O risco fiscal calculado pelo governo federal para ações judiciais movidas contra a União chegou ao seu ponto mais crítico dos últimos dois anos. São R$ 2,6 trilhões de impacto aos cofres públicos, segundo balanço ao qual o Valor Fiscal teve acesso, atualizado em agosto. Em relação à estimativa anterior, fechada em março, o aumento foi de 66%.
O valor se refere a processos cuja chance de derrota na Justiça se agravou nos últimos meses ou entrou no radar de preocupações do governo. Três casos puxam a alta. O principal é a chamada “revisão da vida toda” que considera, para o cálculo das aposentadorias, todas as contribuições feitas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) no período anterior a julho de 1994. O Supremo Tribunal Federal (STF) já formou maioria para beneficiar os aposentados, mas ainda não oficializou o resultado do julgamento.
Entre março e agosto, o INSS elevou em mais de 934% a estimativa de impacto fiscal da decisão. De R$ 46,4 bilhões, o montante passou a ser calculado em R$ 480 bilhões, fazendo desse processo o maior foco de alerta para os técnicos que monitoram de perto os litígios.
De acordo com essas fontes, a autarquia passou a considerar o risco de o Supremo proclamar uma tese mais genérica, que mencione não apenas os aposentados, mas todos os demais segurados, como aqueles que recebem pensão por morte ou auxílio-doença. Em respeito ao princípio contábil da prudência, o governo federal projeta sempre o pior cenário.
Os outros dois casos não eram alarmantes até então, mas passaram a ser, engordando o risco fiscal total. Um envolve a incidência de PIS/Cofins sobre a importação, com impacto de R$ 325 bilhões. O outro discute se a concessão de incentivos fiscais interfere na cota de ICMS repassada aos municípios. A derrota pode custar cerca de R$ 279 bilhões ao erário da União.
O STF já reconheceu a repercussão geral de ambos, que podem ser liberados para julgamento colegiado a qualquer momento. Os relatores, ministros Nunes Marques e Gilmar Mendes, respectivamente, podem inclusive fazê-lo diretamente em plenário virtual, cuja pauta não é administrada exclusivamente pela nova presidente da corte, ministra Rosa Weber.
Mesmo com menor impacto (R$ 151 bilhões), também chama a atenção do governo o recurso contra a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que admitiu a aposentadoria especial de vigilantes que atuem com ou sem armas de fogo, desde que eles comprovem a nocividade da atividade. O caso também está avançado no Supremo.
A maior parte dos R$ 2,6 trilhões envolve processos classificados como risco “possível” de derrota judicial. Há ainda os de risco “provável”, cujo desfecho desfavorável à União está ainda mais próximo de ocorrer, segundo estimativas técnicas. Essa fatia é calculada em R$ 278,2 bilhões.
O número será enviado ao Congresso Nacional até o dia 10 de outubro, para um ajuste fino no Orçamento de 2023 antes da votação pelos parlamentares. Entre os casos de risco “provável”, está a discussão sobre a complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), com impacto de R$ 29,4 bilhões.
Outro processo que constará na atualização do chamado “Anexo de Riscos Fiscais” do Orçamento é o que discute se entidades beneficentes das áreas de saúde, educação e assistência social têm ou não imunidade de contribuição ao INSS. A derrota da União pode custar R$ 22,5 bilhões aos cofres públicos.
Antes do mês passado, o risco fiscal total mais alto dos últimos dois anos havia sido registrado em agosto de 2020 - R$ 2,3 trilhões. Neste meio tempo, a estimativa nunca ficou abaixo de R$ 1,8 trilhão.
Fontes da área econômica afirmam que, apesar de preocupante, o valor referente às demandas judiciais não necessariamente será convertido em precatórios para o próximo ano. Primeiro, é preciso aguardar se de fato ocorrerá a condenação. Em alguns casos, a eventual mudança de voto de apenas um ministro do Supremo já seria suficiente para reverter a situação.
Além disso, ainda que a União venha a sofrer derrota, a execução da sentença não é concretizada exclusivamente por meio de precatórios - pode ocorrer, por exemplo, através de um acordo para compensação de dívidas (uma espécie de encontro de contas). Em outros casos, uma decisão judicial desfavorável pode significar tão somente a frustração de receitas.
Levantamento do Ministério da Economia mostra que os gastos com demandas judiciais têm subido gradualmente. De 2014 a 2021, a participação das sentenças na despesa primária total saltou de 1,8% para 3,4%. Fontes citam como motivo o aumento da judicialização e a maior celeridade da Justiça, a partir de ferramentas como o plenário virtual.
A proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) prevê um total de R$ 73,99 bilhões de precatórios para o ano que vem, sendo R$ 22,31 bilhões em dívidas de anos anteriores. Se fossem consideradas as Requisições de Pequeno Valor (RPV), que somam R$ 26 bilhões, as despesas com demandas judiciais ultrapassariam a casa dos R$ 100 bilhões.
Para o especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro, assessor econômico do Senado, o governo precisa promover mecanismos de encontro de contas para evitar que esses riscos fiscais se convertam em despesas orçamentárias. “Uma solução é a securitização de ativos e passivos do setor público a partir de instrumentos de mercado. Esse encontro de contas seria um elemento reestruturador das dívidas do Estado, mitigando riscos fiscais decorrentes de decisões judiciais”, explicou.
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Daniel Couri, afirmou que as disputas judiciais certamente aumentam o risco fiscal da União. “É importante ter clareza sobre esses números e me parece que o Executivo federal caminha nesse sentido. Mas lidar com tamanho risco é um problema quando se tem uma dívida elevada e cara para os padrões de países emergentes”, disse.
Procurada, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou que seu papel é “avaliar e classificar os riscos fiscais das ações ajuizadas contra a União, autarquias ou fundações públicas com base em critérios jurídicos”. Segundo o órgão, “a classificação dos riscos está sujeita a alterações conforme cada caso evolui no âmbito do Poder Judiciário”. A AGU disse, ainda, que em 2021 as decisões judiciais favoráveis à União evitaram o desembolso de R$ 418 bilhões, “permitindo que esses valores fossem direcionados a setores como saúde, segurança e educação”.