Lei de Responsabilidade Fiscal completa 20 anos parcialmente suspensa por causa do coronavírus

Mecanismo da própria LRF interrompe medidas de ajuste fiscal em casos de calamidade ou quando a economia crescer abaixo de 1%

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São Paulo

A LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) completa 20 anos nesta segunda-feira (4) em uma situação inusual. Devido à decretação de estado de calamidade pública pelo governo federal por causa da pandemia de coronavírus, parte das regras previstas nessa legislação está suspensa.

A União, por exemplo, está dispensada do cumprimento da meta que limita o deficit e do bloqueio de despesas previstos na lei orçamentária de 2020. Para estados e municípios, ficam suspensos prazos para ajuste no excesso de despesa de pessoal e endividamento não só durante a pandemia mas até que a economia cresça pelo menos 1%.

Isso ocorre por causa de mecanismos previstos na própria LRF, que permitem suspender medidas de ajuste nas contas públicas para que seja possível aumentar despesas em situações como a atual.

A LRF foi sancionada em 4 de maio de 2000 por Fernando Henrique Cardoso, após tramitar por quase um ano no Congresso. Chegou ao Legislativo após longa negociação do governo com governadores e prefeitos, como destaca José Roberto Afonso, professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e membro da equipe do Ministério do Planejamento que elaborou o projeto.

Nem todas as medidas previstas na lei foram implementadas nesses 20 anos. Parte delas foi considerada inconstitucional. Outras foram ignoradas por prefeitos, governadores ou presidentes da República, que encontraram formas de burlar as regras com ajuda do Judiciário e do Legislativo.

O então presidente Fernando Henrique Cardoso discursa durante cerimônia de sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal, no Palácio do Planalto. (04.05.2000) - Ichiro Guerra/Folhapress

“Os problemas que nós tivemos têm mais a ver com políticas fiscais que se revelaram equivocadas e práticas fiscais incorretas, que inclusive geraram o impeachment de uma presidente [Dilma Rousseff], do que com a responsabilidade fiscal. A LRF dá as regras do jogo. Não trata do jogador e não trata do resultado do jogo”, afirma Afonso.

Ele diz que a LRF ajudou a criar uma nova cultura, mas que ela deveria ser complementada por outros projetos que não foram aprovados. Afonso cita como exemplo a falta de um limite de endividamento para o governo federal, algo que poderia ser aprovado neste momento para sinalizar que o país voltará ao caminho do ajuste fiscal após o final da pandemia e que daria ao Brasil uma regra que existe na maior parte dos países desenvolvidos.

“Muitos dos problemas que a gente teve com a LRF é que se implantou uma disciplina muito dura para estados e municípios, e não sobre a União. E, quando estados e municípios desandaram, desandaram por causa da União, sobretudo quando o governo federal saiu dando empréstimos para eles em 2014. Não posso ter regras fiscais diferenciadas como tem hoje e, ao contrário do que muita gente fala, muito mais duras para estados e municípios do que para a União.”

Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão ligado ao Senado, afirma que a LRF é a maior inovação na área de contas públicas dos últimos 40 anos, principalmente por prever controles para as finanças de estados e municípios e ajudar a conter a piora nos indicadores da dívida gerada pelas políticas adotadas pelos governo Lula e Dilma Rousseff a partir de 2010.

Deputados comemoram a aprovação do projeto da Lei de Responsabilidade Fiscal no plenário da Câmara em 25/01/2000. Entre eles, o atual presidente Jair Bolsonaro (à esquerda na foto). Ele votou a favor do texto. - Carlos Eduardo/Folhapress

Um problema, segundo Salto, foi a cooptação dos Tribunais de Contas Estaduais, que permitiram a governadores reinterpretar as regras para contabilização de despesas com pessoal, tirando terceirizados da conta, por exemplo.

Ele cita também o caso do Rio de Janeiro, que aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal criado no governo Michel Temer, não cumpriu nenhuma contrapartida de ajuste fiscal prevista nessa legislação e ainda usou o dinheiro que iria para o pagamento da dívida com a União para conceder reajuste salarial a servidores.

“A prática da lei precisa ser melhorada. Não basta ter regras, precisamos ter as lideranças políticas mais atentas a esse compromisso com a responsabilidade fiscal”, afirma.

“Não é só a LRF. Todo esse arcabouço de contas públicas é moderno e com regras dignas de países de desenvolvidos. Mas isso não é suficiente para fazer com que a gente melhore as contas públicas, porque o espírito da responsabilidade fiscal não está compartilhado na sociedade. Sempre prevalece aquela ideia de que gastar mais é melhor. E nem sempre isso é verdadeiro.”

O diretor-executivo da IFI cita uma frase do especialista em contas públicas italiano Alberto Alesina, que se disse cético em relação a regras fiscais, pois os países que não as cumprem são, normalmente, aquelas que mais precisam dessas limitações.

“Você cria um monte de regras, mas a dívida continua aumentando, os gastos continuam sendo autorizados. Tudo isso depende não só de regras, mas da prática”, afirma Salto.

“Após esses 20 anos de LRF, é importante que a gente renove o espírito da responsabilidade fiscal. E ela precisa de ajustes. Alguns estados voltaram a ter aumento de dívida. Ela é bem completa, mas precisa ser cumprida. No pós-crise, a gente tem um encontro marcado com essa discussão.”


ALGUNS PONTOS DA LRF E ENTRAVES À APLICAÇÃO DA LEI

  • Obrigação de estabelecer e cumprir metas anuais relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública (suspensa por causa do decreto de calamidade pública)
  • Avaliação bimestral para verificar necessidade de bloquear gastos do Orçamento da União (suspensa por causa do decreto de calamidade pública)
  • Indicar medidas de compensação em caso de concessão de benefício tributário com renúncia fiscal
  • Indicar origem dos recursos para seu custeio de aumento das despesas obrigatórias
  • Estabelece limite para despesa com pessoal para União, estados e municípios (descumprido por vários estados e municípios com aval de tribunais de contas)
  • Redução temporária da jornada e salário de servidores públicos (em julgamento no STF)
  • Bloqueio de repasses para entes que estejam fora dos limites de gastos (liminares do STF garantem repasses)
  • Presidente da República deveria propor limites para a dívida do setor público (não implementada)
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