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PECs 13 e 23/2021 negam prioridade ao futuro com calotes educacionais

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24 de agosto de 2021, 8h00

Nesta semana em que a emenda do Fundeb permanente completa seu primeiro aniversário (EC 108, de 26/8/2020), precisamos voltar a apontar alguns riscos de severos retrocessos no custeio da educação, em reforço ao que já havíamos alertado em nossa coluna anterior.

Spacca
Tramitam no Congresso as Propostas de Emenda à Constituição 13 e 23, ambas deste ano. Para além do ano de propositura e da dezena sequencial na numeração, elas coincidem na tentativa de institucionalizar calotes educacionais. De um lado, a PEC 13/2021 visa a anistiar o déficit de aplicação no piso educacional de 2020, para que não haja punição aos gestores e entes que, porventura, tenham descumprido o artigo 212 da CF/1988, mediante a inserção no ADCT de "perdão retroativo" supostamente motivado pela pandemia da Covid-19.

De outro lado, a PEC 23/2021 simplesmente almeja parcelar e, com isso, postergar o pagamento pela União de cerca de R$ 16 bilhões em precatórios do Fundef que deveria ocorrer em 2022, após mais de uma década de contenda judicial quanto ao valor adequado de complementação federal para fins de atendimento ao valor mínimo de referência anual por aluno no ensino fundamental. Segundo estudo de Felipe Salto e Daniel Couri, denominado "Teto de gastos e as despesas com sentenças judiciais e precatórios em 2022" e publicado pela Instituição Fiscal Independente.

"O caso do Fundef é emblemático. Mapeado pela Advocacia-Geral da União (AGU), trata-se de demanda dos entes subnacionais a respeito do fundo criado ainda nos anos 1990. Considerando apenas ações julgadas recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a decisão favorável aos entes implicará, provavelmente, um gasto com precatórios da ordem de R$ 16 bilhões em 2022. Isto é, da expansão de cerca de R$ 34 bilhões (de R$ 56,4 para R$ 90 bilhões), quase 50% devem-se a essas ações".

Em ambas as PECs percebemos um claro movimento opaco e ardiloso de desconstrução de parte dos avanços trazidos pela Emenda 108/2020. As PECs 13 e 23/2021, cada qual ao seu modo, tentam nos impor retrocessos em relação às conquistas de um ano atrás. Com a emenda do Fundeb permanente, nós havíamos ampliado a complementação federal no custeio da educação básica obrigatória de 10% para 23% dos recursos dessa sistemática de fundos estaduais (artigo 212-A, inciso V da CF) e também havíamos vedado o cômputo de despesas com pessoal inativo e pensionistas nos recursos vinculados à educação (artigo 212, §7º, da CF/1988).

Agora, porém, a União se nega a pagar integralmente seu passivo histórico com o Fundef; enquanto algumas lideranças de estados e municípios querem voltar a pautar a inconstitucional [1] unificação dos pisos em saúde e educação (proposta essa que, aliás, foi derrotada na votação da PEC 186/2019), além de tentarem obter anistia quanto ao déficit de aplicação em educação durante a pandemia (2020 e 2021). A esse respeito, vale conferir a emenda apresentada pelo senador Fernando Bezerra Coelho à PEC 13/2021:

"Artigo 115  Em decorrência do estado de calamidade pública provocado pela pandemia de covid-19, os entes federados e os agentes públicos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderão ser responsabilizados administrativa, civil ou criminalmente pelo descumprimento, no exercício financeiro de 2020, do previsto (no §2º do artigo 198 e) no caput do artigo 212 da Constituição Federal.
Artigo 116 
Nos exercícios financeiros de 2020 a 2021, para fins de cumprimento do disposto no §2º do artigo 198, no caput do artigo 212 da Constituição Federal e no artigo 110 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o montante a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção do ensino deve corresponder ao somatório dos valores mínimos de despesas estabelecidas, calculados em conjunto".

Como adiar é negar prioridade, na prática, tais PECs veiculam instrumentos que permitem aos gestores pragmática e literalmente dizerem:

1) "Devo não nego, pago quando puder", como se sucede com o caso dos precatórios do Fundef devidos pela União na PEC 23/2021; ou pior;

2) "Devo não nego, não pagarei e não quero ser punido por isso", como se sucede com alguns gestores municipais e estaduais que deixaram de cumprir o piso educacional inscrito no artigo 212 da CF, donde almejam salvo-conduto para seu déficit inconstitucional por meio da PEC 13/2021.

Ora, as PECs 13 e 23/2021 são movimentos reacionários contra a prioridade constitucional de financiamento da educação e contra o dever de progressividade intertemporal do seu custeio. Ambas reagem simplesmente manejando estratégias contábil-financeiras de postergação da efetividade do arranjo estabelecido pela Emenda 108/2020 e, antes dela, pelas Emendas 14/1996 e 53/2006.

A justificação da PEC 13/2021 aponta sua origem em pleito da Confederação Nacional dos Municípios que visa a supostamente atender a 11,9% de municípios estimadamente inadimplentes com o piso educacional em 2020 (estendendo seus efeitos também aos governos estaduais). A PEC 23/2021 foi apresentada pelo presidente da República para adiar, mais uma vez, o ressarcimento devido aos entes subnacionais no que era o extinto fundo de custeio equitativo do ensino fundamental. Ou seja, as propostas evidenciam o quanto alguns agentes políticos nos três níveis da federação tentam — fiscal e pragmaticamente — negar a prioridade conferida à educação por nossa Constituição Cidadã.

As consequências desses calotes educacionais são sentidas nas escolas e na precária capacidade de o país oferecer ensino público de qualidade aos seus cerca de 43 milhões de alunos matriculados na educação básica obrigatória. Segundo nota do gabinete do senador Flávio Arns — que foi o relator do PEC do Fundeb Permanente no Senado —, denominada "Por que somos contra diminuir investimentos educacionais durante a pandemia":

"(…) A PEC (13/2021) parte de uma premissa equivocada de que, durante a pandemia, os investimentos em educação devem ser minorados, porque as escolas permaneceram fechadas grande parte do tempo.
No entanto, o raciocínio deve ser o inverso: é justamente por causa desse contexto calamitoso que as necessidades educacionais aumentaram e precisam, portanto, de um cuidado especial, para permitir adaptação dos sistemas de educação à nova realidade de ensino remoto ou híbrido.
Não se pode admitir como razoável a redução generalizada de investimentos na educação púbica durante a pandemia. Primeiramente, há muitas necessidades represadas que precisam de imediata atenção, como, por exemplo, reforma e adaptação da infraestrutura das escolas. Em 2020, identificou-se que 4.325 escolas sequer possuem banheiro, 8.674 não têm água potável e 35.879 não possuem coleta de esgoto.
Devido ao contexto pandêmico, é necessário investir recursos em políticas públicas de planejamento e definição de protocolos de biossegurança e de novas estratégias pedagógicas e didáticas, bem como de volta segura às aulas, mediante compra de EPI (equipamento de proteção individual), e ações de capacitação e treinamento de profissionais da educação, tudo para se adequar a esse novo contexto de ensino.
(…) Os alunos precisam de acesso a equipamentos eletrônicos e internet para lidar com esse novo contexto de ensino, mas, infelizmente, os dados revelam que cerca de 40% dos estudantes da rede pública não possuem computador ou tablet em casa e 4,1 milhões não possuem sequer acesso à internet.
A propósito, o Congresso após derrubada do veto presidencial, promulgou a Lei 14.172/2021, a qual prevê o repasse federal de R$ 3,5 bilhões para garantir a conectividade de professores e estudantes da rede pública durante a pandemia, dando o prazo de 30 dias, contado da publicação da lei, para que a União realize a transferência dos recursos.
No entanto, houve a edição da MP 1060/2021, a qual revogou esse prazo de 30 (dias), o que, na prática, deixa o momento da transferência dos recursos em aberto, dependendo de posterior regulamentação infralegal, o que pode inviabilizar o cumprimento efetivo da lei.
Infelizmente, os dados mostram que o Governo Federal não vem cumprindo a contento seu papel constitucional de garantir a equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (artigo 211, § 1º, CF/88).
(…) Somos contra qualquer retrocesso na educação, e não podemos concordar com a diminuição dos recursos educacionais justamente quando o Brasil precisa intensificar seu olhar sobre a educação, ou seja, no momento em que as crianças e jovens mais vulneráveis, que dependem de escola pública, estão mais precisando da atuação incisiva do Poder Público".

Efetivamente os retrocessos previstos nas PECs 13 e 23/2021 são inadmissíveis e trazem consigo o severo risco moral de premiar a inadimplência mediante emendas à Constituição de 1988. Os descumpridores da prioridade constitucional fixada em prol da manutenção e do desenvolvimento do ensino, na forma dos artigos 212 e 212-A da CF/1988 e do artigo 60 do ADCT, não passam de maus pagadores que, direta ou indiretamente, optaram pela ignorância da população, quiçá como projeto de perenização no poder. Aqui, em especial, cabe reiterarmos, por oportuna e necessária, a citação de George Orwell [2] que fizemos na última coluna acerca do financiamento da educação pública em nosso país:

"Esse estranho entrelaçamento de opostos — conhecimento com ignorância, cinismo com fanatismo — é um dos principais traços da sociedade oceânica. A ideologia oficial está impregnada de contradições, mesmo quando não há nenhuma justificativa prática para elas. (…) Mesmo os nomes dos quatro ministérios que nos governam exibem uma espécie de descaramento na inversão deliberada dos fatos. O Ministério da Paz cuida dos assuntos de guerra; o Ministério da Verdade trata das mentiras; o Ministério do Amor pratica a tortura; e o Ministério da Pujança lida com a escassez de alimentos. Essas contradições não são acidentais e não resultam de mera hipocrisia: são exercícios deliberados de duplipensamento. Pois somente reconciliando contradições é possível exercer o poder de modo indefinido. É a única maneira de quebrar o antigo ciclo. Se quisermos evitar para sempre o advento da igualdade entre os homens — se quisermos que os Altos, como os chamamos mantenham para sempre suas posições —, o estado mental predominante deve ser, forçosamente, o da insanidade controlada".

Vale lembrarmos que a maioria esmagadora dos municípios e estados cumpriu o piso educacional em 2020, assim como a União pode excluir os precatórios do Fundef do teto dado pela Emenda 95/2016, com fulcro na exceção da parte final do inciso I do §6º do artigo 107 do ADCT, segundo a qual:

"Artigo 107  Ficam estabelecidos, para cada exercício, limites individualizados para as despesas primárias:
(…)
§6º. Não se incluem na base de cálculo e nos limites estabelecidos neste artigo:
I – transferências constitucionais estabelecidas no § 1º do artigo 20, no inciso III do parágrafo único do artigo 146, no § 5º do artigo 153, no artigo 157, nos incisos I e II do artigo 158, no artigo 159 e no § 6º do artigo 212, as despesas referentes ao inciso XIV do caput do artigo 21, todos da Constituição Federal, e as complementações de que tratam os incisos V e VII do caput do artigo 60, deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias" (grifo da autora).

Com base no acompanhamento sistemático dos dados de financiamento da educação pública brasileira que temos feito no âmbito acadêmico e institucional, ao longo das últimas duas décadas, podemos afirmar que o atraso educacional em nosso país tem raízes profundas nesses instrumentos de fraude contábil-financeira e de fuga à correspondente responsabilização. Não é à toa que a maioria da nossa população adulta com 25 anos ou mais de idade sequer havia terminado o ensino médio, ou seja, não havia concluído a educação básica obrigatória, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2018, divulgados em junho de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dito de forma ainda mais direta, somos majoritariamente um país semialfabetizado, porque, entre outros motivos, alguns dos nossos governantes negam aplicação tempestiva e suficiente aos recursos vinculados à educação.

Nos últimos dias, houve quem quisesse até mesmo condicionar a aprovação da reforma tributária à revisão do piso do magistério, em mais um franco e absurdo risco de retrocesso em relação ao regime protetivo dado tanto pela Emenda 108/2020, quanto pelo artigo 206, VIII, da CF/1988.

Enquanto o governo Biden promove a retomada pós-pandemia nos EUA por meio da priorização efetiva da educação mediante investimentos governamentais de US$1,8 trilhão, o Brasil insiste em manter suas crianças e jovens reféns de calotes educacionais.

Somente sofremos tanto com a baixa qualidade da educação pública, porque ela aproveita a alguns maus pagadores que se recusam inconstitucionalmente a cumprir o dever de custeio adequado do futuro do nosso país. Enfim, a ignorância é escolha política que passa pelo ciclo orçamentário e que literalmente impõe um atraso multissecular ao Brasil.

 


[1] Deborah Duprat e esta articulista escrevemos a respeito da inconstitucionalidade tanto das propostas de extinção, quanto de fusão dos pisos em saúde e educação veiculadas na PEC 186/2019, por meio do seguinte artigo https://aterceiramargem.org/2021/02/28/inconstitucionalidade-da-proposta-de-extincao-dos-pisos-em-saude-e-educacao/.

[2] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 254..

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    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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