof. Ivo Pitanguy, que, naquela altura, já estava no auge da cirurgia plástica, e um engenheiro nosso, cada um puxou para a sua, dizendo que era a mais bonita das profissões. E o Pitanguy foi brilhante, disse: "Não, na nossa medicina, você vê, a cirurgia plástica te tira os defeitos." Não pela beleza. Ele não tocou nisso. Naquela altura, era considerado na Santa Casa o cidadão que conseguia recompor as pessoas que tinham defeitos de desastre. Eu disse: "Olha, eu acho que vocês estão muito enganados. A profissão mais bonita que existe é a do advogado, porque o advogado [eu mexi com ele] é o cirurgião plástico do fato." Eu criei essa frase, dizendo por que era o cirurgião plástico do fato: porque o autor de uma ação cria o fato, e o que contesta a ação conta o fato. Então, quem patrocina o autor dá a sua versão, e quem defende os interesses do outro lado, a sua. Então, ele faz a cirurgia do plástico e diz que a única coisa que realmente é bonita na medicina é que ela dá a vida, mas a única coisa que dignifica a vida é a liberdade. E a liberdade só o advogado pode dar. Enfim, foi isso que fiz, sustentei minha família, meu filho de dez anos com a advocacia.

Eu não tenho nenhum outro hoje, depois de Relator... Eu vou dizer isso porque isso é muito importante na vida de um profissional. Como Relator, eu tive muita contribuição. Não eu. Eu não posso dizer que fui eu, mas os Constituintes comigo. Nós fizemos isso tudo. Ninguém faz nada sozinho. Nós criamos o Superior Tribunal de Justiça, que também existia. Era Tribunal Federal de Recursos. Criamos os cinco Tribunais Regionais Federais.

E, é claro, com a minha experiência na Ordem dos Advogados do Brasil, eu procurei mostrar que não podíamos mais: para os Ministros do Tribunal Federal de Recursos, que era o nome, os Parlamentares que não se elegiam, o Presidente da República nomeava a esses derrotados para o Tribunal Federal de Recursos. Então, nós criamos o que é hoje, o que é isso. Já havia o quinto dos advogados, já havia o quinto do Ministério Público, mas quem nomeava todos era o Presidente da República. Hoje, para nomear pelo quinto dos advogados, passa pela Ordem dos Advogados. Se é no Estado, ele sofre o crivo do Conselho Seccional. Se é para o Tribunal Federal, ele sofre o crivo... Então, ele sai da OAB com seis nomes, vai para o tribunal com três, e aí o governador ou o Presidente da República escolhe qual dos três. No Ministério Público é a mesma coisa.

E fizemos uma coisa também: Procuradoria-Geral da República era o lugar onde muitos iam ser Procuradores, sem ser do Ministério Público. Era um trampolim para ser Ministro do Supremo. Nós acabamos com isso. Hoje, para ser chefe do Ministério Público, Procurador-Geral da República, tem que ser escolhido pelos seus companheiros de classe. Tudo isso foi pela experiência que eu adquiri na advocacia.

E quero dizer o seguinte: eu não fui o melhor, porque, o que eu lutei por uma Assembleia Constituinte, eu fui Relator, mas os meus colegas Presidentes da Ordem, todos fizeram isso antes. O pessoal diz que a bomba do Riocentro arrebentou na minha gestão. Eu era Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Mas antes dessa minha gestão, houve a bomba da Dona Lyda lá, que derrubou inclusive quase parte do nosso... e matou a dona Lydia. O Presidente era o Eduardo Seabra Fagundes, que se saiu muito bem, quer dizer, todos se saíram bem. Então eu fui um a mais.

Então, o que eu quero dizer a vocês é que a minha carreira foi ao mesmo tempo o político que se serviu da sua experiência jurídica para a relatoria, mas se serviu sobretudo da cassação, da punição, de acabar com qualquer vaidade que eu pudesse ter; eu não tenho absolutamente, eu não faço questão, eu não tenho nenhuma, mas nenhuma... Vocês devem notar, eu fiz imprensa muitos anos. Eu conheço muito a imprensa por dentro para me impressionar com ela por fora. De modo que não faço... Eu faço o low profile... Eu estou dando esta entrevista, porque é história para a nossa Constituinte.

Eu quero dizer a vocês duas que eu tenho recusado muitas entrevistas. Por exemplo, quando houve a bomba do Riocentro, houve muita, mas muita... Todo mundo apareceu, menos eu, que tinha sido Presidente da Ordem. Sabe por quê? Porque junto comigo, tinham me ajudado Victor Nuno Leal, Barbosa Lima Sobrinho...  E eles estavam falecidos, não era justo que eu aparecesse... Não tem nenhuma entrevista minha nisso.

E depois dessa história, por que é que eu não advogo mais, nem no Tribunal Regional, nem nos tribunais superiores? Porque quando eu fui Presidente da Comissão de Constituição e Justiça e membro, eu argui muitos deles, à exceção... Eu estou fora há 15 anos. À exceção dos últimos que foram para lá, esses eu não argui. Então, quando eu vou lá, eu sou convidado para tomar café com os Ministros, tanto do Supremo, como do tribunal...

Como é que eu poderia chegar hoje com uma petição minha como advogado para pedir que me dessem uma liminar enquanto os advogados que estão nove, dez, quinze anos, ficam sentados pedindo audiência? Seria uma concorrência desleal que eu faria aos meus colegas e que eu não faço. Eu não advogo mais. Então, a única coisa que eu faço é prestar esse serviço para vocês, dando essa entrevista histórica para o meu País, só para aqueles que vêm mais tarde por aí.