Contas à Vista

Gasto tributário (não) tem limite de prazo, nem teto fiscal?

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30 de janeiro de 2018, 7h00

Spacca
A opacidade que envolve o tema das renúncias de receitas no Brasil não pode persistir. O que aparenta não ter limite é o que ainda não foi devidamente exposto a debate público e, portanto, ainda não foi suficientemente controlado. É preciso que a sociedade seja informada exaustiva e abertamente sobre o fato de que renunciar receita equivale a gastar, donde a justeza da locução “gasto tributário”[1].

Para que tenhamos a dimensão das cifras envolvidas e do custo de oportunidade[2] para a Fazenda Pública (um verdadeiro conflito distributivo a ser elucidado em tempos de necessário reequilíbrio nas contas públicas), somente em 2017 foram “gastos” com tais incentivos fiscais mais de R$400 bilhões. Ou seja, uma ordem de grandeza superior[3] aos pisos constitucionais em saúde e educação.

A isso se soma a reiteração de programas de refinanciamento de débitos tributários para sonegadores contumazes (mais de 30 edições de "Refis" nos últimos 18 anos)[4]. Segundo o próprio ministro Henrique Meirelles, “é importante que o projeto [de novo refinanciamento] não seja tão generoso que incentive empresas a não pagar imposto. Porque passa a ser mais negócio não pagar, premiando, portanto, o mau pagador. Esse projeto como está pode não atender às necessidades do País”.

Em nosso ordenamento, é um contundente dado de realidade a falta de transparência e mesmo de controle acerca das balizas mínimas de validade e dos resultados alcançados com os diversos mecanismos de fomento ao mercado pela via tributária. Indiscutivelmente não teríamos chegado a tamanho impasse fiscal, se as renúncias de receitas trafegassem por dentro do orçamento público[5], ao invés de comporem meros demonstrativos que são — formalmente — anexados às leis de diretrizes orçamentárias e de orçamento anual, para fins de cumprimento protocolar do artigo 165, §6º da Constituição e dos artigos 4º, §2º, V e 5º, II da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Diante de tal escassez normativa e em busca de diretrizes estruturadas para o controle das renúncias de receitas, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) aprovou a Resolução 6/2016[6]. Eis um primeiro passo, mas ainda não avançamos suficientemente em aspectos primários, como, por exemplo, a pacificação de entendimento em torno de limites temporais de vigência e a imposição de repercussão fiscal máxima para a concessão, majoração ou prorrogação dos incentivos fiscais.

Recentemente, em editorial denominado “Sem fim, sem fins”[7], a Folha de S.Paulo analisou a falta de balizas temporais, bem como retomou[8] pertinente auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União sobre a inexistência de monitoramento dos resultados alcançados por mais da metade dos programas de subsídios e renúncias fiscais concedidos pelo governo federal.

A perpetuação e a falta de efetividade de tais instrumentos tributários de fomento seletivo ao mercado merecem questionamento não só para torná-los mais racionais, legítimos e transparentes, mas, sobretudo, porque, ao nosso sentir, é necessário e possível — em uma interpretação sistêmica do ordenamento pátrio — extrair, desde já, limites constitucionais e legais vigentes a serem respeitados.

No nível da União, por sinal, é extremamente oportuno situar o inadiável debate sobre os limites temporais e fiscais às renúncias de receitas no contexto da Emenda 95/2016. Apenas no âmbito federal tratamentos tributários discriminatórios (vez que é nuclear ao conceito de renúncia de receita seu caráter não geral) alcançaram R$275 bilhões no ano passado (algo como 4% do PIB) e tendem a superar a casa dos R$280 bilhões em 2018.

Uma cifra tão expressiva somente tem sido perenizada em tempos de tamanho conflito distributivo no orçamento geral da União porque, a seu favor, usualmente se invoca a tese de que tais benefícios poderiam ser juridicamente mantidos indefinidamente por inércia, aguardando lei específica que os revogasse ou que seria legítima a sua concessão por décadas a fio.

Obviamente esse entendimento surgiu há mais de duas décadas, mas, desde 2000, tornou-se incompatível com as balizas fixadas na Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso porque renúncias de receitas só podem ser concedidas ou ampliadas por prazo determinado e mediante o atendimento de condições absolutamente objetivas quanto à comprovação de não afetação das metas fiscais ou à suficiente adoção de medidas compensatórias legalmente admitidas.

A regra geral do art. 14 da LRF determina que o prazo máximo de vigência da renúncia de receita corresponde a três anos (exercício em que entrar em vigor e dois seguintes). Quaisquer previsões temporais mais largas de vigência, aditamentos de prazo ou majorações de escopo da renúncia fiscal devem ser submetidos, individualmente, à reavaliação e à renovação das condições legais iniciais de validade que lhe autorizaram a existência.

Aqui vale reiterar para que não haja dúvidas: ao nosso sentir, trienalmente deveriam ser exigidos teste de conformidade com as metas fiscais e correspondente compensação do quanto essas foram afetadas pelo gasto tributário.

Contudo, há imensa fragilidade na comprovação e/ou compensação em comento, o que decorre do caráter meramente protocolar que a maioria dos gestores públicos adota, em suas metodologias de cálculo, para cumprir os ditames da LRF. São engodos fiscais que sustentam o volume vertiginoso das renúncias de receitas, muito embora devêssemos anualmente aferir o regime jurídico do gasto tributário e seu impacto nas metas fiscais tanto por meio de anexo específico da lei orçamentária, quanto em demonstrativo próprio da lei de diretrizes orçamentárias.

Estamos infelizmente (mal) acostumados e pouco conscientes sobre a existência de renúncias fiscais concedidas/renovadas por décadas, muito embora saibamos ser ilegal, por exemplo, que o Estado assuma despesas oriundas de contratos administrativos por prazo indeterminado (a teor do artigo 57, §3º da Lei 8.666/1993) ou que superem o teto fiscal trazido pela Emenda 95/2016.

Para superar tamanha opacidade interpretativa, urge resgatar no próprio alcance prospectivo do “Novo Regime Fiscal”, a baliza decorrente da vedação prevista no art. 109, §2º, inciso II do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ora, se o desajuste nas contas públicas resultar tão severo a ponto de já não se cumprir o limite global para a expansão das despesas primárias – incluídas ali as despesas obrigatórias e os pisos de custeio da saúde e educação –, ficará vedada também “a concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária”.

Mas não basta, no presente momento, esperar que o teto global de despesas primárias da União seja ultrapassado, para que a restrição às renúncias de receitas se imponha desde já. Como bem destacado no artigo 14 da LRF, caso se comprove terem sido afetadas as metas fiscais, a consequência imediata é a apresentação válida e condicionante de medida compensatória, vez que apenas durante sua vigência podem vigorar as renúncias concedidas.

Do ponto de vista prospectivo, se a Instituição Fiscal Independente, órgão de assessoria do Senado Federal, já indica haver risco de “estouro”[9] do teto fiscal em 2019, deveriam ser redobrados os cuidados com a demonstração de não afetação das metas fiscais ou mesmo deveria ser reforçado o rigor na avaliação das medidas compensatórias apresentadas pela União para instituir, majorar ou prorrogar renúncias fiscais.

No contexto em que as contas federais se encontram, perguntamo-nos como pode a União prosseguir aceleradamente com a instituição/ majoração/ renovação de incentivos fiscais, alguns dos quais com repercussão “trilhionária”[10] para a exploração do petróleo nas próximas duas décadas? O maior risco presente às contas públicas federais reside na seletiva opção de conter apenas as despesas primárias, enquanto se mantém o fluxo histórico desordenado de expansão das renúncias de receitas. Cabe aqui, pois, fixar leitura integrada do citado artigo 109, §2º, II do ADCT com as balizas dadas pelo artigo 14 da LRF ao instituto.

A perenização das renúncias fiscais, de forma alheia ao impacto intertemporal nas metas fiscais, sem medidas compensatórias e sem teste de efetividade sobre seus fins, talvez seja nossa maior agenda de debates para este 2018 no campo das finanças e das políticas públicas. Não há como falar apenas em corte de despesas primárias, sem a revisão da forma como se interpreta o regime jurídico das renúncias de receitas.

Ou a Emenda 95/2016 já começa a balizar o risco iminente e prospectivo de descumprimento do teto fiscal para conter essas renúncias fiscais concedidas por décadas a fio, tal como já assinalado no art. 109, §§2º e 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, ou simplesmente deixaremos de pautar uma das principais fontes de conflito distributivo no orçamento público federal.

Se a Instituição Fiscal Independente e o próprio governo estimam que, em 2019, há o risco consistente de superação do teto fiscal, como podem ser constitucionais as diversas normas que, desde a promulgação da Emenda 95, concederam ou ampliaram renúncias fiscais para períodos superiores a três anos e com severos impactos intertemporais nas metas de ajuste fiscal que têm norteado o corte até mesmo de despesas obrigatórias que amparam o custeio da saúde e educação públicas?

Desvendar esse conflito distributivo no ciclo orçamentário é evidenciar, cada vez mais, a fragilidade jurídica das metodologias de cálculo que acompanham as regras que instituíram/ ampliaram as renúncias de receitas. Cabe agora à sociedade e aos órgãos de controle mitigar tamanha frouxidão interpretativa com a constatação de que a instituição de quaisquer gastos tributários, por prazo indeterminado ou longínquo, fere as balizas normativas da LRF e da própria Emenda 95, assim como perpetua ilegal e inconstitucionalmente privilégio fiscal no orçamento público.

O desafio é o da equidade no ajuste fiscal e isso passa, por óbvio, por exigir obediência aos já vigentes limites às renúncias de receitas.


[1] O conceito de gasto tributário ou tax expenditure é relativamente recente. Em 1967, Stanley S. Surrey, professor da Faculdade de Direito de Harvard e então Secretário-Assistente do Departamento do Tesouro Americano, introduziu tal concepção sobre a realização de gastos governamentais indiretamente pela via tributária. Desde então, o regime jurídico, a evidenciação nas leis orçamentárias e o controle dos gastos tributários têm sido um desafio contínuo para os EUA e os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo a análise sobre suas balizas estruturais no Brasil ainda deveras incipiente.

[2] A esse respeito, ver a instigante análise empreendida por Bruno Carazza em http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/01/05/um-ano-novo-de-muito-dinheiro-no-bolso-para-alguns/

[5] Emerson Cesar da Silva Gomes defende a necessidade de ampliação do conceito de despesa pública para abarcar as despesas off-budget, como o são o gasto tributário e os benefícios creditícios. Para aprofundamento, ver sua tese de doutorado “Regime Jurídico da Despesa Pública” disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-16092016-120344/publico/PARCIAL_EMERSON_CESAR_DA_SILVA_GOMES.pdf

[7] Cujo endereço da sua divulgação eletrônica é http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/01/1949004-sem-fim-sem-fins.shtml

[10] Para maior aprofundamento, ver LIMA, Paulo C. R. Análise da Medida Provisória No 795, de 2017. Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Estudo Técnico. Brasília, out. 2017. Disponível em: <https://www.brasil247.com/attachment/943/Nota%20T%C3%A9cnica_MP%20795.pdf?g_dow nload=1>.

LIMA, Paulo C. R. Análise de Nota do Ministério da Fazenda e de Supostos Equívocos do Estudo Referente à Medida Provisória No 795, de 2017. Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Nota Técnica. Brasília, nov. 2017.

O aludido estudo também foi noticiado em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/10/31/estudos-apontam-perdas-de-r-1-tri-em-renuncia-fiscal-com-leilao-do-pre-sal.htm

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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