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Economia

Regras fiscais afetam investimento público

Analistas avaliam que modelo terá de ser revisto, pois normas atuais são conflitantes
Aplicações financeiras Foto: Pixabay
Aplicações financeiras Foto: Pixabay

BRASÍLIA - Num momento em que tenta reequilibrar as contas públicas, o governo se cercou de regras fiscais que acabam por prejudicar o investimento público. O Brasil tem hoje de cumprir normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), além de um teto de gastos, uma meta fiscal e a regra de ouro, princípio constitucional pelo qual o governo não pode se endividar para honrar despesas correntes, como folha de salários. O problema é que elas são conflitantes em alguns aspectos. Um deles é justamente o investimento público. Enquanto, de um lado, a regra de ouro estimula a realização dessas despesas, de outro, a meta fiscal e o teto de gastos obrigam a equipe econômica a sacrificar justamente essa rubrica para conseguir cumprir seus objetivos.

Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, esse quadro levará o governo a fazer alguma flexibilização dessas regras para conseguir cumpri-las nos próximos anos. Isso, no entanto, precisará ser acompanhado de outras medidas que deixem claro que o governo não vai se descuidar do compromisso fiscal.

- É uma espécie de babel das regras fiscais, cada uma fala uma língua. Esse problema não é de hoje, mas, com a restrição fiscal, ficou exacerbado. É preciso ter uma harmonização - afirma o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, Felipe Salto.

Investimento foi 1,7% do PIB em 2017

O analista sênior de contas públicas da consultoria Tendências, Fabio Klein, afirma que a regra de ouro é a principal candidata a uma revisão a curto prazo. No entanto, os investimentos continuarão a ser achatados se o governo não atacar as despesas obrigatórias, especialmente com Previdência e salários.

- Existe um desencontro de regras fiscais. A regra de ouro é favorável ao investimento, mas associada a outras regras, muitas vinculações constitucionais e despesas obrigatórias, ela não impede o achatamento do investimento - afirmou Klein, acrescentando: - É preciso buscar uma solução estrutural. O mercado receberia mal uma mudança na regra de ouro. Mas, se ela for associada a uma reforma da Previdência, por exemplo, o governo estará entregando uma solução estrutural. Isso deixa o cenário mais favorável.

O próprio governo defende mudanças na regra de ouro. Ao GLOBO, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirma que, a exemplo das demais normas fiscais, a regra de ouro tem que ser adequada para dar ao governo condições de retorno à normalidade. No caso do teto de gastos, quando o limite é estourado, a lei determina que o governo fique impedido de realizar concursos e contratações até que os indicadores voltem a se enquadrar. Qualquer mudança nesse sentido, contudo, não pode acontecer esse ano, uma vez que propostas que alterem a Constituição estão impedidas de tramitar enquanto durar a intervenção federal no Rio de Janeiro.

- Dessas quatro regras, a regra de ouro é a única que não tem nenhum mecanismo de transição. Em todas as outras, se o governo descumprir, você tem penalidades muito claras e instrumentos para se adequar, ao longo do ano fiscal, àquelas metas. A regra de ouro é tudo ou nada. Se houver descumprimento, é um crime pelo qual todos vão responder, do presidente da República até, infelizmente, o secretário do Tesouro - disse.

O pesquisador do Ibre/FGV Manoel Pires destaca que o engessamento orçamentário e o excesso de regras fiscais contribuíram para reduzir os investimentos públicos. Um indicativo disso é que a taxa brasileira é mais baixa que a de outros países emergentes com nível de endividamento semelhante. Em 2017, a taxa brasileira ficou em apenas 1,7% do PIB (considerando só os investimentos do governo central, esse número é ainda menor, de 0,69%), sendo que o ideal seria que o investimento público estivesse em 4% do PIB.

- O arcabouço fiscal, combinado com a situação financeira crítica das contas públicas, contribuiu em muito para piorar o cenário para os investimentos. O governo precisa discutir prioridades e reduzir a rigidez orçamentária - afirma Pires.

Rombo previsto de R$ 254 bi em 2019

R$ 564,7
bilhões
8,5
As contas do governo
8,1
Em % do PIB
7,3
6,8
6,7
6,6
6,6
gasto com benefícios,
em 2017
6,4
Evolução das despesas com benefícios
previdenciários
R$ 47,5
bilhões
Evolução dos investimentos do governo central
1,34
1,23
1,2
1,19
1,15
1,04
0,93
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gastos com
investimentos em 2017
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
Fonte: Tesouro Nacional
As contas do governo
Em % do PIB
Evolução das despesas com benefícios previdenciários
Evolução dos investimentos do governo central
8,5
8,1
7,3
6,8
6,7
6,6
6,6
6,4
1,34
1,23
1,2
1,19
1,15
1,04
0,93
0,69
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
R$ 47,5
bilhões
R$ 564,7
bilhões
gastos com
investimentos em 2017
gasto com benefícios,
em 2017
Fonte: Tesouro Nacional

A regra de ouro determina que as despesas com investimentos devem ser iguais ou superiores às emissões de dívida. Essa é uma forma de assegurar que o governo não se endivide para arcar com despesas do dia a dia. No entanto, há um desequilíbrio de R$ 254,3 bilhões no Orçamento previsto para 2019. Isso ocorre porque o governo tem despesas obrigatórias muito elevadas (especialmente com folha e Previdência) que pressionam a dívida pública.

Para conseguir ficar dentro do teto de gastos e entregar a meta fiscal, a alternativa foi sacrificar o que pode ser cortado, ou seja, passar a tesoura nos investimentos. De acordo com o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2019, as despesas discricionárias (nas quais estão os investimentos) serão de R$ 98,4 bilhões no ano que vem e devem passar para R$ 81,5 bilhões em 2020 e para R$ 52,4 bilhões em 2021.

Para Salto, da IFI, enquanto o governo não resolver as duas maiores despesas obrigatórias dentro do Orçamento, gastos com pessoal e com Previdência, não será possível recuperar o investimento:

- Sem dar uma solução para gastos com pessoal e Previdência é muito difícil fazer ajuste fiscal sem penalizar investimento.

Mansueto ressalta que os investimentos não estão completamente paralisados, uma vez que o governo passou muito dessa responsabilidade ao setor privado, por meio de concessões e privatizações. O secretário destacou que, se o Estado quer voltar a investir, tem de equilibrar primeiro a situação das contas públicas, o que passa por aprovar reformas estruturais:

- Seria ótimo que o investimento público crescesse, mas estamos em uma situação de déficit muito grande. O governo só vai recuperar a capacidade de investimento quando voltarmos a ter equilíbrio fiscal, quando tivermos algum superávit.

Segundo Almeida, mesmo em tempos de vacas gordas, o investimento no Brasil foi baixo. Entre 1989 e 2018, a maior taxa foi de 1,4% do PIB, uma parte disso turbinada por subsídios. O secretário explica que, da forma como foi construída, a Constituição brasileira preza por garantir o bem-estar social, com suporte do governo para serviços essenciais. Com essa escolha, a capacidade de investimento acaba ficando reduzida. O problema, diz, é que essa rede de suporte acabou ficando muito extensa. Segundo dados do Tesouro Nacional, os gastos com benefícios previdenciários subiram de 6,8% do PIB em 2014 para 7,3% em 2015, 8,1% do PIB em 2016 e 8,5% do PIB em 2017:

- Em geral, o brasileiro quer mais proteção do Estado, como um país europeu. O desafio é a gente conseguir as duas coisas: ter o Estado de bem-estar social que a sociedade brasileira quer e, ao mesmo tempo, ter alguma capacidade de investimento. O Brasil nunca vai conseguir investir como a China porque a população brasileira não quer ter a estrutura social da China. Foi uma escolha da sociedade. O nosso problema é que ela se tornou muito extensa.