Brasil e Política

Por Anaïs Fernandes, Valor — São Paulo

brasilA decisão de usar precatórios para financiar o programa de transferência Renda Cidadã é vista como "contabilidade criativa" por especialistas em finanças públicas, com potencial ainda para aumentar a dívida consolidada. Mais cedo, o governo anunciou que limitaria gastos com precatórios (o que ente público tem a pagar ao autor de uma ação judicial) em 2% da receita corrente líquida. Também afirmou que poderia usar 5% dos novos recursos do Fundeb "para ajudar essas famílias do programa a manter crianças na escola".

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, afirma que a solução via precatórios é "contabilidade criativa". "Precatório é despesa obrigatória, tem que ser paga. Se não vai pagar, é postergação de despesa”, diz. Segundo ele, "está se financiando junto aos credores do erário para fazer novas despesas".

Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, tem a mesma avaliação de "contabilidade criativa", já que "você reduz a despesa no curto prazo, mas a dívida não desapareceu". Pelo contrário, ele diz que “não tem como a dívida não aumentar”.

Salto menciona o artigo 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), segundo o qual “os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites”.

Pelos cálculos de Salto, dos R$ 55 bilhões no orçamento para precatórios, considerando o limite de 2% da receita corrente líquida (estimada em R$ 804,5 bilhões no Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021), seriam pagos apenas R$ 16,1 bilhões. Ou seja, R$ 38,9 bilhões pendentes “vão ser jogados para a frente e incorporados na dívida”, diz Salto. "É uma despesa que eu tinha no presente e que digo que vou fazer no futuro e ainda vai ser corrigida por juros. Não deixou de afetar a dívida. Não foi cancelado nenhum centavo de despesa", afirma.

Mexer nos precatórios e no Fundeb é ainda uma sinalização "muito ruim" para o mercado, do ponto de vista das expectativas fiscais, observa Salto. "É uma sinalização péssima e gera muita incerteza, credores vão ficar em polvorosa, e esse é um risco que pode contaminar taxa de juros e dívida pública."

Para Salto, a medida "tem jeito de calote, tem cara de calote, tem tudo para ser definida como tal". "Só não é porque você não está declarando que não vai pagar, mas que vai pagar seguindo um determinado fluxo que tem a ver com a evolução da receita, mas é muito ruim porque aqueles afetados não terão certeza de quando serão pagos."

Além disso, medidas do tipo podem criar um precedente ruim e "abrir portas" para outras propostas nessa linha, diz Salto. E essa é também uma preocupação em relação ao uso do Fundeb. "Você pega um guarda-chuva que está fora do teto de gastos e começa a colocar várias coisas lá dentro e chamar de Fundeb coisas que não são Fundeb, que não são educação", diz Salto. "Alguém pode dizer que é só 5%, mas é assim que as coisas começam. Pode ser o começo de um 'bypass' no teto e a gente já conhece esse filme, porque de 2008 a 2014 o Brasil viveu o que se convencionou chamar de 'contabilidade criativa' com a meta de resultado primário, e olha o que é hoje."

O desafio para o cumprimento do teto no ano que vem está dado há um tempo, mas o governo "tem empurrado o problema com a barriga", afirma Salto. A pandemia, segundo ele, apenas exacerbou a questão, já que forçou a contratação de novas despesas. Com o efeito da crise sobre a renda das famílias e a percepção de que esses reflexos podem se prolongar, é legítimo pensar no programa de transferência de renda, “a questão é como paga a conta e respeita o teto”, diz Salto.

Para Tatiana Roque, vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), o problema é que o governo precisa tirar recursos para financiar o programa de algum lugar sem afetar o teto de gastos, “mas não tem de onde”, ela diz. Na visão da Rede, o financiamento de um programa de renda básica requer mudanças no sistema tributário e flexibilização do teto. “Achamos muito ruim usar o Fundeb. Como não querem tirar do teto, que seria a solução, eles sempre vão descobrir um santo para cobrir outro, e, neste caso, um santo que já está bastante descoberto, a educação”, afirma.

No entendimento de Carlos Kawall, diretor do ASA Investments, ilegal. A decisão do governo de usar precatórios para financiar o programa Renda Cidadã é uma ideia "absurda", "estarrecedora", "quase indecente".

Sob um aspecto, a medida poderia ser considerada uma "pedalada", diz Kawall, porque uma despesa que deveria ser reconhecida e executada agora será jogada para frente. "Essa é uma primeira maneira de avaliar e que já não é positiva", afirma.

"Mas não é um gasto obrigatório que está sendo postergado como ocorreu em 2014, quando o governo começou a utilizar mecanismos para jogar para outro mês ou usar bancos para financiar", diz Kawall. Para ele, a situação agora seria pior.

O ex-secretário do Tesouro Nacional, Kawall explica que, se o pagamento do precatório é determinado no primeiro semestre do ano, o governo pode incluir essa despesa no orçamento do ano seguinte. Se a decisão sair no segundo semestre, fica para o ano subsequente.

Os precatórios são constituídos enquanto dívidas e, embora não sejam capturados nas modalidades do Banco Central para cálculo da dívida bruta ou líquida, observa Kawall, existem circunstâncias claras determinando seu pagamento.

“Agora, se você arbitrariamente diz que pode pagar, mas não vai, que vai jogar mais para frente, prejudicando o credor, e ainda dizendo que vai fazer isso para gastar mais, mas não está gastando mais em troca de uma despesa que você cortou, não está fazendo ajuste nenhum, você simplesmente está usando um subterfúgio para cumprir o teto", afirma.

Nesse sentido, Kawall diz que a medida desrespeita a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), porque cria uma despesa nova permanente (com o Renda Cidadã) sem apontar uma receita permanente equivalente e/ou uma redução nas despesas de igual valor. "É uma medida absurda, irresponsável do ponto de vista fiscal e acredito que ilegal", afirma.

"Em bom português", diz Kawall, "não pagar uma dívida é fazer o quê? Calote", ele responde. "Mesmo que você vá pagar no futuro, está tomando uma decisão unilateral. Você não está repudiando pagar a dívida, mas está dizendo que vai pagar quando puder."

Lá na frente, diz Kawall, a dívida ainda ficará mais alta.

(Esta reportagem foi publicada originalmente no Valor PRO, serviço de informações e notícias em tempo real do Valor Econômico)

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