Gradualmente e, então, de repente

Mesmo que o teto sobreviva a 2021, seu cumprimento se tornará inviável em 2022

Por Daniel Couri


— Foto: Pixabay

No dia 15 de abril, o Poder Executivo enviou ao Congresso o projeto da lei de diretrizes orçamentárias da União para 2021 (PLDO). Nele, o governo adota meta de resultado primário flexível, podendo ser ajustada conforme a atualização das estimativas de receitas e despesas.

O teto de gastos, portanto, assumirá de vez o posto de principal regra fiscal no Brasil. Nos três primeiros anos, o teto foi cumprido com alguma folga. Em 2020, quarto ano da regra, a folga deve diminuir, mas sem chegar a ser um problema. Os serviços públicos (ainda) funcionam e as despesas com a covid-19 estão sendo pagas à conta de créditos extraordinários, não computados no teto.

Para 2023, o cenário do PLDO é ainda menos crível. Os gastos discricionários teriam de somar R$ 69 bi

Em realidade, o cenário para 2020 é pouco restritivo. A meta de resultado está suspensa pelo decreto de calamidade (Decreto Legislativo 6/2020). E a PEC 10/2020, que cria o chamado “Orçamento de Guerra” e está em vias de ser aprovada, suspende a regra de ouro durante o estado de calamidade.

Em 2021, o teto de gastos também estará sem companhia. A meta de resultado, como visto, será flexível e sem limite inferior ou superior. Podendo ser qualquer coisa, não será nenhuma.

Para além de eventual questionamento jurídico quanto à reinterpretação da LRF, há pelo menos uma justificativa razoável para a mudança: o mais conservador dos cenários hoje pode se revelar muito otimista em 2021.

Por sua vez, a regra de ouro - que veda o financiamento de despesas correntes com dívida - tem contado com disciplina própria na LDO e não tende a ser um problema real. O combinado tem sido que o orçamento pode ser elaborado em desequilíbrio, mas parte dele só será executada com autorização de maioria absoluta do Congresso Nacional.

Contudo, 2021 deve ser o primeiro ano realmente desafiador para o teto. Os gastos discricionários - principalmente funcionamento da administração e investimentos - deverão ceder ainda mais espaço aos gastos obrigatórios.

Além disso, é possível que, no rescaldo da crise, novos temas ocupem a agenda legislativa. A iniciativa mais recente é o programa Pró-Brasil, até o momento tão vazio quanto ambicioso, mas que promete ampliar investimentos públicos nos próximos anos.

Também não se sabe quem terá direito ao benefício de prestação continuada (BPC) em 2021. O Congresso aprovou pela terceira vez desde março a ampliação do critério de renda familiar para concessão do benefício: passaria de um quarto para meio salário mínimo per capita (PLS 873/2020). As duas primeiras tentativas foram vetadas. A terceira aguarda apreciação do presidente. O gasto adicional pode chegar a R$ 20 bilhões.

Há ainda a possibilidade de que o auxílio emergencial aos mais vulneráveis seja o projeto-piloto de instrumentos mais amplos de proteção social. Duas opções na mesa são a renda básica da cidadania, criada em 2004 e nunca implementada (Lei 10.835/2004), e o benefício universal às crianças, já aprovado pelo Senado Federal (PEC 133/2019).

Na Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, avaliamos como elevado o risco de descumprimento do teto em 2021. Essa perspectiva ficará mais clara a partir de agosto, com a tramitação da proposta orçamentária no Congresso.

Mesmo que o teto sobreviva a 2021, tudo indica que, mantida a trajetória atual dos gastos obrigatórios, seu cumprimento se tornará inviável em 2022. Se, fora do governo, esse já era um prognóstico relativamente comum, hoje ele consta das próprias projeções oficiais.

O anexo de metas fiscais do PLDO mostra que, em 2022, para cumprir o teto, os gastos discricionários - aqueles que podem ser bloqueados quando há o risco de descumprimento da meta de resultado primário - terão de ser de R$ 85 bilhões (sem considerar emendas parlamentares). O valor representa menos de 1% do PIB projetado para o ano.

Os gastos discricionários nunca encerraram o ano abaixo de R$ 128 bilhões ou 1,8% do PIB. No início de 2019, os bloqueios nessas despesas, que levariam o gasto a algo próximo de R$ 100 bilhões no ano, geraram uma onda de protestos na educação.

Analisando a composição dos gastos discricionários no ano passado, é possível concluir que hoje seria muito difícil reduzi-los a patamares inferiores a R$ 90 bilhões. Apenas o custeio administrativo - contratos de vigilância, energia, limpeza, suporte à TI, entre outros - respondeu por cerca de R$ 40 bilhões. Ainda que se busquem ganhos de eficiência, no curto prazo essas despesas são relativamente rígidas.

Os investimentos no ano passado alcançaram sua mínima histórica. Mesmo assim, responderam por cerca de R$ 30 bilhões. São muitas vezes contratos em vigor e obras de manutenção que dificilmente deixarão de ser realizados.

Além disso, aproximadamente R$ 20 bilhões, que não são custeio administrativo nem investimento, precisaram ser gastos em saúde para cumprir o piso constitucional.

Somente esses gastos já levariam a despesa discricionária sujeita ao teto a R$ 90 bilhões no ano, acima portanto do nível esperado para 2022 no PLDO. Há ainda várias outras despesas menores, como bolsas de estudo ou ações de defesa civil, que não poderiam simplesmente deixar de existir.

É preciso ter claro que a rigidez orçamentária não alcança apenas a parcela obrigatória do gasto e deve ser entendida numa perspectiva temporal. No curto prazo, simples contratos em despesas discricionárias devem ser respeitados; no médio e longo prazos, até gastos previstos na Constituição podem ser alterados.

Para 2023, o cenário do PLDO é ainda menos crível. Para viabilizar o cumprimento do teto, os gastos discricionários teriam que somar apenas R$ 69 bilhões, cerca de 0,7% do PIB.

Desde sua concepção, o desenho do teto de gastos tem sido alvo de críticas. A sua inviabilidade a partir de 2022, contudo, não decorre necessariamente de uma má-formação da regra. Primeiro, porque o descumprimento do teto está previsto na Constituição e poderia forçar mudanças mais profundas na composição do gasto.

Segundo, e mais importante, porque dificilmente outra regra de despesa resistiria a um sistema orçamentário que não é capaz de dar clareza aos efeitos futuros de decisões tomadas no presente. Com um orçamento míope, ajustes incrementais no gasto obrigatório sempre tenderam a parecer suportáveis, justamente porque só explicitamos o custo imediato da medida.

Em “O sol também se levanta”, de Hemingway, dois personagens conversam. “Como você faliu?”, pergunta um deles. “De duas formas”, responde o outro. “Gradualmente e, então, de repente”. O destino do teto de gastos pode até resultar de erros em sua concepção. Mas não há regra que sobreviva ao contínuo aumento dos gastos obrigatórios e à nossa histórica negligência com os impactos das escolhas do presente. O descumprimento do teto é também força desses maus hábitos. Qual será o gasto que, em 2022, de repente, levará ao rompimento do teto?

Daniel Couri é economista e diretor da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal.

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