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Entendendo Bolsonaro

Covid-19 expõe a escolha política da concentração de renda

Entendendo Bolsonaro

02/04/2020 09h56

Senadores fazem sessão virtual para votação do projeto da renda básica emergencial, sancionado ontem pelo presidente Jair Bolsonaro (Crédito: Waldemir Barreto/Agência Senado)

* Cesar Calejon

Ao mudar drástica e abruptamente a vida de todo o planeta, o coronavírus oferece talvez a maior chance da história humana até aqui para repensarmos a escolha política pela concentração de renda, não somente no Brasil, que tem um dos arranjos socioeconômicos mais desiguais do planeta, mas no âmbito global, porque o vírus não respeita fronteiras ou classes sociais.

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Para aproveitarmos o estimulo à reflexão que o novo vírus oferece é necessário entendermos, primeiramente, o conceito de "escolha política". O que são escolhas políticas? Quem as faz? O que se entende por política atualmente?

Teoricamente, a política é a "arte ou ciência da organização, direção e administração de Nações ou Estados". Na prática, todos os agentes envolvidos em determinado contexto social fazem escolhas políticas de alguma maneira. Todos os seres humanos, sem exceções, adotam medidas políticas, mais ou menos conscientes, em diferentes níveis e de diversas formas. Neste sentido, a política é uma característica inerente e irrefutável da vida humana.

Uma escolha política não significa unicamente se declarar a favor de determinado partido, ideologia ou candidato. Quer dizer, principalmente, que é preciso escolher como tratar o vizinho, parar ou não na faixa para o pedestre atravessar, jogar o lixo pela janela do carro, sonegar impostos, burlar licitações ou prejudicar um colega de trabalho para obter uma promoção, por exemplo. Entre muitos outros aspectos que formam a rotina cotidiana.

Neste contexto, as escolhas políticas constituem o caráter das instituições ideológicas – conjuntos de premissas e ideias – e físicas – entidades formais – que orientam a formação de uma sociedade civil moderna. A partir da ação conjunta de algumas dessas instituições – Câmara, Senado e Presidência – foi sancionado nesta quarta (1º) o projeto brasileiro de socorro aos trabalhadores do País, medida que vem sendo adotada por algumas das principais economias do mundo.

No Brasil, a iniciativa idealizada por Paulo Guedes, ministro da Economia de Jair Bolsonaro, pretendia oferecer apenas R$ 200 por mês, durante três meses, para 38 milhões de autônomos que atuam na informalidade. Diversos partidos de oposição apertaram o governo por uma nova proposta: um salário mínimo de benefício por mês e 100 milhões de beneficiados.

O acordo final, entretanto, garante um auxílio de R$ 600 mensais por adulto de baixa renda. Famílias com dois trabalhadores ou lideradas por mães solteiras receberão R$ 1.200.

Para os noventa dias, a Instituição Fiscal Independente, órgão técnico de transparência de contas públicas do Senado, estima que o investimento do programa seja de aproximadamente R$ 43 bilhões e mais de 24 milhões de pessoas poderão receber o valor mensal durante os três meses, com possível prorrogação caso a pandemia persista.

O próprio conceito de rendimento de cidadania, como renda para os pobres, foi sintetizado pela primeira vez por Thomas More, na obra Utopia, de 1516. Ironicamente, nos EUA, o presidente Donald Trump sancionou o antes impensável e utópico pacote de medidas de estímulos de US$ 2 trilhões, o maior da história.

Mais de 150 milhões de americanos receberão US$ 1.200, mais US$ 500 por filho, com limite de US$ 3 mil por família. Os benefícios do seguro-desemprego serão ampliados em US$ 600 por semana, durante quatro meses. O pacote também cria um fundo de US$ 500 bilhões para ajudar indústrias afetadas e US$ 350 bilhões para empréstimos a pequenas empresas, US$ 250 bilhões para auxílio-desemprego e ao menos US$ 100 bilhões para hospitais e sistemas de saúde.

Entre os políticos brasileiros, ninguém foi mais vocal sobre esta questão do que Eduardo Suplicy. Desde o começo da década de 1990, quando foi eleito senador pela primeira vez, Suplicy defende que o governo distribua renda, mas não somente em tempos de crise. Em 2004, o seu projeto foi transformado na Lei nº 10.835, que institui a renda básica de cidadania. Ou seja, dinheiro pago a todo cidadão, independentemente da classe social, para arcar com despesas básicas de educação, alimentação e saúde.

No mundo, o economista francês Thomas Piketty é um dos principais advogados da ideia. Em seu novo livro, Capital e Ideologia, ele propõe um imposto que permita "dar 120 mil euros a todo mundo aos 25 anos".

Ele defende o que chama de "economia participativa ou circular". A ideia é que precisamos da participação de todos, na vida política e econômica, porque não pode haver hiperconcentração do poder em um pequeno número de pessoas. "O poder deve circular", escreve Piketty. Em 2019, a lista da revista Forbes registrou 58 bilionários no Brasil, que juntos totalizam uma fortuna de US$ 175 bilhões (quase R$ 900 bilhões).

Destes, apenas seis concentram o patrimônio equivalente ao de toda a metade mais pobre da nação: mais de 100 milhões de pessoas. Enquanto cinco milhões de crianças brasileiras vivem abaixo da linha da extrema pobreza, sem acesso à saneamento básico ou alimentação básica.

Portanto, neste momento a sanção do voucher para trabalhadores informais revela-se vital, no sentido literal do termo. Fica a expectativa, entretanto, de que a injeção de recursos na base da economia siga o mesmo vigor que se aplica aos resgates dos bancos e grandes instituições financeiras em tempos de crise.

Além disso e ainda mais importante, é imprescindível que toda a sociedade civil, mas especialmente os empresários dignos e progressistas do país, optem por adotar escolhas políticas mais saudáveis e que sejam compatíveis com o tamanho da crise que todos enfrentamos neste momento. Utópico?

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).

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