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Opinião

Renda Cidadã traz novo fiasco para Bolsonaro

Proposta de expandir Bolsa Família esbarra na lei e revela dificuldade política do governo

Até a campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro nunca escondeu seu desprezo pelo Bolsa Família. Quando deputado, chamava o programa de “compra de votos mesmo”, dizia que tornava os beneficiários “eleitores de cabresto” do PT. Agora que o cabresto passou para a mão direita — e ele sentiu o gostinho da popularidade trazida pelo auxílio emergencial na pandemia —, expandir o Bolsa Família para criar o Renda Cidadã se tornou sua prioridade no Congresso.

A proposta de perpetuar o auxílio — numa faixa imaginada em torno de R$ 300 a pelo menos 20 milhões — furou a fila da reforma tributária e se transformou segunda-feira no mais novo fiasco protagonizado pelo Executivo, em parceira com sua base parlamentar movediça. O motivo é simples, conhecido há meses e incontornável: falta dinheiro.

A engenharia orçamentária apresentada para criar o Renda Cidadã tira recursos de três fontes: o próprio Bolsa Família (R$ 35 bilhões), o Fundeb (do fundo destinado à educação, o governo propõe extrair até 5%, algo como R$ 8 bilhões) e o adiamento de pagamento de precatórios (que seria honrado apenas até 2% da receita líquida, liberando outros R$ 39 bilhões). Fora os recursos do próprio Bolsa Família, as outras duas fontes são para lá de problemáticas.

Como o Fundeb não está incluído nas despesas sujeitas ao teto de gastos, tirar recursos dele é uma manobra evidente para driblar a lei. Uma emenda constitucional poderia mudar a regra. O problema, como diz o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, é o “significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável”. O próprio Congresso, ao aprovar o Fundeb em caráter permanente, rejeitou as tentativas do governo para usá-lo em seu novo programa social. Na prática, a proposta agora é fazer exatamente o que Bolsonaro disse não querer: tirar dinheiro dos pobres — que se beneficiam dos recursos na educação — para dar aos paupérrimos.

Quanto aos precatórios, o problema é ainda pior. Há entendimento pacificado no Supremo, para estados e municípios, que configura a manobra como “pedalada”. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que, para criar nova despesa, o governo corte outra ou aumente a receita. A proposta não faz nem uma coisa nem outra, só adia pagamentos devidos por lei. A OAB chamou-a de inconstitucional, falou em “calote” e “insegurança jurídica”. É previsível a enxurrada de contestações na Justiça.

Haveria alternativa para financiar o novo programa? Na análise da Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado, seria possível dobrar os recursos do Bolsa Família cortando subsídios, programas sociais ineficientes (como abono salarial ou seguro-defeso) e reduzindo salários e jornadas do funcionalismo. Nenhuma dessas brigas políticas o governo se dispôs a comprar.

O episódio demonstra, mais uma vez, a dificuldade política do Executivo para pôr em prática um plano consistente na economia. É preocupante, sobretudo, a prioridade ao Renda Cidadã, de caráter eleitoreiro, em detrimento da reforma tributária, urgente e necessária para resgatar o crescimento.