É verdade que janeiro é um mês sazonalmente forte para o resultado primário. Mas um número positivo de R$ 101,8 bilhões para as contas da União, estados, municípios e empresas estatais, recorde para toda a série e empurrando a dívida para baixo de 80% do PIB, é realmente impressionante e provoca reflexões sobre a real situação das contas públicas e se há motivos para o Brasil estar pagando tão caro para se financiar em mercado.
É claro que o resultado fiscal de janeiro não deve se manter nesse patamar. No primeiro mês do ano, as despesas são normalmente mais baixas porque os governos ainda estão alinhando a execução de seus orçamentos para o ano. Além disso, o governo federal prepara medidas de desoneração que se aproximam de R$ 40 bilhões, até o momento – sem falar nas pressões que existem para ser mais ousado.
Os estados, com caixas robustos e em ano de eleição, também devem acelerar bastante seus gastos, inclusive com despesas consideradas de má qualidade. Mapeamento interno do Ministério da Economia obtido pelo JOTA apontava, por exemplo, possibilidade de reajustes de servidores em ao menos 21 unidades da federação.
Por outro lado, o comportamento das receitas segue surpreendendo positivamente, impulsionado pelo boom das commodities, a inflação persistente no país e a ajuda da reabertura da economia e seus efeitos no nível de atividade.
Os dados fiscais têm sido comemorados na área econômica. Algumas fontes até ironizam as falas de quem apontava populismo fiscal. E ressaltam que isso reflete o ajuste nas despesas, principalmente o congelamento dos gastos com pessoal, mas também outros fatores, como o menor ritmo de aumento no gasto previdenciário. E salientam que o ajuste feito entre 2020, quando a despesa foi recorde por conta da pandemia, e o ano passado, foi enorme e sem paralelos.
Alguns interlocutores mais cautelosos na Economia ponderam que a “foto” de janeiro merece muitas comemorações, especialmente depois do superávit de 2021. Mas o “filme” é mais complicado do que parece. Não só pelas pressões para gastos e, principalmente, desonerações, mas também porque há uma guerra importante que só começou com a Rússia invadindo a Ucrânia e ninguém sabe quais serão os desdobramentos dela em termos de impacto no nível de atividade, nas cadeias de produção, nos fluxos de capitais e em outras variáveis econômicas.
A economista-chefe do banco Inter, Rafaela Vitória, disse que o surpreendente resultado de janeiro (e ela já estava entre as mais otimistas no mercado) deve mudar a projeção de resultado do setor público da casa para este ano. “Tínhamos um déficit de 0,3% do PIB, mas com esse resultado e commodities mais fortes, vamos alterar para superávit no ano”, disse, explicando que o novo número, ainda a ser fechado, deve ficar em torno de 0,5% de superávit. “Mesmo se estados gastarem um pouco mais e governo der desconto no IPI, a arrecadação aí continuar forte. Economia está mais resiliente e o ciclo de commodities parece ser mais longo”, argumentou.
Rafaela ainda destaca que os lucros da Petrobras e Vale são bons exemplos de como as commodities em alta, em um ambiente de empresas brasileiras desalavancadas (baixo endividamento) – vai contribuir para arrecadação maior. Para ela, com um deflator do PIB mais alto, em decorrência da melhora de preços relativos, as desonerações serão compensadas com maior arrecadação.
Nesse contexto, a economista também questiona os prêmios de risco nos títulos – alguns estão com taxa de juros real perto de 6%. “É uma distorção o governo pagar quase 6% de juros reais (nos títulos NTN-B)”, salientou.
Para o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, que tem sido mais crítico da política fiscal, é cedo para revisar cenários. “Janeiro foi bom porque sazonalmente é bom, do lado do gasto, mas também há questões importantes do lado da receita. Elas cresceram a 18% em termos reais, mas houve atipicidade no IR e CSLL de mais de R$ 20 bilhões. Além disso, o petróleo turbinou receita de royalties. Isso por conta do preço. Nada de bom aí”, avaliou.
Salto diz que o desempenho da receita, sem essas questões, teria sido bem pior. “Note que, se o primário eventualmente ficar melhor, até o fim do ano, isso terá ocorrido, novamente, por fatores extremamente ruins, ligados a efeito-preço. Além do mais, do lado do gasto, a implosão do teto de gastos, por meio das emendas 113 e 114, vai gerar pressão enorme. E finalmente, a despesa obrigatória crescerá por inflação de dois dígitos, de 2021”, acrescentou.
Seja como for, a história fiscal de 2021 para cá mostra um forte ajuste. E isso ocorreu nos dois lados da equação. O teto, mesmo com furos, fez o serviço de evitar que todo ganho de receita se tornasse instrumento para a política gastar mais, o que em tempos de Centrão mandando na Câmara e no Planalto, não é pouco.
Isso, por sua vez, leva a reflexões quase opostas. De um lado, provoca a dúvida sobre se o quadro das contas públicas é tão dramático quanto boa parte dos analistas tenta fazer crer. De outro, levanta questionamentos sobre se o ajuste de 2021 não foi intenso demais, a ponto de prejudicar uma retomada mais forte do nível de atividade e prejudicado o combate ao coronavírus (sem o auxílio emergencial nos primeiros meses do ano passado muitos saíram de casa). De qualquer forma, estamos falando do passado. Para frente, o cenário fiscal tem riscos e segue demandando atenção e cuidado, mas sem arroubos.