Rafael Muñoz

Economista líder para o Brasil do Banco Mundial, já trabalhou para a instituição na Ásia e na África.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Rafael Muñoz

Compartilhar 20% do leilão do pré-sal não vai resolver a crise dos estados

Propostas não mencionam uso de recursos para incentivar reformas e tratar os déficits fiscais

Ao tomar posse no dia 1º de janeiro, a maioria dos governadores vai se deparar com contas públicas em situação ruim ou muito ruim em seus respectivos estados. Alguns assumirão estados em situação de “calamidade fiscal”. 

Como chegamos a esse ponto?

Primeiro, devido ao colapso das receitas e transferências provenientes da União, em função da forte crise econômica que assolou o Brasil. As receitas se estabilizaram com a recuperação moderada da economia, mas as perspectivas de receita futura não são muito boas, em vista das projeções do PIB e do potencial de produção do país.

Segundo, no Brasil as regras fiscais dos governos subnacionais reforçam os gastos pró-cíclicos em épocas de franco crescimento. As despesas com setores importantes (por exemplo, saúde e educação) são atreladas a receitas fiscais, que subiram para níveis sem precedentes durante o período de rápido crescimento. Além disso, os limites numéricos definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, expressos como parcelas das receitas (por exemplo, a regra da LRF referente ao funcionalismo), também reforçam os gastos correntes pró-cíclicos, pois possibilitam o aumento dos gastos sempre que há um aumento das receitas.

00
Homem trabalha em plataforma de petróleo do pré-sal, em Santos (SP) - AFP

No entanto, a capacidade dos governos de reduzir as despesas correntes é limitada por uma certa rigidez inerente (estabilidade dos servidores públicos, impossibilidade de cortar salários) e, portanto, essas despesas não podem ser ajustadas aos novos volumes de receita. Além disso, regras federais –como o salário mínimo, o piso salarial dos professores e a regra de paridade da maioria dos aposentados do setor público– também limitam a flexibilidade dos estados em relação aos gastos. Em 2017, os gastos rígidos (gastos correntes mais o serviço da dívida) excederam 100% da receita líquida em 5 estados e 90% em quase todos os estados, à exceção de apenas três.

Com menos receitas e mais despesas, o excedente operacional diminui. Para se ajustarem, os Estados reduziram o custeio (embora ele represente apenas uma pequena parcela do orçamento total) e cortaram os investimentos. Mas o principal item de despesa, que compreende os salários e as aposentadorias, é muito rígido e, embora muitos estados tenham tentado recorrer à contabilidade criativa e à reclassificação para acobertar gastos com pessoal, no final das contas não conseguem cumprir com os principais indicadores da LRF —principalmente a regra que estipula que as despesas com pessoal não podem exceder 60% da receita total.

Quando a situação chega a esse ponto, as normas institucionais brasileiras automaticamente forçam um ajuste fiscal, pois os governos subnacionais ficam impossibilitados de receber novos empréstimos para investir. Com isso, os estados se veem forçados a amortizar os empréstimos existentes sem receber novos créditos, apesar de atravessarem um período de forte crise fiscal. Já que o crescente déficit de financiamento não pode ser suprido por novos empréstimos, os governos subnacionais são obrigados a atrasar os pagamentos a seus fornecedores para financiar o déficit. Quando não podem mais fazer isso, os governos começam a atrasar os salários (e até as aposentadorias). Como se trata de uma situação insustentável, chega um momento em que os governos param de pagar os empréstimos por completo, decretando estado de “calamidade fiscal". A União acaba tendo que socorrer o estado. 

Este ajuste fiscal forçado não é a solução ideal, por dois motivos. Em primeiro lugar, trata-se de um ajuste de baixa qualidade, pois recai desproporcionalmente sobre variáveis ​​que afetam o crescimento econômico futuro (investimentos), o setor privado (prestadores) e, no final das contas, a qualidade dos serviços públicos (atrasar salários).  Em segundo lugar, a União não dispõe de instrumentos para ajudar os governos subnacionais a reverter a situação antes de precisar socorrê-los. Na verdade, o sistema gera um problema de risco moral, visto que os estados têm incentivos para decretar falência pois sabem que essa é a única forma de receber ajuda da União. Não surpreende que uma nota de política elaborada recentemente pelo Banco Mundial estime que mais estados ficariam insolventes até 2021 em um cenário base; chegando até 17 estados em caso de uma nova recessão em 2020-2021. 

É compreensível que os governadores queiram uma parcela do megaleilão de petróleo do pré-sal, capaz de trazer mais de R$ 20 bilhões para os estados e municípios. Porém, o pré-sal não seria suficiente para sanar uma crise fiscal que, como vimos acima, tem causas bem mais profundas. Um influxo de recursos financeiros seria apenas uma forma de postergar o problema. Em vez disso, os governadores deveriam buscar um acordo mais amplo, que poderia incluir as seguintes medidas:  

Os estados devem assumir a responsabilidade nas áreas a seu alcance. Eles podem realizar ajustes fiscais, apesar das várias limitações mencionadas acima. Vale notar que os aumentos salariais e a contratação de novos funcionários têm um impacto imediato muito forte na massa salarial e no passivo previdenciário, dois pontos centrais do desequilíbrio fiscal na maioria dos estados.  

A União deve liderar o processo de consolidação fiscal. Do ponto de vista político, é difícil esperar disciplina dos governos estaduais se o Governo Federal não for disciplinado. Além disso, a União deve preparar o caminho para reformas na gestão de recursos humanos e da previdência, bem como outras normas impostas pelo Governo Federal (por exemplo, o piso salarial dos professores), para criar o espaço necessário para os governos estaduais implementarem as reformas. 

Criar um novo instrumento para dar liquidez aos estados que empreendem reformas fiscais. As transferências devem ser vinculadas à consecução de objetivos fiscais específicos, ligados a um forte programa de ajuste fiscal. A liquidez pode ajudar a suprir o déficit de financiamento até que o estado possa gerar espaço fiscal suficiente para acessar novos empréstimos. Isso geraria uma abordagem intertemporal de sustentabilidade fiscal, facilitando o uso financeiro dos recursos fiscais economizados no médio e longo prazo pelos governos estaduais atuais, incentivando as reformas.

Para que isso funcione, alguns princípios críticos devem ser mantidos: primeiro, limitar a interferência política na implementação do ajuste fiscal, o que pode exigir a delegação do processo de implementação a terceiros (por exemplo o BNDES ou a STN, com a supervisão independente dos indicadores fiscais pela Instituição Fiscal Independente). Segundo, preservar o princípio da eficiência no ajuste, minimizando as contribuições da União e, ao mesmo tempo, garantindo um ajuste fiscal de maior qualidade. Por exemplo, a ajuda da União pode se restringir a investimentos críticos (por exemplo, manutenção) e repasses para pago a fornecedores, mas não às despesas recorrentes. 

Os R$ 20 bilhões do megaleilão de petróleo do pré-sal parecem ser a proposta mais recente para resolver o problema fiscal dos governos subnacionais. Ela vem na sequência de outras propostas para ajudar os estados, por exemplo, a financiar seus déficits previdenciários. No entanto, nenhuma dessas propostas menciona a necessidade de usar os novos recursos para incentivar as reformas e tratar as causas dos déficits fiscais. Essa solução seria muito melhor do que simplesmente despejar dinheiro no problema. 
 

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.