Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado
Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado
Josué Pellegrini

"Com o nível atual de gastos do país, deveríamos ter um bem-estar social similar ao da Espanha"

Diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) e organizador do livro "Contas Públicas no Brasil" afirma que crescimento econômico está em cheque

Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado
Publicado em 13/09/2020 às 07h15

A trajetória ascendente da dívida pública brasileira, que deve alcançar em breve 100% do produto Interno Bruto (PIB), ameaça seriamente o crescimento do país. A avaliação é do doutor em Economia Josué Pellegrini.

O endividamento do Brasil alcançou em julho deste ano 86,5% do PIB, o maior patamar da série histórica. Em dezembro do ano passado, estava em 75,8%.

Para Pallegrini, esse salto não só coloca em questão o nível atual da taxa de juros, o que prejudica a atividade econômica, como cria um clima de incerteza sobre a capacidade do país de arcar com seus compromissos.

Ele organizou, com o também economista Felipe Salto, o livro "Contas Públicas no Brasil", lançado em agosto deste ano. Ambos integram a IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão do Senado.

Na publicação, especialistas avaliam a situação fiscal do país e apontam que, com o nível atual de gastos do país, deveríamos ter um bem-estar social próximo ao da Espanha.

Leia abaixo entrevista completa.

No evento virtual de lançamento do livro, o senhor disse que o Estado gasta muito e gasta mal. Que indicadores temos hoje em dia que mostram essa distorção nas contas públicas brasileiras?

As evidências de que o Estado gasta muito e mal estão em vários capítulos do livro. Eu destacaria algumas evidências nos capítulos 1 e 5. No primeiro, informa-se que o Estado poderia ter o mesmo nível de bem-estar social com um gasto primário do Estado de cerca de 10 pontos de PIB a menos que o atualmente verificado. Dito de outro modo, com o nível atual de gasto, poderíamos ter um nível de bem-estar similar ao da Espanha. Nesses capítulos, vê-se também que toda a ação do Estado por meio das transferências e tributação direta reduzem muito pouco a desigualdade social no Brasil, medida pelo coeficiente de Gini, comparativamente ao que outros países conseguem fazer.

Há estimativas de que a dívida pública para este ano possa ultrapassar 100% do PIB. Como esse crescimento pode afetar o desenvolvimento econômico do país e principalmente a retomada esperada para a pós-pandemia?

De acordo com as estimativas da IFI, a dívida pública se aproximará de 97% do PIB ao término desse ano. Não demorará muito para chegar aos 100% apontados. A relação entre dívida e crescimento é discutida na literatura econômica. As evidências mais comuns mostram que dívida mais alta, implica em crescimento menor. Considerando-se o Brasil no momento atual, a trajetória descontrolada da dívida pública poderá colocar em questão o nível atual de taxa de juros, o menor de toda a série histórica. Tal fato certamente será prejudicial ao crescimento econômico, não apenas por conta do efeito direto sobre a atividade econômica, mas também ao gerar muita incerteza acerca da trajetória das contas públicas, já que o Estado é o grande devedor do país.

A reforma administrativa é a principal aposta no momento para que o Estado consiga reduzir os gastos. O que ela precisa ter para que seja efetiva nesse propósito? Que pontos ou áreas não podem ser deixados para trás?

A reforma administrativa visa a melhorar a eficiência na prestação do serviço público, ao criar instrumentos para uma gestão mais adequada dos recursos humanos. Não creio que essa reforma seja capaz ou objetive reduzir o gasto com pessoal. O que deve ocorrer é reduzir o ritmo de aumento dessas despesas, com a redução das progressões e promoções e pelo ingresso de servidores com salários mais próximos ao do mercado. O que pode ter um impacto mais direto, embora não duradouro, sobre as despesas de pessoal, é o acionamento dos gatilhos caso o gasto total chegue ao teto estabelecido pela EC 95, de 2016. Entre os gatilhos está a redução da jornada de trabalho, com redução proporcional de remuneração.

Como fazer uma reforma que ataque benefícios e proteja servidores mal remunerados?

Os exageros podem ser combatidos pela aprovação de comandos constitucionais que limitem os pagamentos de qualquer espécie ao teto salarial estabelecido aos Poderes. Já a reforma administrativa pode introduzir mais racionalidade na gestão dos recursos humanos, ao criar flexibilidade para alocar os servidores nas áreas mais demandadas pela população e remunerar de modo mais adequado aqueles que atuam na ponta, junto à população, nos servidos prioritários, como a educação. Vale observar que a proposta para a renovação do Fundeb elevará os recursos da União para a educação básica nos próximos anos, o que deverá afetar positivamente o salário dos professores.

Como manter a estrutura enxuta depois da reforma, considerando que essas regras se acumularam ao longo de anos?

A Lei de Responsabilidade Fiscal foi sendo fragilizada ao longo do tempo, inclusive por meio de decisões judiciais. Os dispositivos destinados a garantir a sustentabilidade e a responsabilidade fiscal precisam ser fortalecidos na Constituição, inclusive como princípios a serem levados em conta. Entre as providências devem estar a criação de mecanismos efetivos de controle da despesa de pessoal. Atualmente, a maior parte dos Estados não cumpre os limites previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal. Talvez assim, uma estrutura mais enxuta e racional introduzida por uma reforma administrativa possa ser sustentada ao longo do tempo.

O senhor acredita que, dado o momento político-econômico atual, ela seja de fato discutida e aprovada a tempo de ter um efeito esperado na retomada econômica?

A reforma administrativa é uma demanda da sociedade. A qualidade dos serviços à população precisa ser aprimorada. Essa reforma, a exemplo de outras, são importantes para elevar o crescimento econômico do país no médio e longo prazo. Faz parte de um programa mais amplo de aumento da produtividade que o país tanto precisa.

Sobre a reforma tributária, o governo apresentou a proposta da CBS e tem falado bastante do microimposto digital (chamado também de nova CPMF). Nos dois casos, está previsto aumento na arrecadação do governo. Esse é o momento de aumentar/criar impostos? Que tipo de impacto esse acréscimo na carga pode trazer?

As propostas de reforma tributária que atualmente pautam o debate se apresentam como neutras do ponto de vista da carga tributária. Isso vale para a PEC 45 e para a PEC 110 que tramitam no Congresso (ambas propõem o agrupamento de diversos impostos). Mesmo o presidente tem dito que se for para incluir imposto nos moldes da antiga CPMF, outro tributo terá que ser desonerado. A alíquota de 12% da CBS tem sido apontada como elevada e pode ser ajustada ao longo da tramitação legislação. A carga tributária no Brasil já é muito alta e o desejável é que se consiga passar por esse difícil período sem mais ônus tributário. E se não for possível, terá que ser temporário.

Há uma queda de braço no governo federal e no Congresso sobre furar, ou não, o teto de gastos. Qual o posicionamento do senhor sobre isso? A recuperação econômica na pós-pandemia justificaria esse furo?

A recuperação da economia não requer que se fure o teto. Pelo contrário. A gravidade da situação fiscal exige que o país cumpra as regras fiscais previstas, balizando expectativas favoráveis a respeito da sustentabilidade fiscal. Com isso será possível manter um ambiente de mais tranquilidade e os juros no menor nível da série histórica. Isso não quer dizer que a regra do teto não possa ser aperfeiçoada. Pode, desde que no bojo de uma reforma fiscal mais ampla, que preveja mecanismos adequados de controle das despesas obrigatórias. Isso é muito diferente das recorrentes tentativas de contornar o teto com contabilidade criativa.

Que tipo de mensagem a derrubada do teto pode passar aos investidores nacionais e internacionais?

A mera tentativa de contornar o teto já causa problemas, pois afeta a credibilidade do compromisso do governo com a responsabilidade fiscal. Se o teto fosse derrubado, as consequências seriam bem mais graves. Não haveria âncora para balizar as expectativas dos agentes a respeito da trajetória fiscal do país. Isso traria muito incerteza para os investidores e os afastaria do país. Mas não parece estar nas intenções do governo, nem do Congresso simplesmente derrubar o teto.

Ainda sobre o teto de gastos, há uma pressão para que o recurso seja liberado para financiar obras de infraestrutura e o Renda Brasil. Considerando o histórico de obras públicas no país e o fato de que o Renda Brasil seria uma despesa mais “permanente”, é um gasto que vale a pena nesse momento?

Tanto os investimentos, como a assistência aos mais vulneráveis são desejáveis. No caso dos investimentos, é preciso garantir que realmente tragam retorno para a sociedade o que não é simples, conforme mostram as várias obras inacabadas pelo país. O espaço no orçamento de 2021 para o Renda Brasil requer que se racionalize os programas assistenciais. O acionamento dos gatilhos da regra do teto precisa também ser viabilizado para abrir certo espaço para esses despesas. Os gatilhos voltam-se especialmente para as despesas de pessoal, mas seu acionamento está comprometido por um problema de redação na EC 95 que introduziu o teto. Ou se ajusta a redação, o que não é simples, pois se trata de mudança constitucional, ou se busca uma interpretação de consenso entre os Poderes que possa operacionalizar a regra imediatamente.

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