Determina o pensamento popular que dinheiro não aceita desaforo. E essa é mais uma daquelas verdades absolutas pensadas por um gênio que nunca terá devido crédito na história. E é essa realidade que o próximo presidente do Brasil terá de enfrentar. O cenário é o seguinte: oficialmente, um déficit de R$ 63,7 bilhões. Um salário mínimo sem reajuste pelo quarto ano consecutivo, um Auxílio Brasil de R$ 405 (e não R$ 600 como prometido por Bolsonaro) e uma dúzia de problemas de ordem técnica, social ou econômica que pode jogar o déficit para mais de R$ 420 bilhões.

Isso tudo é que veio desenhado na Projeto da Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviada na quarta-feira (31) pelo governo federal ao Congresso Nacional. A construção das diretrizes Orçamentárias no Brasil sempre foi contestada por economistas por usar parâmetros de cálculos defasados, mas no caso da versão enviada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a desconexão foi além. Ela se apoia em um crescimento do PIB na casa dos 2,5% ano que vem, enquanto o Boletim Focus, do próprio governo, já trabalha em uma margem muito menor (0,39%). Os números que consideram a inflação e o câmbio também aparecem descolados das mais recentes estimativas feitas pelo Banco Central.

Do ponto de vista tributário, uma armadilha se avizinha: a continuidade da redução de PIS/Cofins e Cide sobre a gasolina, etanol e GNV, o que significa perda de arrecadação na casa dos R$ 34,3 bilhões. Há ainda a prorrogação da desoneração de PIS/Cofins de combustível sobre diesel, GLP e querosene de aviação, o que resultará em R$ 18,6 bilhões a menos nos cofres públicos. O governo estima que a desoneração pode ultrapassar R$ 80 bilhões quando incluído também a manutenção do congelamento ou isenção de outros itens.

R$ 405 é o valor previsto na ldo para o auxílio brasil em 2023, cifra é menor que o prometido por Lula e Bolsonaro em campanha

O projeto Orçamentário também reserva R$ 14,2 bilhões para reajuste de servidores, mas 91% desse valor é direcionado ao pessoal empregado no Executivo. Segundo estimativa do sindicato dos funcionários com base no Portal da Transparência, o valor reservado não seria o bastante para acolher integralmente o pedido de reajuste das categorias que serão atendidas, que gira em torno de 17%. Também ficou assegurado no projeto os R$ 19,4 bilhões a serem destinados à emenda do relator, no Congresso Nacional. O valor representa 54% do total que o governo teria para investir fora do teto de gastos do próximo ano. Outro jabuti que não está inserido no projeto, mas tem sido prometido pelos dois presidenciáveis com mais chances de ocupar o cargo, Jair Bolsonaro e Lula, é a revisão da tabela do Imposto de Renda para pessoa física. Estima-se que a medida resultaria em uma queda fiscal próxima dos R$ 15 bilhões, a depender da linha de corte.

PARA INGLÊS VER No Senado, o entendimento geral é que o texto final foi enviado às pressas e possui muito espaço para mudanças, principalmente conforme o indicador de “expectativa de poder” avançar. Procurados pela reportagem, parlamentares aliados ao presidente Bolsonaro afirmaram que o valor de R$ 405 deve ser alterado. Na oposição, o discurso é similar. “O texto do final do ano já será um recorte melhor do que espera o Executivo e o Legislativo no próximo governo”, disseram parlamentares do PT. O problema é que não importa qual partido ganhe, os fatos são os mesmos. Não há previsões de receita extraordinárias como as que aconteceram neste ano — com inflação e dividendos de estatais turbinando a arrecadação.

4,2% do pib é o tamanho que o déficit público pode atingir no próximo ano, a depender das benesses aprovadas na ldo

O motor da economia levará pelo menos quatro meses para pegar no tranco e os investimentos devem ficar (com sorte) para o segundo trimestre. Há ainda incertezas mundiais que podem atrapalhar a retomada. E isso leva para alguns poucos caminhos: forte arrocho em áreas não obrigatórias (como meio ambiente, segurança pública e desenvolvimento regional), fim da vinculação do orçamento ou derrubada do teto para se ter mais liberdade de usar os recursos. Ou seja, uma ginástica das grandes — alguns chamariam de pedaladas.

A Tendências Consultoria estima que as bombas fiscais armadas para o ano que vem estão perto de R$ 200 bilhões, mas essa conta pode aumentar substancialmente a depender dos acordos, promessas e negociações que o presidente assuma até lá. O reajuste do Judiciário, já aprovado, por exemplo, ainda não está no Orçamento, mas vai ter de entrar. Pelas estimativas da Instituição Fiscal Independente (IFI), o reajuste do Judiciário deverá ter um impacto de R$ 1,8 bilhão em 2023, R$ 5,5 bilhões em 2024 e R$ 6,3 bilhões a partir de 2025. Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas, definiu o orçamento como o desejo de enfiar um elefante em uma gaiola. “O navio está à deriva. Essa é a realidade.” A estimativa da entidade é que essa conta pode chegar a R$ 420 bilhões, em 2023, ou 4,2% do PIB. Mais uma prova de que não há espaço para desaforo quando o assunto é dinheiro.