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Marcio Aith

Com populismo técnico, Lula busca agradar povo sem romper com mercado

Terceiro mandado do petista inaugura o populismo de alta precisão econômica

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Marcio Aith

Advogado e jornalista, foi secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo. Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington

[RESUMO] Pressionado por modelo de contenção de despesas que ajudou a criar, governo Lula adota uma estratégia nova na seara econômica brasileira: o populismo técnico, distante tanto da gastança dos primeiros governos petistas nos anos 2000 quanto do fiscalismo-frio de Temer-Guedes, sustenta autor. Por meio de medidas como reajuste do salário mínimo e isenção do Imposto de Renda, Planalto tenta produzir alívio social pontual, de impacto imediato na base eleitoral, mas sem assustar o mercado.

Há algo de fascinante —e arriscado— na estratégia econômica do governo Lula (PT) em 2025: a tentativa meticulosa de produzir alívio social cirúrgico, com impacto imediato na base eleitoral, sem acionar os alarmes do mercado. É o populismo em versão de alta precisão.

Uma equação instável que mistura salário mínimo reajustado, crédito consignado digital e isenção de Imposto de Renda —tudo às vésperas de um ano eleitoral decisivo, com a inflação em marcha lenta e os juros em marcha forçada.

A imagem mostra quatro pessoas em uma cerimônia de assinatura de um documento oficial. À esquerda, um homem com cabelo grisalho e terno escuro aplaude. Ao centro, um homem jovem com cabelo liso e terno claro segura um documento com um selo. À direita, um homem mais velho com cabelo grisalho e barba sorri e faz um sinal de positivo com a mão. Uma mulher à direita, com cabelo preso e blusa clara, observa. Ao fundo, há bandeiras do Brasil.
Fernando Haddad, ministro da Fazenda, Fernando Haddad (à esq.), Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, o presidente Lula e Gleisi Hoffmann, ministra das Relações Institucionais, durante reunião para anunciar projeto de lei que expande as isenções na declaração do Imposto de Renda, no Palácio do Planalto, em Brasília - Adriano Machado-18.mar.25/REUTERS

O pano de fundo é conhecido: a política monetária segue dura, guiada por um Banco Central comprometido em combater a inflação, blindar a moeda e manter o Brasil minimamente atrativo diante da fuga global de capitais. Juros altos, crescimento baixo, consumo contido. Um cenário tecnicamente coerente —e socialmente impopular.

Diante disso, o governo opera em três frentes simultâneas: renda, crédito e tributo. Ou, em outras palavras, bolso, fôlego e alívio. A pergunta que paira sobre Brasília, o mercado e o eleitorado é simples e incômoda: será possível agradar a todos sem quebrar a conta? Ou estamos apenas adiando um novo desequilíbrio?

O primeiro movimento do governo Lula veio com forte apelo simbólico: o reajuste do salário mínimo acima da inflação, em 2,5%, elevando o piso nacional para R$ 1.518.

A medida, que afeta diretamente aposentados, pensionistas, trabalhadores formais de baixa renda e milhões de microempreendedores, foi apresentada como uma correção moral, uma revalorização do trabalho diante da corrosão inflacionária.

A matemática orçamentária, contudo, não conhece moral: ela conhece impacto. Segundo cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), cada real a mais no piso nacional representa cerca de R$ 370 milhões a mais em gastos públicos por ano. A razão é simples: o salário mínimo indexa uma ampla gama de benefícios sociais obrigatórios.

Eis a armadilha: o mesmo reajuste que injeta renda no consumo de base pressiona os cofres públicos, encarece contratações e acende alertas no mercado. O dilema é clássico e recorrente. O salário mínimo como instrumento de política social entra em choque com a lógica fiscal do equilíbrio intertemporal.

A narrativa oficial fala em justiça social. A leitura técnica fala em risco de expansão de gastos permanentes. A verdade, como sempre, está no meio —e no tempo. O ganho real de hoje pode virar inflação amanhã. E o alívio imediato pode custar caro em termos de credibilidade e estabilidade no médio prazo.

A segunda medida do pacote governamental foi a liberação de uma nova modalidade de crédito consignado para trabalhadores do setor privado, agora diretamente vinculada à Carteira de Trabalho Digital (CTPS). Trata-se, tecnicamente, de uma inovação regulatória: o trabalhador pode contratar empréstimos com desconto automático em folha, sem depender de convênios específicos entre empresas e instituições financeiras.

O objetivo é explícito: ampliar o acesso ao crédito barato, com juros entre 3% e 4% ao mês, bem abaixo das taxas de cartão, cheque especial ou crediário. Em tese, um refinanciamento racional da dívida da população de baixa renda.

A adesão prática, porém, expôs um descompasso. Nas primeiras semanas, foram registradas mais de 64,7 milhões de simulações no aplicativo da CTPS Digital, mas apenas 48 mil contratos foram efetivamente fechados. A disparidade revela uma realidade incômoda: o endividamento das famílias brasileiras não é apenas uma questão de acesso ao crédito, mas de capacidade de arcar com ele.

O modelo, embora promissor, levanta dúvidas. A principal delas: o que acontece se o trabalhador mudar de emprego? A reaverbação, mecanismo que transfere automaticamente o desconto para a nova empresa, ainda não foi testada em larga escala. E a inadimplência, se vier, poderá recair sobre as instituições financeiras, sobre o Judiciário ou sobre o Tesouro, dependendo da arquitetura legal do sistema.

Além disso, há um risco macroeconômico: se o crédito expandir de forma desordenada, pode estimular o consumo num ambiente já pressionado por preços. Nesse caso, a consequência é conhecida. O Banco Central responderá com mais juros, neutralizando o estímulo —e talvez até invertendo seus efeitos.

A terceira iniciativa, e talvez a mais ambiciosa, é a proposta de isentar do Imposto de Renda todos os brasileiros com renda mensal de até R$ 5.000. A medida toca no nervo da regressividade tributária brasileira e busca, com inegável acerto político, aliviar a carga sobre a classe média assalariada, que há anos vem sendo comprimida entre inflação, endividamento e crescimento pífio.

A ideia é simples: quem ganha menos, paga menos. E quem ganha muito —especialmente por meio de lucros, dividendos ou rendas no exterior— passa a contribuir mais. O projeto, em tramitação no Congresso, prevê a criação de um "imposto mínimo" para quem tem renda acima de R$ 600 mil por ano. Se o total pago ao longo do ano for inferior a um patamar preestabelecido, a diferença será cobrada.

A lógica é correta. Mas a execução é arriscada.

Primeiro, porque a elite econômica brasileira tem histórico de resistência criativa à tributação. O planejamento tributário agressivo é uma indústria no país. Segundo, porque o Fisco, embora eficiente, não está aparelhado para fiscalizar com profundidade as movimentações dos super-ricos, especialmente no exterior.

Há, ainda, o efeito colateral de ampliar significativamente a base de isentos, o que pode comprometer a arrecadação futura e pressionar ainda mais os tributos indiretos —como o ICMS, que incide sobre o consumo e penaliza justamente os mais pobres. Paradoxo em sua forma mais pura: o alívio na renda vira custo no consumo.

O pano de fundo dessas três medidas é uma tentativa quase cirúrgica de operar dentro de um sistema de contenção que o próprio governo ajudou a criar. O novo arcabouço fiscal —com meta de resultado primário, bandas de variação e mecanismos de correção— não permite grandes saltos. Mas também não proíbe movimentos táticos.

É exatamente aí que Lula e sua equipe operam: na margem de manobra. Cada benefício anunciado é calibrado para não disparar os sensores de descontrole. É um populismo com régua. Uma bondade contida. Um assistencialismo que sabe fazer conta.

Há, todavia, um problema: o mercado também sabe fazer conta. E sabe distinguir alívio pontual de tendência estrutural. Se a percepção for de que o governo está, aos poucos, cavando brechas para gastar mais —e de que o Congresso está disposto a flexibilizar o arcabouço—, a reação virá. Via dólar. Via juros futuros. Via perda de confiança.

O governo sabe disso. E, por isso mesmo, vende suas medidas com um discurso duplo. Para o povo, diz que está cuidando de quem mais precisa; para o mercado, afirma que está respeitando os limites. É uma retórica sofisticada, mas que só se sustenta se os números fecharem.

O que se vê, portanto, é a emergência de um novo modelo: o populismo técnico. Não é a gastança explícita dos anos 2000, nem o fiscalismo frio da era Temer-Guedes. É um meio-termo que tenta fazer política social com responsabilidade contábil. Um equilíbrio fino entre o desejo de agradar e o medo de romper.

No entanto, a natureza do populismo, mesmo o de alta precisão, é expansiva. O reajuste do mínimo de hoje abre espaço para demandas maiores amanhã. O crédito de hoje pode virar inadimplência amanhã. A isenção de hoje cria pressão para novos cortes amanhã. E o amanhã, como se sabe, é o dia seguinte das urnas.

Resta saber se o país conseguirá manter esse jogo por muito tempo. Ou se, como tantas vezes na história recente, o equilíbrio de hoje não passa de um prenúncio de desequilíbrio futuro.

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Comentários

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Valter Luiz Peluque

6.abr.2025 às 11h22

Toda uma retórica elaborada com economês avançado para dizer que se correr o nicho pega, se ficar o bicho come. No raciocínio, embutido está que toda política social programática é “populismo” de caráter eleitoral e a proposição de que se o bicho pega, então é melhor não correr e se entregar aos dentes dos “os mercados” e assim, vamos ficando no lugar eterno de sermos devorados , salvando-se sempre os de sempre.