Problema de redação na norma do teto impede que se evite estouro do gasto

Alguns economistas já sinalizam o risco, mas governo não pode antecipar medidas previstas

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São Paulo

Vários economistas sinalizam que a União corre o risco de descumprir o chamado teto de gastos em 2021. Mesmo que fique matematicamente provado que isso vai ocorrer, o governo não pode recorrer às medidas prevista na norma para evitar o estouro.

A emenda constitucional que criou o teto de gastos previu que, quando a despesa rompe-se o limite, seria possível a adoção de uma série de medidas para interromper o crescimento da despesa. No entanto, essas medidas de controle, chamadas de gatilhos, não podem ser antecipadas. Um problema na redação das regras veta que o governo envie ao Congresso um Orçamento prevendo o estouro do teto.

Do jeito que o texto final ficou, os gatilhos só podem ser acionados é se o governo estourar o Orçamento do ano corrente, em razão de restos a pagar de exercícios anteriores.

Dada essa redação, o envio pelo governo de um projeto de lei com estouro do teto pode ser considerado até um crime de responsabilidade, com implicações no TCU (Tribunal de Contas da União), afirma Marcos Mendes, colunista da Folha e um dos criadores da regra do teto de gastos.

Mendes lembra que na redação original da Emenda Constitucional 95, o presidente da república poderia mandar um Orçamento acima do teto para o Congresso e isso ativaria os gatilhos. O Congresso, no entanto, alterou o texto, obrigando o Executivo a enviar um projeto de lei orçamentária anual (PLOA) dentro do teto. “Ninguém percebeu que isso impedia a ativação dos gatilhos”, diz Mendes.

A regra estabelece que o avanço das despesas previstas para o ano não pode ser superior à inflação acumulada nos 12 meses encerrados em junho do ano anterior. Quando isso ocorre, os gatilhos são acionados.

Esses gatilhos, elencados no artigo 109 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), impedem a criação de despesa obrigatória e adoção de qualquer medida que leve ao aumento de gastos, como a criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, a renegociação de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e a concessão ou ampliação de incentivos fiscais.

Reajustes do salário mínimo acima da inflação também são vedados.

Há gatilhos prevendo congelamento de gastos com o funcionalismo. São vetados reajustes salariais e criação ou majoração de benefícios para servidores públicos e militares, criação de cargos e mudanças na estrutura de carreiras que impliquem aumento da despesa, contratação de pessoal e a realização de concurso público.

Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado) avalia que houve na mudança de redação na norma uma contradição regulatória. "Ao mesmo tempo em que a regra diz que o PLOA não pode romper o teto, manda acionar gatilhos se ele for rompido”, afirma

Ciente desse problema, a equipe econômica apresentou em novembro, dentro da chamada PEC Emergencial (Proposta de Emenda à Constituição com várias medidas para contar avanço de despesas), que os gatilhos poderiam ser acionados quando 95% da receita corrente indicasse estouro do teto. Com a pandemia, contudo, a PEC Emergencial ficou parada no Congresso.

Uma saída para o problema, sem envolver nova legislação, seria a realização de um acordo entre governo, TCU e STF (Supremo Tribunal Federal). As partes poderiam acordar que cumprir o limite é impossível e abrir espaço para os gatilhos.

No entanto, não há sinais de que uma solução do tipo esteja sendo costurada. “Estamos a um mês do prazo para envio do PLOA e até agora não há nenhuma discussão a respeito do acionamento dos gatilhos, então o governo está entendendo que consegue cumprir o teto no ano que vem”, diz Salto.

O IFI, no entanto, trabalha com uma projeção de alto risco da ruptura do teto em 2021, dado que a redução de despesas discricionárias já está perto do limite mínimo para viabilizar o funcionamento da máquina pública. Isso significa que uma redução ainda maior desses gastos pode acabar paralisando o Estado.

Mendes entende que a ideia de um acordo, como feito para a regra de ouro, é arriscada e defende em vez disso que o problema seja solucionado via legislação. “No contexto atual, em que o próprio Poder Executivo quer encontrar brechas para driblar o teto, você pode gerar uma mudança constitucional que acaba anulando esse limite, fazendo com que ele perca o sentido.”

Para Salto, uma solução que permita o acionamento dos gatilhos pode dar fôlego para que governo e Congresso elaborem uma proposta alternativa para o teto de gastos. “Você ficaria com um cenário de gatilhos acionados, sem explosão da despesa, e nesse meio tempo montar uma revisão das regras vigentes”, diz.

Mesmo sem o disparo dos gatilhos, parte dos vetos impostos por ele já estão sendo implementados na prática pelo governo, como a suspensão de reajustes para o funcionalismo e a realização de concursos públicos, diz Mendes. A exceção são os militares.

A função dos gatilhos, nesse caso, seria fortalecer a posição do governo, que ganharia status de determinação constitucional, em face de pressões de setores pela expansão de gastos.

Crítico do teto, o economista e professor da FGV Nelson Marconi diz que o acionamento dos gatilhos pode impactar despesas de custeio com equipamentos públicos, como hospitais, e expansão de gastos com programas como seguro-desemprego e financiamento da folha de pagamentos.

“Limitar os gastos com pessoal tudo bem, mas tem outras áreas como ciência e tecnologia, investimentos públicos que não poderão ser feitos. Numa situação como a crise atual, que é inclusive social, você disparar os gatilhos seria muito prejudicial para o país”, afirma.

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