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Brasília foi marco para expansão da fronteira agrícola

Da Redação
Publicado em 29/5/2020

O esforço para interiorizar o desenvolvimento no país e alavancar o Centro-Oeste levou muitas décadas. A inauguração de Brasília, em 1960, foi um dos principais marcos para a grande transformação da região. A transferência da capital ajudou a conectar o Centro-Oeste às economias do Sul e Sudeste, mais desenvolvidas. A escolha do governo Juscelino Kubitschek de fazer essa interligação por estradas interestaduais iniciou o período conhecido como rodoviarismo. 

Mas a nova capital e a construção de estradas não promoveram mudanças rápidas na economia regional. A ocupação das vastas extensões de terra só deslanchou depois dos anos 1970, com a ajuda da tecnologia que recuperou a fertilidade dos solos e revelou a sua verdadeira vocação, centrada na produção de grãos e na pecuária. 

— A crença até a década de 70 era de que o bioma Cerrados não servia para a agricultura — lembra o economista Elísio Contini, gerente de inteligência da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 

Esse bioma, com solos ácidos e enfraquecidos, árvores retorcidas e sem a exuberância da Amazônia ou da Mata Atlântica, compreende cerca de 24% da área territorial do país e responde atualmente por cerca de 45% da área agrícola nacional. É encontrado em 1.389 municípios de 11 estados, conforme a publicação Dinâmica Agrícola no Cerrado — Análises e Projeções, editada este ano pela Embrapa, com participação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Vegetação nativa dá lugar a grandes plantações de grãos no cerrado (fotos: Natália Xac e Zineb Benchekchou/Embrapa)

Boa parte dos Cerrados está localizada nos três estados do Centro-Oeste: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul; incluindo o Distrito Federal (DF). Só para se ter ideia, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que esses estados e mais o DF respondiam por apenas 5,2% da produção nacional de soja em 1974. Em 2016, essa participação era de 45,8% do total. 

Na esteira do plantio da soja, outras duas culturas apresentaram no mesmo período uma expansão vertiginosa. A produção de milho, que era de apenas 8,4% do total nacional em 1974, saltou para 42,8% em 2016. O aumento da colheita do algodão foi maior ainda: de 8,9% escalou para nada menos do que 69,8% em 2016. 

A evolução das estradas rodoviárias no Brasil

(clique para abrir)

Fontes: Dnit e FGV

Exportação 

Com volume, produtividade e melhoria da logística para reduzir os custos de escoamento, por meio de investimentos em outros modais de transporte, como hidrovias e ferrovias, a exemplo da Norte-Sul, a produção do Centro-Oeste, além de abastecer o consumo interno começou a conquistar cada vez mais espaço nos mercados internacionais, especialmente os asiáticos. 

A partir de 2010, a China tornou-se não só o principal destino dos produtos agrícolas brasileiros, com quase 40 % das vendas totais do país naquele ano. Mas também o principal comprador internacional do Centro-Oeste. 

Em 2016, China, Hong-Kong e Macau respondiam por cerca de 33% das exportações da região. Segundo o economista Murilo Pires, pesquisador do Ipea que há 20 anos estuda o Centro-Oeste, num período de seis anos, a contar de 2010, houve uma taxa real de crescimento de quase 13% ao ano nas vendas do Centro-Oeste para esses mercados. 

Embarque de grãos para exportação no Porto do Itaqui (MA). Foto: Divulgação/Ascap-MA

Além deles, outro forte comprador foi a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), com participação nas exportações do Centro-Oeste de quase 13%, em 2016. Os asiáticos tomaram o lugar dos europeus, que eram os principais importadores do Centro-Oeste. A participação da União Europeia caiu para menos de 19%. 

O dinamismo econômico nessa fronteira agrícola, impulsionado principalmente pela soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e pecuária, deve continuar pelos próximos anos, na avaliação do gerente de inteligência da Embrapa. A expectativa é de que a economia da região continue crescendo a taxas significativas, superiores ao desempenho nacional.

História 

O caminho para chegar a esse patamar de desenvolvimento foi longo. O pesquisador do Ipea diz que muitos embriões foram lançados. O inicial, segundo ele, foi a expansão da Estrada de Ferro Goiás, que passou a explorar o transporte ferroviário no Triângulo Mineiro e em território goiano em 1920, por meio do decreto 13.936, quando o governo federal assumiu a administração da companhia. 

Com 234 quilômetros de extensão, a linha Araguari-Roncador foi incorporada à nova Estrada de Ferro Goiás. Nos primeiros anos da década de 1950 já era possível trafegar os 480 quilômetros de linha férrea, ajudando especialmente os comerciantes e os produtores locais. 

Estrada de Ferro Goiás, em registro de 1935 (foto: Acervo do Museu de Anápolis)

Em 1936, a transferência da capital do estado da cidade de Goiás para Goiânia foi outro fator que ajudou a impulsionar o desenvolvimento regional. Quatros anos mais tarde, o governo de Getúlio Vargas plantou outro embrião para esse processo de interiorização, com a implantação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (Cang), na região de São Patrício, considerada uma das primeiras experiências de reforma agrária do país. 

De acordo com o pesquisador do Ipea, o governo de Getúlio achou importante criar um núcleo de agricultores familiares descapitalizados para distensionar os conflitos fundiários que surgiram na região do Pontal do Paranapanema, no extremo oeste do estado de São Paulo. A Colônia foi emancipada mais tarde. Em 1953, tornou-se o município de Ceres, localizado a 180 quilômetros de Goiânia. 

Registros da colônia agrícola que viria se tornar o município de Ceres, em Goiás (fotos: Arquivo IBGE)

Pires lembra que até a década de 1930, o Centro-Oeste possuía relações tênues com o resto do país, sobretudo com São Paulo. A conexão com as demais regiões, especialmente por rodovias, veio somente após a criação de Brasília. E um registro histórico interessante: o engenheiro Bernardo Sayão, responsável pela construção de uma dessas rodovias federais, a Belém-Brasília, foi também o primeiro administrador da Cang. 

A economia, especialmente em Goiás, era baseada na pecuária bovina extensiva e na produção de arroz. Os grandes cerealistas estavam em Goiânia e Anápolis. A produção de carne, diz Pires, abastecia principalmente os frigoríficos paulistas, localizados em Barretos.

Atlas de 1902 fala em área "infestada por índios".
Dados de 1922 mostram produção econômica irrisória

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Goyaz

Limites
Ao N. e NE. o Maranhão: a L. o Piauhy, Bahia e Minas Geraes: ao S. ainda Minas Geraes e Matto Grosso: e a O. ainda Matto Grosso e o Pará.

Superfície
750.000 kilometros quadrados.

População
511.200 habitantes.

Capital
Goyaz, com 21.200 habitantes.

Cidades
O Estado possue 24 cidades. As principaes são: Catalão, Pyrenópolis, Bela Vista, Porto Nacional, Santa Luzia e Bomfim.

Agricultura
Está ainda atrazada. Cultiva-se comtudo a canna de assucar, o fumo, o algodão, o café, a vinha e alguns cereaes.

Industria
As principaes industrias são a pastoril, a do beneficiamento do arroz e a do preparo do fumo.

Commercio
E’ fraco o commercio goyano cujas exportações principaes consistem em gado vivo, arroz, fumo, xarque, couros, borracha, banha, toucinho, peixes seccos, etc.

Fontes: Pequeno Atlas do Brasil (1926) e Arquivo Nacional

Nova Fronteira 

Esse cenário econômico só começa a mudar a partir da década de 70, quando principalmente produtores gaúchos e do oeste paranaense, com experiência no plantio de grãos, migram para o Centro-Oeste atraídos pelo baixo preço das terras e pelos incentivos do governo. Eles foram considerados os novos bandeirantes, buscando o seu Eldorado como alternativa ao esgotamento das fronteiras agrícolas no Sul e Sudeste. 

O governo passa a adotar políticas públicas para apoiar essa ocupação dos Cerrados. Fortalece o Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária, com a criação da Embrapa, em 1973. Essa decisão alimentou uma estratégia nacional de geração e adoção de conhecimentos e tecnologias ancorados em uma agricultura baseada em ciências para os trópicos, conforme destaca a publicação da Embrapa. 

Essa tecnologia, lembra Contini, praticamente inexistia no exterior. O grande desafio da Embrapa, institutos estaduais de pesquisa e das universidades que atuaram nesses projetos, foi desenvolver tecnologias para a correção dos solos em clima tropical e a recuperação da sua fertilidade.

Campo experimental da Embrapa em área de cerrado (foto: Gustavo Porpino/Embrapa)

Os dois principais programas para o desenvolvimento da nova fronteira agrícola do Centro-Oeste foram iniciados no governo do general Ernesto Geisel. O mais importante deles foi o Polocentro, no período de 1975 a 1984, instituído no âmbito do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979). 

O objetivo era criar condições para a expansão da nova fronteira agrícola, tendo como principal instrumento o crédito rural subsidiado, concedido a produtores experientes e com áreas viáveis para a mecanização agrícola. Segundo Contini, cerca de 80% do número de projetos e 88,5% do montante financiado foram para empreendimentos superiores a 200 hectares, mínimo apropriado para mecanização e cultivo de grãos em larga escala. 

O outro programa foi financiado em boa parte pelo Japão, interessado em ampliar a oferta de alimentos no mercado internacional. O Prodecer (Programa Nipo-Brasileiro de Desenvolvimento Agrícola da Região dos Cerrados) contou com três fases, a primeira no final do governo Geisel. Os investimentos totalizaram US$ 573 milhões e atenderam 758 agricultores com experiência, principalmente gaúchos, paulistas e mineiros, viabilizando desde a compra da terra até a assistência técnica.

Plantação de soja no Mato Grosso na década de 70 (foto: Emater)

Excluídos 

Esse modelo de desenvolvimento foi “perverso e excludente”, na avaliação de outro pesquisador da Embrapa, o biólogo e botânico Anderson Sevilha. Os pequenos agricultores familiares e as populações extrativistas e tradicionais ficaram à margem, gerando muitas tensões. 

A alternativa do governo foi instituir projetos de assentamento rápido para regularizar ocupações e aliviar a pressão criada pela procura de terras baratas ou desocupadas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) criou a toque de caixa 15 desses projetos, com uma área total de 2,5 milhões de hectares e capacidade de assentar 27.205 “parceleiros". 

De acordo com a publicação da Embrapa, entre 1970 e 1986, foram 25 projetos de colonização no Centro-Oeste, com abrangência total de 4,3 milhões de hectares e capacidade para assentar 35.426 famílias. Mas muitos desses pequenos agricultores familiares não conseguiram ser inseridos ao sistema produtivo e desistiram. 

Danos Ambientais 

A opção por plantios de grãos em larga escala e a pecuária extensiva que exige grandes áreas de pastagem acarretaram danos ao meio ambiente. Recente levantamento com base no Cadastro Ambiental Rural (CAR) indica que cerca de 49% das áreas de Cerrado do Centro-Oeste estão preservadas, sendo 14% protegidas por unidades de conservação e terras indígenas e quase o total restante pelas propriedades rurais, conforme informações incluídas na publicação da Embrapa. 

Esse grau de antropização, que mede a ação do homem sobre a natureza, vale para todo bioma Cerrado, de acordo com avaliação feita entre 2009 e 2012, pelo Projeto Probio, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente. No entanto, esse levantamento feito com base em dados coletados por satélite não capta o que realmente está acontecendo com o bioma, segundo Sevilha, um dos coordenadores do projeto Bem Diverso, parceria entre a Embrapa e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), voltado para o manejo sustentável da biodiversidade brasileira e de sistemas agroflorestais. 

São muitos os danos ambientais listados pelo pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen). As florestas deciduais, caracterizadas por árvores que perdem a maior parte de suas folhas durante o período de estiagem, praticamente desapareceram. Há áreas nos Cerrados já em processo de desertificação. 

Registros de processos de degradação do Cerrado (fotos: Anderson C. Sevilha)

Algumas espécies nativas estão morrendo, como o araticum e a mangaba. Outras, como o pequi, estão sendo atacadas por pragas. As veredas com seus buritis estão sumindo. E, segundo o pesquisador, ainda não se tem uma avaliação da mortandade de animais e microrganismos.

A ocupação desenfreada das regiões de chapadas, que são áreas de recarga e infiltração, alimentando os lençóis freáticos, está provocando escassez de água. Sevilha lembra que as grandes bacias hidrográficas, como a Amazônica, a do Araguaia e a do Tocantins, a do São Francisco e a do Prata, se formam nos Cerrados.

Além disso, muitos rios estão sendo assoreados e o uso de pivôs centrais para irrigar grandes plantações de soja e de fruticultura está aumentando os conflitos e as disputas pela água. Sevilha conta que há cidades na região que são obrigadas a procurar o abastecimento em cidades vizinhas ou por caminhões-pipa para atender a sua população.

Soluções 

Diante de um modelo que gera divisas, porém com custos ambientais elevados, a Embrapa e o sistema de pesquisa já oferecem algumas soluções para reduzir esses danos ao meio ambiente. As práticas de conservação e manejo de solos são uma delas, como o plantio direto, a técnica de cultivo em terraços (terraceamento) e as bacias de contenção de águas das chuvas. 

Outra é a consorciação de culturas com vegetação nativa, que pode gerar rendimentos, com os óleos de pequi, araticum e de semente de maracujá. A saída para o coordenador do projeto Bem Diverso é repensar esse desenvolvimento agropecuário dos Cerrados dentro de uma visão de sustentabilidade e valoração dos custos ambientais. 

Espécies nativas do Cerrado, como o araticum e o pequi, sofrem com a degradação ambiental (fotos: Anderson C. Sevilha)

Senadora Leila Barros (PSB-DF): "ainda somos a capital do futuro"

Que avaliação a senhora faz da interiorização do desenvolvimento promovida pela mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília em 1960? Há um consenso de que houve um crescimento demográfico no Centro-Oeste, aumento da produção agropecuária. Foi o suficiente? O que mais pode melhorar nesse processo? O setor industrial vem crescendo em ritmo adequado?17537997844_c0ccc6565a_k_edit.jpg

Com apenas 60 anos de fundação, Brasília ainda é uma menina que continua em fase de crescimento. A meu ver, foi muito bem-sucedida a transferência da capital, que era no litoral, para, entre outros motivos, alavancar o desenvolvimento do interior do país, principalmente aqui na região central. Vale destacar que o Centro-Oeste não é apenas um importante celeiro agropecuário, mas também produz muitas riquezas com serviços, indústria, administração pública e comércio. Brasília também avança para se tornar um importante polo tecnológico da América Latina, também graças à UnB, uma das dez melhores universidades do país. Como falei, Brasília ainda tem muito a crescer e contribuir para o fortalecimento do nosso país. Ainda somos a capital do futuro.

Como efeitos colaterais da interiorização, os ambientalistas apontam sérios danos ao Cerrado, principalmente, à Amazônia, indiretamente, e às populações indígenas. Como vê essas afirmações?

Não restam dúvidas de que a interiorização custou um preço ambiental elevado. Mas Brasília não pode, nem deve ser tratada como a vilã dos problemas do meio ambiente, registrados no nosso país. Enquanto a necessidade imperiosa de preservar a natureza não for incluída como um caro e imprescindível valor da nossa sociedade, continuaremos a lamentar a degradação de nossas riquezas naturais. O consumismo desenfreado, o precário sistema de transporte público, a falta de manejo apropriado do solo na maioria dos projetos agrícolas e o inusitado desmonte dos aparatos de fiscalização do Estado são alguns dos problemas que, a meu ver, precisam e podem ser combatidos.


Senador Izalci Lucas (PSDB-DF): "o desenvolvimento do Centro-Oeste se deve à construção de Brasília"



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Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Cláudio Portella
Pesquisa fotográfica: Ana Volpe
Foto de capa: Adriano Gambarini