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Espantalhos e fábulas

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A aproximação das eleições presidenciais de 2018 está produzindo um acirramento do debate entre os economistas brasileiros a respeito da “correta” interpretação do desastre econômico ocorrido no Brasil no período 2014-2016. Para economistas liberais, como Samuel Pessoa e Marcos Lisboa, a razão do desastre foi a adoção de políticas populistas de expansão do gasto público, apoiadas por uma suposta “economia de moto perpétuo” de matriz heterodoxa; segundo a qual todo o aumento do gasto público é autofinanciável pois produziria um aumento do nível de atividade econômica e de emprego de tal monta que o aumento da arrecadação de impostos dele decorrente seria mais do que suficiente para pagar pelo aumento de gastos. 

Para economistas heterodoxos como Nelson Barbosa, contudo, a argumentação de Pessoa e Lisboa é falaciosa, faz generalização indevida a respeito da coesão do pensamento heterodoxo e da eficácia da política fiscal. Com efeito, a “economia do moto perpétuo” pode ser defendida por uma “minoria heterodoxa”; mas não o é pela maioria dos heterodoxos no Brasil. Sendo assim, Pessoa e Lisboa teriam construído um espantalho para então atacá-lo. Além disso, argumenta Barbosa, os resultados da política fiscal dependem nas condições iniciais da economia. Num contexto de capacidade ociosa e desemprego, como o que teria prevalecido no período 2006-2010, uma política fiscal expansionista não só se justifica, como ainda é compatível com aceleração do crescimento, redução da relação dívida pública/PIB e controle da inflação. Já no período 2012-2013, onde essas condições não estavam presentes, o resultado seria diferente. 

Na minha avaliação, Barbosa está correto quanto à tese de que Pessoa e Lisboa criticam um espantalho. Eu não conheço nenhum economista heterodoxo, brasileiro ou não - e eles também não citam nenhum exemplo concreto - que defenda a “economia do moto perpétuo”. O mais próximo que se assemelha a esse argumento é a tese defendida, por alguns heterodoxos, de que sendo a dívida pública denominada em moeda nacional não existe a possibilidade de “calote”, pois o Banco Central pode sempre monetizar parte ou a totalidade da dívida pública. Como o mercado financeiro tem perfeita consciência disso, então não haveria razão para não continuar financiando o Tesouro (e sendo altamente remunerado por isso, dado o valor totalmente anômalo da taxa Selic), mesmo que a dívida pública esteja em trajetória explosiva. Segundo essa argumentação, não existe, portanto, limite para a relação dívida pública/PIB; razão pela qual não devemos nos preocupar com o tamanho do déficit público. 

A hipótese de que não existe limite para a relação dívida pública/PIB quando a dívida é denominada em moeda nacional nunca foi testada empiricamente, de forma que não fazemos a menor ideia do que pode acontecer com o Brasil se a dívida pública continuar aumentando indefinidamente. Na falta de evidências favoráveis ou contrárias a uma hipótese – e não, a Grécia não é evidência contrária, pois a sua dívida está denominada numa moeda que ela não emite, ou seja, o Euro – a prudência e a ética profissional aconselham a considerá-la apenas como uma curiosidade teórica, sem utilizá-la para fundamentar preposições de política econômica. 

Mas se Pessoa e Lisboa atacam um espantalho, Barbosa constrói uma fábula. Ele argumenta que foi a política fiscal expansionista, adotada num contexto em que as condições iniciais eram corretas, que permitiu a aceleração do crescimento com estabilidade da taxa de inflação e redução da dívida/PIB no período 2006-2010. Como apontado por um estudo recente da Instituição Fiscal Independente, a economia brasileira operou entre o final de 2003 e julho de 2008 com um nível de produção acima do potencial; de forma que uma “inflexão da política econômica” na direção de uma expansão fiscal não era a política correta a ser adotada nesse período. A ociosidade na utilização da capacidade de produção aparece, como decorrência da crise financeira internacional, entre o último trimestre de 2008 e o segundo trimestre de 2009. A expansão fiscal realizada nesse período foi, contudo, consequência da irracionalidade na condução da política monetária por parte do Banco Central, na época presidido por Henrique Meirelles, o qual aumentou a meta da taxa Selic a poucos dias antes da eclosão da crise financeira internacional, e a manteve em 13,75% a.a. até janeiro de 2009! 

O imobilismo do BCB pavimentou o caminho para aqueles que, dentro do governo Lula, desejavam uma forte e irrestrita expansão fiscal. A combinação de política fiscal frouxa e política monetária apertada impediu uma queda mais forte da Selic em 2009; fator decisivo na reversão do ajuste cambial feito no final de 2008. Dessa forma, a taxa de câmbio continuou sua tendência de apreciação, o que terminaria por induzir uma forte substituição de produção doméstica por importações a partir do final de 2010. Nesse contexto, a expansão fiscal feita no período 2012-2013 acabou por vazar quase que inteiramente para o exterior, tendo efeitos pífios sobre o crescimento econômico.

*Professor do Dep. de Economia da Universidade de Brasília