Na linha do tempo da arte ocidental, o período que sucedeu o positivismo ficou conhecido como expressionismo. Movimento artístico que se propôs a derrubar os ideais de uma sociedade que ignorava seus próprios problemas. Os artistas expressionistas prenunciaram a dificuldade social que a Primeira Guerra Mundial causaria à Europa no início do século 20. Em um recorte tupiniquim, enquanto o presidente Jair Bolsonaro insiste em pintar uma figura mais positiva sobre o andamento da economia, reside nas mãos de Paulo Guedes o alerta expressionista. Ele já sabe que o Orçamento aprovado por seu chefe empurra o bom andamento fiscal para o buraco, e o plano de fechar o ano sem um déficit (prometido para 2019) virou uma fantasia, sem qualquer conexão com a realidade.

Vamos aos fatos. A alta de dois dígitos da inflação e a escalada do dólar ajudaram as contas públicas. Quanto maior os preços praticados, melhor a arrecadação. E assim aconteceu. Em janeiro a União arrecadou quase R$ 235 bilhões, expressiva alta de 18,3% e o melhor resultado em 30 anos. Segundo a Receita Federal, que compila esses dados, o resultado foi puxado pelo pagamento de impostos de venda de ações e participações societárias em empresas (arrecadação de R$ 12 bilhões) e impulso dos serviços e exportação, em especial de minerais. No dia 22 de fevereiro, em evento do Banco BTG Pactual, Guedes afirmou que o Brasil está “condenado a crescer”, e garantiu que os indicadores continuarão mostrando a retomada do País ao longo do ano.

PERÍODO PANDÊMICO Gastos extras do governo no combate à Covid serão substituídos por aumentos do Auxílio Brasil e seguirão pesando nas contas públicas em 2022. (Crédito:Zanone Fraissat)

Com esse discurso otimista, o resultado das contas públicas poderia ser um déficit na ordem de R$ 46 bilhões, como estima a equipe econômica do ministro, mas a situação é outra. Com o PIB andando de lado, a inflação e o dólar mais moderados e um Orçamento problemático, o buraco pode ser mais embaixo. Os economistas do Instituto Fiscal Independente (IFI), por exemplo, estimam um déficit de R$ 106 bilhões (1,1% do PIB) neste ano. É mais que o dobro da projeção do governo. Segundo o presidente da Instituição, Felipe Salto, o quadro fiscal é difícil. “Essa trajetória favorável do resultado primário do governo central não deverá se manter nos próximos meses.” De acordo com a entidade, o cenário é de queda da arrecadação em relação ao PIB, despesas primárias relativamente estáveis e gastos do Auxílio Brasil em alta. Há ainda preocupação com o aumento da folha de pagamento para servidores e outras medidas que podem ser tomadas pelo Congresso.

Algumas delas, inclusive, já foram adotadas no Legislativo. Entre as medidas estão as Emendas Constitucionais 113 e 114, de 2021, que ampliaram o espaço fiscal para aumento de despesas primárias neste ano, e isso abriu um espaço no teto de gastos na ordem de R$ 112,6 bilhões. Outro ponto de atenção, este elucidado por Carlos Garcia Brandão, que foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo (cotado para a equipe econômica de Paulo Guedes em 2019), é mais amplo. “O País não terá a mesma pujança na arrecadação porque a economia andará mais devagar que em 2021, quando havia um movimento de retomada”, disse.

Wenderson Araujo

“Essa trajetória favorável do resultado primário do governo central não deverá se manter nos próximos meses” Felipe Salto Presidente do IFI.

Em 2021 a economia cresceu 4,6% e os bancos já projetam uma alta tímida, de 0,5% neste ano. Com relação ao cenário externo, ele afirma que os conflitos entre Rússia e Ucrânia e os próximos passos de China e Estados Unidos serão determinantes. “Com o dólar diminuindo, tributos dolarizados [como energia e combustível] caem, assim como a fatia arrecadada das exportações”, afirmou. Essa redução na arrecadação dos combustíveis pode ficar ainda mais acentuada caso seja aprovado o congelamento de tributos federais e estaduais para estabilizar o preço na bomba.

E se o cenário não está fácil neste ano, em 2023 será ainda mais difícil. O Prisma Fiscal, elaborado pela Secretaria da Fazenda, do Ministério da Economia, fala em uma dívida pública batendo 84,8% do PIB neste ano e, segundo o IFI, não há força econômica capaz de estabilizar esse indicador nesse momento. E Guedes sabe disso. Para interlocutores, o ministro tem demonstrado seu descontentamento com a “falta de responsabilidade fiscal de alguns integrantes do governo”. Ele, inclusive, já teria alertado o próprio presidente da República sobre isso. Independentemente de Guedes conseguir mostrar a Bolsonaro, o fato é que aquele que ocupar a cadeira presidencial em 2023 também enfrentará uma forte pressão para aprovar desonerações e benefícios fiscais para estimular a economia, ao mesmo tempo que precisará dar sinais de controle fiscal para o mercado e não perder a rédea do dólar e da inflação. Um cenário tão conturbado que, na linha do tempo da história da arte, se aproximaria do surrealismo.