Governo separa 'PIB público' e 'PIB privado' para tentar mostrar que economia vai bem

Recorte do PIB usado pela Secom não é usado pelo IBGE; estratégia é questionada por especialistas

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Brasília

Na tentativa de mostrar que a economia do país vai bem, a Secom (Secretaria de Comunicação) da Presidência da República apresentou em suas redes sociais um recorte do PIB (Produto Interno Bruto) que não é usado pelo IBGE.

A estratégia é questionada por especialistas. A Presidência afirma que o PIB privado cresceu 2,75%, enquanto o PIB público recuou 2,25%.

A publicação, que cita o Ministério da Economia como fonte, afirma que no modelo adotado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o Estado deixa de ser protagonista e dá espaço à iniciativa privada.

Nesta semana, o IBGE divulgou o resultado do PIB do ano passado, que teve alta de 1,1%. O dado veio menor do que o projetado inicialmente pelo mercado e pelo governo e consolidou 2019 como o terceiro ano seguido de fraco crescimento da economia.

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes (Economia) durante evento no Palácio do Planalto, em Brasília - Evaristo SA - 12.jan.2019/AFP

A publicação da Secom afirma que o resultado "fica abaixo do índice de mentiras de quem torce contra o Brasil" e que o recuo do PIB público é "bom pro Brasil".

De acordo com a professora de Economia da USP (Universidade de São Paulo) Laura Carvalho, a conta feita pelo governo não é reconhecida pelo IBGE e não é feita por outros órgãos estatísticos no mundo. "Isso fere os princípios básicos do conceito de PIB, que exige que se trate a economia como um todo", disse.

A economista afirma que a conta é ideológica e traz problemas metodológicos.

Essa separação cria distorções, segundo ela, porque, muitas vezes, bens produzidos pelo governo são consumidos pelas famílias. Produtos de empresas também são usados pelo governo, como na compra de medicamentos pelo SUS, por exemplo.

Outro problema, para a pesquisadora, estaria no fato de o cálculo do governo incluir investimentos de estatais na conta do setor privado.

A professora também questiona o argumento do governo de que o crescimento privado está substituindo o setor público.

"Não é que houve uma alocação melhor de recursos. É simplesmente que o governo está com menos recursos e está investindo menos, gastando menos com infraestrutura. Isso não tem de ser celebrado", afirmou.

O cálculo também foi criticado pelo economista da FGV e ex-secretário de Política Econômica Manoel Carlos Pires. Para ele, a divisão entre PIB público e privado não faz sentido.

"Essas coisas não são separáveis nesses termos. Quando o governo usa recursos para investir, de maneira geral, quem produz o bem de capital ou faz a construção é o setor privado, que é contratado para produzir esse tipo de bem ou de serviço. Por essa razão, essa abordagem está errada. Não existe PIB do governo", afirmou em artigo que analisa o estudo da SPE.

O economista e professor da Unb (Universidade de Brasília) Roberto Ellery, que chegou a colaborar com a equipe econômica de Bolsonaro, também é crítico do modelo. Em artigo, ele afirma não ser novidade que o consumo do governo cresça menos do que o consumo das famílias e do investimento.

Em uma análise histórica, o economista afirma que dos últimos 23 anos, 15 registraram crescimento menor do consumo do governo, em comparação com o consumo das famílias.

Além de questionar pontos metodológicos do cálculo, ele ressalta que o esforço do governo atual em fazer reformas ainda não é sentido nas contas.

"Os frutos desse esforço ainda vão demorar um bocado para aparecer. Entendo que exista uma tentação para mostrar resultados, mas é preciso tomar cuidado", afirma.

Em nota, o Ministério da Economia disse que o fato de o IBGE não calcular esse indicador não tem relação com sua validade e que os conceitos de PIB público e privado, apesar de menos difundidos, não são novidade em análises macroeconômicas.

"A SPE se baseia em estudos técnicos e refuta qualquer afirmação de que seu corpo de analistas elabore indicadores não amplamente fundamentados na teoria econômica", diz a nota.

Pelo Twitter, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, rebateu as críticas ao afirmar que apresentações de outras gestões do ministério e também do Banco Central usavam o conceito de PIB privado.

O diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), Felipe Salto, afirma não ver o cálculo como um grande problema, considerando que é "um exercício feito pelo ministério".

Ele reconhece que a metodologia é inusitada e afirma ser preciso observar que os gastos obrigatórios do governo não estão em queda, enquanto o investimento público segue em baixa. "Nesse sentido, é preocupante", disse.

Após a divulgação do PIB de 2019, o ministro Paulo Guedes (Economia) afirmou que o resultado já era esperado e que a atividade está acelerando. Ele ressaltou que o desempenho da economia foi melhorando gradualmente ao longo do ano passado.

Subordinado de Guedes, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, usou tom menos otimista e afirmou que o crescimento do ano passado foi muito baixo, não é normal e causa frustração na sociedade.

Na quarta (4), Bolsonaro ironizou o resultado ao pedir que um humorista respondesse às perguntas da imprensa sobre o PIB.

No dia seguinte, ele se queixou pelo fato de a imprensa ter publicado que ele fez piada com o dado.
O presidente afirmou ter ouvido de empresários que o Brasil está bem.

O PIB é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos pelo país. Ele revela o valor adicionado à economia em um determinado período.

O dado, pela ótica da demanda, é uma composição de consumo das famílias, consumo do governo, investimento e a diferença entre exportações e importações.

Nota técnica produzida pela SPE (Secretaria de Política Econômica) do Ministério da Economia em novembro explica a metodologia usada para separar PIB público e privado, algo que não é feito pelo IBGE.

O cálculo do chamado PIB público feito pela secretaria parte do consumo do governo, divulgado pelo IBGE.

Como o dado de investimento inclui os setores público e privado, a pasta usa projeções de pesquisadores e dados do Tesouro para estimar qual a parcela dessa conta sob responsabilidade do governo.

Embora a Secom tenha usado o dado após a divulgação do PIB do ano completo de 2019, o Ministério da Economia informou que a base da informação é uma nota produzida em janeiro sobre os dados do PIB do terceiro trimestre de 2019.

No documento, a SPE compara o terceiro trimestre do ano passado com o mesmo período de 2018 para chegar à alta de 2,75% no PIB privado e ao recuo de 2,25% no PIB público.

O resultado, quando são acumulados quatro trimestres, são mais modestos, com 1,81% de crescimento do PIB privado e 1,11% de queda do PIB público.

O cálculo, portanto, não leva considera o resultado do quarto trimestre do ano, quando foi observada uma reversão na tendência de contração dos gastos do governo e expansão do investimento.

No último trimestre de 2019, o consumo do setor público expandiu 0,3% em relação ao mesmo período de 2018. Se comparado com o trimestre anterior, a alta foi de 0,4%.

O investimento, por sua vez, caiu 0,4% nos últimos três meses do ano, se comparado com período equivalente de 2018. Na comparação com o trimestre imediatamente anterior, o recuo nessa conta foi de 3,3%.

Em nota emitida após a divulgação do resultado do ano pelo IBGE, a SPE também sustentou seus argumentos na mesma base.

O órgão afirmou que, embora o crescimento de 1,1% seja menor do que os dados revisados de 2017 e 2018, houve melhora na composição do PIB, com crescimento privado em substituição do público.

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