O presidente Michel Temer Foto: Jorge William / Agência O Globo

Temer de saída: o legado para Bolsonaro

Em 2 anos e meio, escândalos impediram avanço de reformas, e desafio de completar obra na economia ficará para o próximo presidente

por Catarina Alencastro e Martha Beck

Quando assumiu a Presidência da República no dia 12 de maio de 2016, após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Michel Temer sonhava em fazer um governo reformista e colocar o Brasil “nos trilhos” novamente. Entregará a faixa presidencial com o mais baixo índice de aprovação de um presidente e com a gestão maculada por denúncias de corrupção que quase lhe custaram o mandato. Acusado de envolvimento com empresa do setor portuário, cercado por assessores investigados, Temer teve que abortar os planos de aprovar uma reforma da Previdência, mas acabou conseguindo fazer vingar a trabalhista, além de outras relevantes medidas econômicas, herdeiro que foi de uma economia em recessão.

A fragilidade política de Temer prejudicou o esforço pela mudança na Previdência. O envolvimento pessoal do presidente no escândalo de corrupção gerado pela delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista, controladores do grupo J&F (holding da qual faz parte o frigorífico JBS) fez com que o Planalto gastasse seu capital político para salvar Temer de duas denúncias da Procuradoria-Geral da República ao Congresso. Se havia alguma chance de a reforma ser aprovada, foi sepultada após as denúncias.

Os analistas, no entanto, reconhecem que Temer conseguiu avanços como a aprovação da Taxa de Longo Prazo (TLP) para os empréstimos do BNDES, que reduziu o crédito direcionado e deu novo fôlego ao mercado de capitais. Foram feitos leilões nas áreas de petróleo e energia. O governo conseguiu ainda privatizar cinco das seis distribuidoras deficitárias da Eletrobras.

Conquistas inacabadas na economia

O presidente eleito Jair Bolsonaro receberá das mãos de Michel Temer um conjunto de reformas estruturais inacabadas e uma economia que ainda não levantou voo. Em quase três anos de mandato, Temer conseguiu aprovar no Congresso um teto para os gastos públicos e a flexibilização da legislação trabalhista, essenciais para a retomada do crescimento. Nesse período, o Banco Central ganhou espaço para reduzir a taxa básica de juros e deixá-los no menor patamar da história: 6,5% ao ano.

No entanto, ficou pelo meio do caminho a medida que daria sustentabilidade ao teto: a reforma da Previdência. E no campo trabalhista, faltaram ajustes que deixaram no limbo algumas categorias, como os intermitentes (que trabalham por hora e podem ter vários patrões). Essas correções estavam numa medida provisória que caducou no Congresso e, agora, terão que ser feitas aos poucos por projetos de lei ou na própria Justiça do Trabalho.

— As reformas fiscais, por exemplo, ficaram pela metade. A reforma da Previdência e o teto de gastos eram gêmeas siamesas e não podiam ser sido separadas. Isso foi um erro — afirma a economista Monica de Bolle, diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University.

O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, avalia que o teto — regra pela qual as despesas só podem crescer com base na inflação do ano anterior — mudou a trajetória expansionista dos gastos do governo. No entanto, aponta que o próximo governo ainda tem um longo caminho a percorrer antes de reequilibrar as contas e estabilizar a dívida pública:

— O teto serve como âncora, mas sozinho não fica em pé. Sem a reforma da Previdência, ele já será rompido em 2021. E mesmo que o governo aplique as medidas corretivas previstas em caso de descumprimento, o efeito fiscal será menor.

Salto destaca que, com o cumprimento do teto, as despesas do governo federal devem passar de 19% para 14,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2030. No entanto, caso ele seja rompido e os “remédios” sejam aplicados, como suspender a concessão de reajustes salariais, o percentual da despesa irá para 16% do PIB.

Questionado sobre a decisão de ter encaminhado ao Congresso a emenda constitucional do teto de gastos antes da reforma da Previdência, o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, afirmou que a discussão sobre o teto estava madura há dois anos:

— O teto de gastos foi aprovado em dezembro de 2016. Não havia consenso para aprovação da reforma da Previdência. A alternativa que tínhamos era aprovar o teto de gastos ou não. Não estava madura a discussão. Não fizemos uma escolha entre A ou B. Essa crítica que com frequência é feita é absolutamente improcedente — disse o ministro.

No caso da reforma trabalhista, as mudanças aprovadas reduziram fortemente o volume de processos judiciais: 40% apenas nos seis primeiros meses. No entanto, o governo ainda não conseguiu solucionar alguns problemas.

Os trabalhadores intermitentes, por exemplo, ainda precisam de uma proteção previdenciária. Se hoje ficarem doentes e não tiverem recolhido ao INSS o suficiente para um salário mínimo, não poderão receber o auxílio-doença. Essa proteção estava numa MP que perdeu a validade depois que o presidente, enfraquecido politicamente, não teve forças para aprovar o texto.

O grampo que travou o governo

Levado à presidência da República após o impeachment de Dilma Rousseff, Michel Temer efetivamente planejou fazer reformas econômicas. Mas viu sua administração empacar quando veio a público a gravação de Joesley Batista na qual profere a fatídica frase: "Tem que manter isso, viu?". A gravação atestava o que a Procuradoria-Geral da República classificou como “anuência” do presidente ao pagamento de propina mensal para comprar o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), por parte de um dos donos da JBS, Joesley Batista. O episódio selou o destino de Temer e virou marco de sua passagem pela Presidência.

Os tropeços de Temer começaram menos de duas senanas depois da posse. O ministro do Planejamento Romero Jucá apareceu em diálogos gravados pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado dizendo que era preciso "estancar a sangria", em referência à Lava Jato. A péssima repercussão do vazamento obrigou Jucá a deixar a Esplanada. Um a um foram tombando os auxiliares mais próximos do presidente. Até assessores palacianos reconhecem que foi um erro Temer se cercar de investigados da Lava-Jato.

O próximo a cair por problemas de conduta foi o ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima, que despachava no andar de cima de Temer e respondia pelo maior ativo de sua administração: a relação com o Congresso. Geddel foi acusado pelo então ministro da Cultura Marcelo Calero de tê-lo coagido a liberar uma obra de seu interesse em Salvador. Meses depois de entregar sua demissão, Geddel voltou a ser notícia ao ter suas digitais nos R$ 51 milhões encontrados pela polícia em malas num apartamento vazio, que acabou ganhando a alcunha de "bunker de Geddel".

Naquele fim de 2016, o governo preparava o texto da principal reforma que planejava levar a cabo, a da Previdência. À época, Temer calculava ter cerca de 340 deputados em sua base aliada, número mais do que suficiente para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC). E ainda contava com o aliado Eduardo Cunha na Presidência da Câmara para pôr em pauta a matéria. Cunha foi preso, Rodrigo Maia o sucedeu e o governo perdeu o timing.

Quando chegou à Câmara, no início de 2017, o texto foi atacado pelo efeito sobre os trabalhadores. A falha em comunicar para a população a importância de sanear as contas do INSS para garantir as aposentadorias futuras é apontada por auxiliares como outro erro grave da administração de Temer.

Enquanto o texto passeava pela Câmara e emissários do governo tentavam driblar as polêmicas em torno da proposta, veio o golpe fatal. Na tarde do dia 16 de maio, O GLOBO revelou gravação do dono da JBS, Joesley Batista, conversando com Temer numa área externa do Palácio do Jaburu, tarde da noite. Se as circunstâncias da conversam já eram suspeitas, o conteúdo era ainda mais devastador. Temer teria dado anuência para Joesley pagar para a compra do silêncio de Cunha. No dia seguinte, Temer chegou a cogitar a renuncia. Mas resistiu.