Economia

Governo aprova transferência de R$ 325 bilhões do Banco Central para o Tesouro

Recursos poderão ser usados no pagamento da dívida; novos repasses poderão ser realizados dependendo da necessidade
Operação foi aprovada pelo Conselho Monetário Nacional nesta quinta-feira Foto: Jorge William / Agência O Globo
Operação foi aprovada pelo Conselho Monetário Nacional nesta quinta-feira Foto: Jorge William / Agência O Globo

BRASÍLIA — O governo aprovou a transferência de R$ 325 bilhões do Banco Central (BC) para o Tesouro Nacional na reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) nesta quinta-feira. Esse recurso será usado para pagar a dívida pública e não pode ser utilizado para obras ou programas sociais.

Leia mais: Bolsonaro contraria recomendação do Ministério da Economia e eleva para R$ 6,5 bi previsão para obras

A operação decorre de um pedido feito pelo próprio Tesouro, que, em função dos impactos da crise provocada pelo coronavírus, teve que redesenhar a captação de recursos no mercado para cobrir os custos com a pandemia, que beiram os R$ 800 bilhões, além das contas habituais.

Em junho, a dívida pública atingiu 85,5% do PIB e, segundo estimativa da Instituição Fiscal Independente, deve chegar a 96,1% no final do ano.

O secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal , relatou que pediu uma transferência de R$ 445,2 bilhões, mas, em conversas com o Banco Central, o valor acabou ficando abaixo disso. Nas últimas semanas, o montante aventado era de R$ 400 bilhões.

O presidente do BC, Roberto Campos Neto , chegou a fazer uma consulta informal ao Tribunal de Contas da União (TCU) , que deu sinal verde à operação.

— O Banco Central mostrou um preocupação quanto ao comportamento do balanço ao longo do segundo semestre, com a possibilidade de ter um prejuízo superior ao saldo remanescente do resultado por conta da variação cambial - disse Funchal nesta quinta-feira.

Saiba : Mourão diz que 'parece' que acordo Mercosul-União Europeia 'começa a fazer água'

Campos Neto disse, em manifestações recentes, que era necessário manter uma reserva de resultados dentro do balanço do BC, caso seja necessário lidar com prejuízos no futuro. Dessa maneira, o conselho deixou a possibilidade de novas transferências em aberto.

"Caso haja necessidade, o CMN avaliará, ainda neste exercício, a ampliação deste valor", diz a nota do conselho, que é composto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, e o secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues.

De onde vem o dinheiro

Os recursos que serão transferidos são parte dos R$ 503,2 bilhões de ganho contábil que o Banco Central registrou no primeiro semestre. Esse ganho é o resultado da variação cambial sobre as reservas internacionais e das operações de câmbio, como os swaps (equivalente a venda de dólar no futuro).

Com a desvalorização do real dos últimos meses, a reserva em dólares da autoridade monetária passou a ter um valor maior na moeda nacional, o que culminou no ganho contábil de R$ 520 bilhões.

Além desse repasse, o BC também vai transferir obrigatoriamente outros R$ 24,7 bilhões, resultado de outras operações da autarquia. Com essa soma, serão R$ 349,7 bilhões no caixa do Tesouro.

Na avaliação do economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, a transferência é positiva, mas o endividamento do governo vai continuar subindo.

— O governo tem uma necessidade de caixa de pelo menos R$ 1 trilhão, então o endividamento vai continuar crescendo. Até porque o governo quer ampliar o período de auxílio emergencial, renda brasil, isso vai manter o endividamento do governo elevado neste e no próximo ano.

Condições para o repasse

Em uma ocasião normal, essa transferência seria proibida. A vedação foi feita por lei em 2019 e procura evitar que o Banco Central financie o Tesouro Nacional.

E Agora, Brasil? : Novo imposto sobre pagamentos incidirá sobre todas as transações, diz assessora de Guedes

Antes dessa legislação, o BC transferia os ganhos com o câmbio regularmente para o Tesouro. Atualmente, ela fica em uma reserva de resultados no próprio Banco Central.

No entanto, a lei prevê uma exceção. No caso de “severa restrição de liquidez” para financiar a dívida pública, o BC  pode repassar esses recursos ao Tesouro exclusivamente para o pagamento de dívida.

Na nota divulgado pelo Ministério da Economia, o governo argumenta que as condições atuais permitem essa transferência:

"Tendo em vista as condições atuais de liquidez no mercado de dívida, houve a decisão do CMN para a transferência imediata de R$ 325 bilhões dessas reservas para o pagamento da Dívida Pública Mobiliária Interna".

Defesa do teto de gastos

O subsecretário da Dívida Pública Federal, José Franco, relatou, no entanto, que esse repasse não vai resolver o problema da dívida e defendeu a manutenção do teto de gastos:

— O que vai resolver é a sustentabilidade fiscal. Por isso é tão importante a manutenção do teto dos gastos e que novas despesa sejam criadas com essa racionalidade e tendo em mente que toda despesa tem como consequência o aumento da dívida pública.

Ortodoxia questionada

A operação causou questionamentos sobre sua intenção e legalidade nas últimas semanas. O próprio Banco Central foi ao Tribunal de Contas da União (TCU) para verificar se as condições atuais da economia permitiam a realização da transferência.

Em reunião entre os ministros do tribunal e os diretores e o presidente do BC, o assunto foi discutido e o entendimento geral dos ministros foi de que as condições de “severas restrições de liquidez” se aplicavam no momento.

Do lado do BC, Campos Neto fez ressalvas. Ele alertou que era preciso tomar cuidado com a possibilidade de retorno desses recursos para o Banco Central no ano seguinte.

“Prudente minimizar a probabilidade de que uma transferência de resultado do BCB à Secretaria do Tesouro Nacional (STN) seja sucedida, no exercício contábil seguinte, por transferência da STN ao BCB de forma a recompor o patrimônio líquido do BCB em 1,5% de seu ativo total”, diz texto da apresentação feita por Campos Neto ao TCU.

Nesse ponto, o presidente do BC explica que há um limite para a transferência já que, se o patrimônio líquido da instituição estiver próximo do limite mínimo de 1,5% do ativo total, o Tesouro deverá repassar títulos para a autoridade monetária recompor esse patrimônio.

O diretor de Política Monetaria do BC, Bruno Serra Fernandes, ressaltou que a autarquia não deseja voltar à situação anterior, onde os repasses do BC para o Tesouro eram mais frequentes.

— A decisão de hoje tomada pelo CMN usa a excepcionalidade da lei 3.920, mas tendo isso em mente. A ideia de deixar esse colchão é adotar a cautela devida e não voltar gente ao modus operandi anterior de fluxos semestrais entre BC e Tesouro.

Na visão do professor da FGV/Ebape, Istvan Kasznar, o Banco Central é “notoriamente ortodoxo” e não iria repassar recursos que poderia precisar no futuro. Dessa forma, o desempenho da autoridade monetária não deve ser afetado.

— É evidente que a orçamentação do Banco Central não vai procurar criar grande equívocos. No lugar de dar todo o braço, eles devem estar dando um par de dedos da mão.

Ministério Público acionou TCU

Outro questionamento veio do Ministério Público junto ao TCU, que viu risco de “pedalada fiscal” . Na representação enviada ao tribunal, o subprocurador Lucas Furtado alega que “o governo não vem medindo esforços (para conter as contas públicas) para ganhar notoriedade em busca de dividendos eleitorais”.

No anúncio do repasse, o chefe do Departamento de Contabilidade, Orçamento e Execução Financeira do Banco Central, Aílton de Aquino Santos, disse que "não há o que se falar de pedaladas".

— O advento esse modelo de transferência tem por objetivo reduzir o fluxo e não extinguir o fluxo, isso tem que ficar bem claro, e diante do cenário de severas restrições de liquidez, presentes estão as condições da transferência, então não há o que se falar em pedalada.

O subsecretário da Dívida Pública Federal relatou que o Tesouro não consultou o TCU, mas tem certeza da legalidade da operação.

— Temos plena convicção de que todas as condições legais estão sendo respeitadas. De que estamos em uma severa restrição de liquidez.